terça-feira, 31 de outubro de 2017

Citomegalovírus


Pertencente à mesma família do vírus da herpes, o citomegalovírus é um vírus que pode causar uma infecção no sistema nervoso central, digestivo e também na retina. Presenteem grande parte das pessoas, este apenas se manifesta quando o sistema imunológico está comprometido. Praticamente todas as pessoas possuem o vírus, mas nem todas acabam manifestando a doença citomegalovirose, causada por ele.
Citomegalovírus
Foto: Reprodução

Citomegalovirose

A doença causada pelo citomegalovírus recebe o nome de citomegalovirose. As pessoas, como dissemos anteriormente, em sua maioria, possuem o vírus em seu corpo, mas somente são afetadas aquelas que estão com as defesas diminuídas. Isso é muito comum em pessoas que estão em tratamento de câncer ou ainda da Aids. A citomegalovirose, no entanto, não possui uma cura: o vírus permanece latente no corpo quando o indivíduo é infectado. É muito comum vermos gestantes descobrindo o vírus no organismo devido aos exames do pré-natal. Mas não é, normalmente, um problema a se preocupar, pois não causa alterações no bebê – principalmente caso a mulher tenha sido infectada antes de engravidar (chances de menos de 1% de transmissão para o bebê), mas é importante seguir orientações médicas e fazer os exames pré-natais.
O diagnóstico é feito por meio de um exame de sangue pelo qual é possível evidenciar os anticorpos contra o vírus. Quando o resultado for reagente CMV IgM, indica que a infecção é aguda e quando for CMV Igg, permanece por toda a vida.

Como acontece a transmissão?

O contato com secreções como da tosse e da saliva ou ainda contato íntimo e compartilhamento de copos, talheres e toalhas com uma pessoa infectada pode ser o suficiente para a contaminação, uma vez que a transmissão desse vírus é muito fácil.
A transmissão pode acontecer ainda por meio de transfusão de sangue ou ainda por transmissão da grávida para o feto. É importante, no entanto, que você saiba: é muito difícil, praticamente impossível, viver sem ser infectado em algum momento pelo vírus.

Quais os sintomas e o tratamento?

Sintomas

Entre os sintomas do citomegalovírus, podemos encontrar a febre, dor de cabeça e de garganta, podendo ainda – quando a doença estiver em fase mais avançada – afetar o fígado e o baço. Os sintomas, no entanto, normalmente não aparecem quando um paciente é infectado, mas sim quando está com o sistema imunológico comprometido. Por isso a infecção normalmente é descoberta durante exames de sangue.
A doença pode trazer algumas complicações como a coriorretinite – podendo levar a cegueira -, comprometimento do fígado ou do intestino, ou ainda do sistema nervoso central – podendo gerar ausência de movimento das pernas, mielite ou encefalite. As complicações, no entanto, são mais comuns em pacientes muito debilitados.

Tratamento

O tratamento é feito com medicamentos que combatem os sintomas e, em casos mais graves, os médicos recorrem a um medicamento antiviral utilizado por um período de aproximadamente 30 dias.

A doença e a gestação

Como citamos anteriormente, quando a mulher é infectada antes da gestação, há poucas chances de isso interferir ou ainda ser transmitido ao bebê. No entanto, quando a contaminação acontece durante a gestação, o vírus traz riscos maiores de complicações podendo envolver febre e inchaço dos gânglios linfáticos. A transmissão para o bebê pode ser evitada por meio de um antiviral consumido pela mãe.
Hepatite por citomegalovírus
Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

EPIDEMIOLOGIA
   O citomegalovírus (CMV) e o vírus Epstein-Barr (EBV) pertencem às sub-famílias beta e gama dos vírus da herpes. Eles apresentam pouco tropismo, ou seja, não afetam um órgão específico, mas espalham-se pelo corpo através dos leucócitos periféricos após a infecção. Podem causar hepatite como principal manifestação clínica, mas geralmente esta hepatite é assintomática.
   Estima-se que 50% da população mundial tenha evidência de infecção recente ou antiga por CMV ou EBV, mais ainda nos pacientes com hepatite. Na grande maioria das hepatites com estes achados, nenhum dos dois vírus é responsável pela hepatite.
   O CMV pode ser adquirido em qualquer idade. Entre 0,3 e 2,0% dos bebês apresentam infecção congênita. Pela transmissão por secreções, incluindo leite materno, secreções genitais, saliva e urina, cerca de 40% dos adultos jovens (em países industrializados) já foram infectados, com esta taxa crescendo ao ritmo de 1% ao ano até a 6a. década de vida. Virtualmente todas estas infecções primárias são assintomáticas, com ocasional quadro gripal.
   Mesmo desenvolvendo anticorpos, o indivíduo não se torna imune a reativação da doença (nos episódios de redução da imunidade, como na quimioterapia, na AIDS e no transplante hepático) ou a novas infecções. As principais fontes de reinfecção são derivados de sangue e órgãos transplantados. Mesmo em transplantados com sinais de infecção por CMV, a principal fonte é a reativação da doença pelos imunossupressores.
DIAGNÓSTICO
   Os sintomas são pouco característicos, geralmente cursando com febre e dores articulares. A presença de trombocitopenia (diminuição de plaquetas) sugere doença mais grave. A utilização da sorologia pode levar a muitos erros diagnósticos. A presença de anticorpos da classe IgM, normalmente positivos em infecções agudas, não podem ser utilizados em pacientes com infecção congênita ou imunossupressão, onde a infecção por CMV é mais crítica. O diagnóstico por detecção do vírus é mais confiável, com diversas técnicas disponíveis. Recomenda-se a utilização de amostras de urina, saliva e sangue (cultura de leucócitos).
Exames
Interpretação
Anticorpo IgM
Anticorpo produzido nas infecções agudas
Anticorpo IgG
Anticorpo produzido após a fase aguda e não significa doença nem imunidade contra ela, apenas que a pessoa já teve contato com o vírus ( que pode continuar no organismo )
Detecção do vírus
Diversos métodos são capazes de detectar a presença de vírus, mas só são necessários em imunossuprimidos, aonde é necessário diferenciar uma reativação da infecção de outras doenças
   Na biópsia hepática, a infecção congênita aparece como "hepatite neonatal de células gigantes", sendo que essas células gigantes multinucleadas são uma resposta inespecífica do fígado. O achado característico da hepatite pelo CMV são inclusões grandes e únicas no núcleo das células, chamadas de "olhos de coruja" (Cowdrey tipo A). Elas podem ser encontradas  nos hepatócitos e nas células de Kupffer, mas são mais comuns nas células do epitélio biliar. Em pacientes com sistema imunológico comprometido, no entanto, as inclusões são mais comuns nos hepatócitos e a doença é mais agressiva. Foram descritos em diversos estudos fibrose hepática provavelmente secundária à infecção por CMV, que pode portanto ser uma causa de fibrose portal não-cirrótica.

Inclusão típica do CMV em "olho de coruja" ( www.medlib.ed.utah.edu )
COMPLICAÇÕES
   Apesar dos relatos de fibrose hepática na CMV congênita, geralmente os pesquisadores concordam que a hepatite por CMV não se cronifica. Assim, embora possa estar associado a fibrose hepática, não evolui até cirrose.
TRATAMENTO
   Os medicamentos mais utilizados na hepatite pelo CMV são o ganciclovir e o valganciclovir. No entanto, o desenvolvimento de resistência pelo vírus e a supressão da medula óssea são fatores limitantes comuns no tratamento. Se ocorre resistência, o foscarnet torna-se a opção de tratamento nas hepatites severas, mas também seu uso é limitado, pois é tóxico ao rim. Por esses motivos, só indica-se o tratamento em pessoas com deficiência imunológica, pois nas demais a infecção é auto-limitada. Não se recomenda rotineiramente o tratamento de recém-nascidos com infecção congênita.
BIBLIOGRAFIA
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  • Legendre C, Pascual M. Improving outcomes for solid-organ transplant recipients at risk from cytomegalovirus infection: late-onset disease and indirect consequences. Clin Infect Dis. Mar 1 2008;46(5):732-40.
  • Como o Citomegalovírus afeta a Gravidez e o bebê

    ​O citomegalovírus contraído na gravidez deve ser tratado o mais rápido possível para evitar a contaminação do bebê através da placenta ou durante o parto.
    Geralmente, a grávida entra em contato com o citomegalovírus antes da gravidez e, por isso, possui anticorpos capazes de combater a infecção e evitar a transmissão. No entanto, quando a infecção acontece pouco tempo antes ou durante a gravidez, há chances de transmitir o vírus para o bebê, podendo provocar parto prematuro e até malformações no feto, como microcefalia, surdez, retardo mental ou epilepsia.
    O citomegalovírus na gravidez não tem cura, mas normalmente é possível iniciar o tratamento com antivirais para evitar a transmissão para o bebê.
    Como o Citomegalovírus afeta a Gravidez e o bebê

    Como tratar o citomegalovírus na gravidez

    O tratamento para citomegalovírus na gravidez pode ser feito com ingestão de remédios antivirais, como Aciclovir, ou injeção de imunoglobulinas, receitados pelo obstetra para evitar a transmissão para o bebê.
    Durante o tratamento para citomegalovírus na gestação, o médico deve realizar exames regulares para acompanhar o desenvolvimento do bebê. Saiba mais sobre o tratamento do citomegalovírus na gravidez em: Tratamento para citomegalovírus na gravidez.

    Diagnóstico do citomegalovírus na gravidez

    O diagnóstico do citomegalovírus na gravidez é feito com o exame de sangue CMV durante a gestação, podendo o resultado ser:
    • IgM não reagente ou negativo e IgG reagente ou positivo: a mulher já teve o contato com o vírus há mais tempo e o risco de transmissão é mínimo.
    • IgM reagente ou positivo e IgG não reagente ou negativo: infecção aguda pelo citomegalovírus, é mais preocupante, o médico deverá orientar.
    • IgM e IgG reagentes ou positivos: deve ser realizado um teste de avidez. Caso o teste seja inferior a 30%, há maior risco de infecção do bebê durante a gravidez.
    • IgM e IgG não reagentes ou negativos: nunca houve contato com o vírus e, por isso, deve-se evitar qualquer tipo de contato.
    Quando existe suspeita de infecção no bebê, pode ser retirada uma amostra de líquido amniótico para avaliar a presença do vírus. Porém, segundo o Ministério da Saúde, o exame no bebê só deve ser feito depois dos 5 meses de gravidez e 5 semanas após a infecção da gestante.

    Sintomas de citomegalovírus na gravidez

    Os sintomas de citomegalovírus na gravidez podem ser axilas inchadas e doloridas, dor muscular e febre acima de 38º C.
    Contudo, a maioria das gravidas não apresenta nenhum sintoma e a infecção só é diagnosticada no exame de sangue de rotina.

    O que fazer para evitar o citomegalovírus na gravidez

    Para evitar o citomegalovírus na gravidez a grávida deve seguir algumas recomendações, como:
    • Usar camisinha no contato íntimo;
    • Não ir trabalhar, principalmente se trabalhar em locais públicos;
    • Lavar as mãos logo após trocar a fralda a um bebê ou sempre que entrar em contato com as secreções da criança, como saliva, por exemplo;
    • Não beijar crianças muito jovens na bochecha ou boca;
    • Não usar objetos que são da criança, como copos ou talheres.
    As crianças são os principais responsáveis pela transmissão do citomegalovírus, por isso, estas recomendações devem ser seguidas pela grávida durante toda a gestação, principalmente se trabalhar com crianças.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

PSICANÁLISE, SEXO E GÊNERO: ALGUMAS REFLEXÕES

Resultado de imagem para DIREITO DE TER E SER QUEM QUISER IDENTIDADE DE GENERO

in Diversidades: Dimensões de Gênero e sexualidade Rial, C.; Pedro, J.; Arende, S. (Org.) Florianópolis: Ed. Mulheres, 269-285, 2010

Pensar a alteridade é, então, pensar o diferente, a relação, o conflito. Isto é mais difícil, evidentemente, do que pensar a diferença dos sexos apoiada em invariantes culturais, antropológicas ou psicanalíticas ou, ainda, graças a boas intenções sobre a complementaridade natural dos sexos, e a boa consciência sobre a perenidade do mal feminino.
                                                        Geneviève Fraisse
Introdução
Antes de abordar a questão proposta pela mesa – Psicanálise, gênero e sexualidade – gostaria de precisar aquilo que hoje se chama “estudos de gênero”. Trata-se, de um lado, dos movimentos feministas com as teorias que os sustentam; e, de outro lado, das práticas políticas às quais estes movimentos conduzem. Ao mesmo tempo, o conceito operatório de gênero não se limita aos estudos feministas e nem todo trabalho que implica a utilização de gêneroengloba alguma forma de militância.
É interessante lembrar, que algumas passagens da obra de Freud abriram perspectivas inéditas e revolucionárias sobre a sexualidade, a ponto de algumas feministas verem na psicanálise uma possibilidade de emancipação. Porém, mais tarde elas passaram a acusar Freud de androcentrismo, por perpetuar o modelo patriarcal que sustentava algumas de suas posições. O problema tomou novas proporções quando, em 1925, Freud teorizou sobre a fase fálica no desenvolvimento das meninas. Ao responder as reivindicações feministas, Freud acabou patologizando suas demandas:
Não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões [sobre a formação do superego nas mulheres] pelas negações dos feministas, que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor (Freud,1925, 320).
Entretanto, a posição falocêntrica defendida por Freud começou a produzir polêmicas a partir de 1930. "Vozes isoladas", como dizia Freud, falavam da existência de sensações vaginais precoces. Dentre estas “vozes” destacam-se as de Melanie Klein, Joan Riviere, Hélène Deutsch, Karen Horney et Ernest Jones. Estes autores questionavam a concepção freudiana da fase fálica e da inveja do pênis. Melanie Klein (1959), por exemplo, defendia que a menina, desde pequena, possuía o conhecimento da vagina, embora fosse recalcado em função do clitóris.
O rompimento quase definitivo com a teoria psicanalítica por parte de algumas feministas se deu em 1927 em O Futuro de uma ilusão, e em 1929 em O mal-estar na civilização. Nestes textos, Freud fala das injustiças sociais e das classes oprimidas, sem mencionar a opressão social que sofrem as mulheres.
A utilização da palavra gênero aparece em várias áreas do conhecimento. Por exemplo, a antropologia nos mostra que as noções de gênero, das diferenças sexuais anatômicas, a criação simbólica do sexo, o modelo do masculino e do feminino, devem ser compreendidos como uma criação própria a cada cultura. Nas relações psicossociais ou interpessoais, o gênero é um modo de organização de modelos que são transmitidos aos indivíduos, e através dos quais as estruturas sociais e as relações entre os sexos se estabelecem: a divisão de trabalho, as relações de poder entre homens e mulheres, que determinam tanto os processos de subjetivação e de socialização quanto as interações sociais. Em psicologia, fala-se de identidade de gênero e de papel de gênero para designar o modo que o sujeito vive o gênero ao qual se sente pertencer, e responde aos ideais social e historicamente construídos e atribuídos ao gênero em questão.

Psicanálise e gênero 
A literatura sobre a questão do gênero em psicanálise deixa claro duas perspectivas conflituais: a interseção do individual – da constituição do Eu, ou do sujeito – e as construções sociais como tributárias de processos históricos. Para alguns psicanalistas, por mais que os processos sociais possam interferir nas construções constitutivas do Eu, os conflitos observados são sempre individuais relacionados a mecanismos intrapsíquicos inconscientes, logo, independentes, com raras exceções, do social. Para estes, o conceito de gênero não traria grandes contribuições à psicanálise, e os trabalhos de Freud sobre a sexualidade, sobretudo a infantil, já trazem no seu bojo postulados bem avançados e ideias inovadoras e originais para a época sobre a questão de gênero. Outros, partindo da famosa observação freudiana segundo a qual “toda psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social” (Freud, 1921, 91) entendem que o tema contribui para a compreensão de certos conflitos.
A utilização do termo "gênero" tem gerado mais polêmica do que consenso no universo psicanalítico. Esse termo, freqüentemente utilizado na literatura anglo-saxônica na qual encontramos expressões como: "identidade de gênero", "problemas de gênero", "disforia de gênero", é de uso bem mais recente e restrito na terminologia psicanalítica brasileira.
A distinção entre sexo e gênero foi introduzida na psicanálise pelo psicanalista norte-americano Robert Stoller para uma melhor compreensão da psicodinâmica do transexual. Stoller isola, para melhor delinear, os aspectos da psicossexualidade que, para ele, são "independentes" do biológico: gênero. Para isso, ele parte do que Freud chama de "caracteres sexuais mentais” (a(atitude masculina e feminina) que são, até certo ponto, independentes dos caracteres sexuais físicos e do "tipo de escolha de objeto" (F(Freud, 1920).
Stoller separa, então, os dois aspectos do conceito freudiano de bissexualidade – o biológico e o psíquico – para, em seguida, examinar a dimensão biológica (s(sexo) por meio do estudo dos intersexuais, e a dimensão psíquica (g(gênero) pelo estudo dos transexuais. Stoller conclui que o gênero prima sobre o sexo. Este desdobramento vai permitir-lhe apreender a aquisição do feminino e do masculino – o gênero -, por um homem [male] ou uma mulher [female] – o sexo.[1] Segundo Stoller, "gênero", tal como o gênero gramatical (m(masculino, feminino), traduz melhor as conotações psicológicas e/ou culturais que "sexo". “O gênero é a quantidade de masculinidade, ou de feminilidade, que uma pessoa possui. Ainda que existam misturas dos dois nos seres humanos, o homem (m(male) “normal” possui uma preponderância de masculinidade, e a mulher (f(female) “normal” uma preponderância de feminilidade" (S(Stoller, 1978, 61).
A critica que se faz a esta divisão proposta por Stoller – “sexo” para falar do biológico, e gênero para falar da ordem social – é que ela restabelece o binarismo “natureza/cultura” dando ao “sexo” a conotação de biológico e “natural”, o que escamotearia completamente o fato de que o sexo, assim como o gênero, é uma construção conceitual. Não se trata, evidentemente, de negar a diferença biológica, mas os Estudos de Gênero (Gender Studies) há muito nos ensinaram a não confundir esta diferença com o uso ideológico que delas fazem as sociedades.
A teoria lacaniana critica radicalmente a utilização da noção de “gênero” alegando que tais noções não levam em conta que a identidade sexual – construção imaginária – se constitui pela articulação do real e do simbólico. Uma vez que o real do sexo é inacessível, o essencial para a construção da identidade sexual é que ela seja simbolicamente reconhecida pela palavra do Outro, encarnada por quem acolhe a criança no mundo. Esse reconhecimento inscreverá o recém-nascido na função fálica e transformará a criança em ser falante, homem ou mulher. Nada, no psiquismo, permite que o sujeito se situe como macho ou fêmea; é do Outro que o ser humano aprende, peça por peça, o que fazer como homem ou como mulher (Lacan, 1985).
Por outro lado, com Bertini (2009), acreditamos que, contrariamente o que diz a teoria lacaniana, não existe nenhuma lei absoluta e única que sustentaria as construções simbólicas – nenhum “re-Père” – susceptível de nos guiar. Nada determina nada; o sentido aparece como errante em busca das possíveis determinações provisórias; e qualquer ordem simbólica, embora necessária, é pura indeterminação. Neste sentido, acho deplorável a insistência lacaniana em colocar o falo no fundamento da ordem simbólica pois, em realidade,
As diferenças visíveis entre o corpo feminino e corpo masculino que, sendo percebidas e construídas segundo os esquemas práticos da visão androcêntrica, tornam-se o penhor mais perfeitamente indiscutível de significações de valores que estão de acordo com esta visão: não é o falo (ou a falta de) que é o fundamento desta visão de mundo, e sim é essa visão de mundo que, estando organizada segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo, constituído em símbolo da virilidade, de ponto de honra (nif) caracteristicamente masculino; e instituir a diferença entre os corpos biológicos em fundamentos objetivos da diferença entre os sexos, no sentido de gênero construídos como duas essências sociais hierarquizadas (Bourdieu, 2002, 43).
Para alguns, perturbar esta ordem simbólica ameaçaria a circulação dos signos e impediria a separação/alienação do sujeito e seu subsequente posicionamento na ordem simbólica – no Outro – na qual a metáfora paterna seria a única garantia possível. Podemos observar, com inquietação, como nos últimos anos uma parte significativa dos psicanalistas solicitados a se pronunciarem sobre a mudanças nas organizações sociais veem nelas a agonia do pai, o fim da ordem simbólica e o retorno à uma fusão originária e fantasmaticamente temida com a mãe, o que demonstra uma confusão sintomática entre o poder das mulheres e o das mães (Ceccarelli, 2002; 2007). O pai separador, única via possível de acesso à ordem simbólica segundo a teoria lacaniana, aparece como um dogma intocável: “o dogma paterno” (Tort, 2005). A prevalência o Pai como guardião da ordem simbólica marca, por um lado, a separação necessária e vital com a mãe, vista como onipotente e abusiva e, por outro lado, a entrada no universo simbólico regido pelo princípio masculino, pela dominação masculina. As conseqüências políticas e ideológicas de uma tal visão da organização social, na qual o Pai detém o poder organizador central, é por demais conhecida e dispensa comentários.

O pensamento freudiano
Em Freud, não encontraremos o termo "gênero", pois, em alemão, uma só palavra designa sexo e gênero: Geschlecht. Entretanto, ele fala de uma forma de classificação que começa numa etapa anterior à castração, e que poderíamos classificar de "segundo o gênero". Em seu texto de 1908, Sobre as teorias sexuais das crianças, Freud nos convida a imaginar uma situação em que, despojados de nossa "existência corpórea" e como "seres puramente pensantes" vindos de outro planeta, chegássemos à Terra. Neste planeta desconhecido, o que mais nos chamaria a atenção seria a existência de dois sexos (ou de dois gêneros). Tal distinção seria feita pelos "sinais externos mais óbvios", sem levar em conta a existência de uma diferença anatômica.
A criança imersa desde o nascimento no universo cultural e discursivo da sociedade da qual faz parte aceita sem questionamento a existência do pai e da mãe, coloca-se de um lado ou de outro, e diferencia aquele que não se assemelha a ela. Ela constata que, ao seu redor, as pessoas têm vestimentas diferentes; fazem, ou não, determinadas coisas; aprende que certas coisas, ela – a criança – pode fazer por ser menino, ou menina, mas, que outras, pela mesma razão, não pode fazer. Essa distinção só é possível porque "suas lembranças [as das crianças] mais antigas já incluem um pai e uma mãe" (F(Freud, 1908, 215). Mas, para além dessa primeira classificação operada pelo discurso social, pelos costumes, por aquilo que podemos chamar de “função social do sexo”, temos também o olhar da criança que, aos poucos, vai transformando o corpo anatômico (real) em corpo sexuado.
Resumindo: é possível dizer que, em Freud, existe uma classificação segundo o gênero; uma distinção que começa em uma etapa anterior à castração, sem levar em conta a anatomia, cuja base é a diferenciação pai/mãe. A apreensão dos gêneros se faz sem levar em conta o órgão sexual. A presença ou a ausência do órgão sexual masculino ou feminino não constituem garantia que o sujeito se coloque do lado dos homens ou do das mulheres: o transexualismo é o maior exemplo disso. A distinção de gênero, categorias binárias fundamentais, é dada à criança desde cedo e não leva em conta o pulsional. Talvez seja por isso que, em Freud, não encontramos uma "teoria de gênero". 
Ao mesmo tempo, uma leitura cuidadosa da obra de Freud no que diz respeito à «masculinidade» e à «feminilidade» revela o quanto ele estava a frente do seu tempo, operando aquilo que chamaríamos hoje de desconstrução, no sentido que Derrida dá a este termo[2]. Embora trabalhe com categorias binárias, Freud acaba desconstruindo tais categorias ao mostrar que tanto a «masculinidade» quanto a «feminilidade» são pontos de chegada e não de partida; e que o ponto de chegada é sempre único, pois tributário da particularidade dos processos identificatórios de cada um. Ao chamar a atenção para o caráter incerto da masculinidade e da feminilidade, para a dificuldade em se definir masculino e feminino, Freud é revolucionário, pois recusa toda amarra na realidade anatômica: a significação dessas noções nada tem de natural e de convencional. Elas são resultados de processos bem mais complexos que as determinações instintuais[3].
O que leva uma criança a dizer que é menino ou menina é a consolidação de uma crença que começa após o nascimento – hoje mais cedo, com a ecografia –, a partir da designação do sexo/gênero do recém-nascido feita pela pessoa que presenciou o nascimento e, mais tarde, pela inscrição no cartório civil. Tal designação se baseia, tradicionalmente, nos dados anatômicos do bebê. Em seguida, ele começará a ser tratado de acordo com os atributos do sexo/gênero que lhe foi designado. É nessa referência que lhe será dito – através de palavras, do discurso dos pais sobre a criança e para com a criança, discurso baseado nos desejos de quem lhe deu vida psíquica, em seus fantasmas e crenças, pelos presentes que serão dados ao recém-nascido, pelo lugar que ele ocupa na família e na sociedade etc. – que ele é um menino ou uma menina. Tal crença lhe será confirmada durante toda a vida pelo seu corpo, pela sua psicossexualidade e pela opinião comum. Aos poucos, a criança será informada do lugar do qual ela deverá responder, segundo o sexo/gênero ao qual pertence. Isto significa que o que se chama atributos do gênero fazem parte das identificações e são inseparáveis do sexo e a existência de ambos é relacional.
É inicialmente por intermédio dos pais e do grupo primário que a criança vai adquirir os elementos de informação sobre o sistema simbólico relativo à sociedade na qual ela está inserida, assim como os códigos aos quais, como menina ou menino, deverá se submeter, e que lhe prescreverão o registro no interior do qual ela – a criança – deverá inserir seus comportamentos e suas condutas. Isso significa que o que se espera de uma criança está intimamente atrelado a convenções sociais e a regras de conduta oriundas de um sistema simbólico no qual ela se locomove, sem nenhuma relação com uma suposta "natureza" masculina ou feminina em relação direta com a anatomia. Nesta perspectiva, pode-se dizer que quando a criança é criada com convicção e continuidade no sexo que lhe foi atribuído, o sentimento de identidade sexual que ela construirá concordará com o sexo de atribuição, e não com seu sexo biológico: em caso de conflito entre forças biológicas e psicológicas, as últimas ganham, no que diz respeito à construção do sentimento de identidade sexual. É o sexo de atribuição, e não o anatomobiológico, que assegura à criança o sentimento de ser menino ou menina.
No imaginário social existe uma correspondência “natural” entre o sentir-se homem (sexo) e ser masculino (gênero), e o sentir-se mulher (sexo) e ser feminina (gênero), dando a impressão que existiria uma relação direta e natural entre corpo anatômico e identidade de gênero. Às vezes, entretanto, o cotidiano, quando não a clínica, nos leva a repensar esta relação.
Foi o que aconteceu em abril de 2008, quando a foto de Thomas Beatie, de 34 anos, com a filha recém-nascida Susan Juliette, foi publicada pela revista americana People. A foto, que foi manchete em vários jornais do mundo, mostra Thomas, um transexual que, ao nascer, recebeu o nome de Tracy Iagondino, e que ficou conhecido como ‘o homem grávido’. Após uma dupla mastectomia no final dos anos noventa, e à administração de hormônios, Thomas Beatie tornou-se ‘um homem’, mas guardou os seus órgãos reprodutores femininos. Mais tarde consegui legalmente, nos documentos de identidade, mudar do gênero feminino para o masculino. A notícia causou furor na pacata cidade de Bend, no estado americano do Oregon, onde Thomas reside com a esposa, pois ninguém sabia de seu passado como mulher. O ‘homem grávido’ percorreu o mundo, virou notícia na net com blogs, e filmes no You tube.
Thomas e Nancy estão casados há cinco anos e queriam ter um filho. Nancy já tinha duas filhas de um casamento anterior. Como Nancy não podia engravidar-se devido a uma histerectomia que se submetera, Thomas decidiu engravidar-se, o que consegui sem problemas após a interrupção do uso de testosterona, para que seus níveis de hormônio femininos voltassem ao normal. “Ter um filho”, disse ele, “não é um desejo masculino ou feminino, é um desejo humano”. Para Thomas, que sente a sua identidade masculina como muito estável, diz que o fato de ter-se engravidado não o define, e muito menos o faz sentir-se, mulher. O casal optou pela inseminação artificial. (Nancy inseminou Thomas com uma seringa, utilizando o esperma adquirido um banco de esperma.). Em casa, os papéis não mudaram com a chegada do bebê. "Ele vai ser o pai e eu serei a mãe", diz Nancy, que fez um tratamento para induzir a produção de leite, a fim de amamentar a pequena Susan no peito.
Para Thomas, trata-se de "uma nova definição do que a diversidade significa para cada um". Atualmente, ele escreve um livro sobre sua infância no Havaí onde participou e ganhou, quando jovem, de um concurso de beleza. Ele conta do suicídio da mãe, e de como, mais tarde, conquistou a categoria máxima em artes marciais.
O interessante da história de Thomas é a desorganização provocada no imaginário social quando as categorias, supostas imutáveis, de gênero, assim como a concepção identidade sexual são desconstruídas. A notícia do ‘homem grávido’ abala o senso comum que nos diz que não é possível que um homem engravide. A impacto foi tal, que passou totalmente despercebido o fato de Thomas Beatie não ser um homem, mas uma mulher (sexo) que adquiriu uma aparência masculina (gênero), após uma série de cirurgias. Isto mostra o quanto as referencias simbólicas do masculino e do feminino e os papéis sexuais são sustentados pelas diferenças anatômicas que são, elas também, construções simbólicas à partir de um real inacessível. Este imaginário está em ressonância direta com as teorias sexuais infantis relatadas por Freud que qualificam de ‘mulher’ um sujeito sem pênis. Mas, uma mulher não é um homem sem pênis, e um homem sem pênis não é uma mulher. Ou seja, o sentimento de ser menino, ou menina (gênero), não pode ser vinculado à presença, ou à ausência, do órgão sexual (sexo) (Ceccarelli, 2008).

Transexuais e os estados intersexuais
As dificuldades e incongruências em se traçar uma relação direta entre sexo e gênero torna-se evidente tanto nos transexuais quando nos chamados ‘estados intersexuais’, ou ‘pseudo- hermafroditismo’ (Kreisler, 1973; Ansermet, 2005). Tais sujeitos nos ensinam sobre a sexuação em geral, e sobre as relações entre o corpo como objeto estrangeiro ao Eu (Ich), além de colocarem  importantes questões sobre a heterogeneidade daquilo que é da ordem do organismo e o que é do subjetivo.
Sem dúvida, o transexualismo é a solução[4] que interpela da forma mais radical o conceito de normalidade e, por extensão o de patologia, assim como nos leva a repensar as referencias simbólicas que definem o que, culturalmente, chamamos de noções de gênero. Nesta organização pulsional, evidencia-se a importância do fato psíquico e do discurso sobre o corpo, em detrimento de determinações naturais na construção do sentimento de identidade sexual. O que está em jogo é a intricada questão da assunção subjetiva do sexo, embora, evidentemente, esta questão não seja específica ao transexualismo: todo ser humano, macho ou fêmea do ponto de vista biológico, terá que tornar-se, subjetivamente, homem ou mulher, o que, como a clínica nos informa, não é uma evidência em si (Ceccarelli, 2008).
O sentimento de pertencer ao outro sexo presente no transexual é tão antigo quanto a sexualidade humana (Green, 1969). Relatos mitológicos, fontes literárias e antropológicas falam de personagens que se viviam regularmente, ou definitivamente, como sujeitos do outro sexo, dizendo sentirem-se como do outro sexo. Nesta perspectiva, o que hoje chamamos de ‘transexualismo’ não é próprio nem a nossa época e nem de nossa cultura: o que é recente é a possibilidade de ‘mudar de sexo’ graças às novas técnicas cirúrgicas e a hormonoterapia.
Contudo, como vimos na história de Thomas Beatie, o transexual não ‘viaja’, como no mito de Tirésias, através da sexuação. Por mais bem sucedida que for a cirurgia, ela só intervirá na dimensão morfológica mudando as insígnias de gênero de um sexo pelas aparências do outro sexo. Mas, deixe intacto o que marca o sexo do sujeito: o cromossomo XY ou o XX. A ‘mudança de sexo’ de Thomas Beatie deve ser entendida como uma ‘mudança de fachada’ – de ‘envelope’, como dizem alguns transexuais -, afetando apenas a sua aparência exterior.
Lembremos ainda que o tratamento hormonal necessário para ‘mudar de sexo’ pode ter conseqüências imprevisíveis, e o passar dos anos reservar surpresas desagradáveis: há algum tempo, encontramos um transexual operado com sucesso há anos atrás. Devido à complicações e aos efeitos decorrentes da utilização prolongada de hormônios, este sujeito foi obrigado a interromper a hormonoterapia, o que provocou o retorno de alguns dos caracteres de seu sexo de origem – no caso, o masculino. Sua situação era bastante complicada: em seus documentos de identidade lia-se um nome feminino e via-se uma foto de mulher. Entretanto, em consequência das alterações físicas provocadas pela interrupção dos hormônios, ela não se reconhece na imagem que via de si mesma no espelho. Atualmente, observa-se uma tendência crescente em evitar a cirurgia, e em contentar-se com a mudança do sexo na certidão de nascimento, o que garante ao transexual a equivalência entre sua identidade sexual e social.
Nos estados intersexuais ocorre uma ambigüidade, ou mesmo uma ausência de representação sexual, devido a uma malformação dos órgãos genitais externos, o que faz emergir um real que não encontra simbolização nos universais da anatomia em relação às categorias de homem e de mulher.
Quando a malformação é detectada após o nascimento, decidir-se-á pela realização, ou não, a cirurgia corretiva e dos tratamentos hormonais subseqüentes, na tentativa de reconstruir a anatomia que deveria estar ali[5]. Todo este procedimento requer uma longa discussão entre os pais e a equipe médica, pois o recém-nascido não tem, evidentemente, condições de opinar sobre seu futuro sexual. Estas intervenções não são sem riscos: as reduções clitorianas, assim com as plastias vaginais, podem destruir a sensibilidade desses órgãos. Da mesma forma, é difícil tornar funcional um pênis várias vezes operado.
Por outro lado, quando a malformação não é detecta ao nascimento, desfechos dramáticos podem ocorrer. O início de vida destes sujeitos não foi marcado por nenhum problema quanto ao investimento corporal, e a relação do sujeito com o seu corpo e com os investimentos libidinais dos pais não apresentaram conflitos maiores. Um belo dia entretanto, devido, por exemplo, a um exame ginecológico de rotina no início da puberdade, ou a um retardo incomum da menarca a jovem é informada que é portadora de uma ambigüidade sexual e, consequentemente, ela não pertence ao sexo que, até então, acreditava pertencer, e que sua identidade de gênero está em desacordo com sua anatomia. Desamparada pelo saber instituído, a jovem vive uma situação vertiginosa: “é importante que você saiba que, de fato, você não é uma mulher, mas um homem” (ou o contrario no de pseudo-hermafroditismo feminino). Muitas vezes na mesma consulta, ela é informada que uma intervenção cirúrgica se fará necessária para retirar os testículos, devido risco de malignização. E que, posteriormente, uma plastia vaginal, com a utilização de um fragmento do intestino, será feita para fins de relações sexuais. Mas, jamais ela poderá ter filhos. Todas estas informações podem produzir um desmoronamento de suas construções identitárias. Nada mais lhe serve como ponto de apoio: nem o corpo nem os diferencias externos do masculino e do feminino. As construções sintagmáticas utilizadas para se localizar no mundo revelam cruelmente seu caráter imaginário e enganoso, e tudo aquilo que o sujeito acreditava ser mostra-se sem valor. Em quem confiar? A que sexo pertenço? Desenganado pelo Outro, o sujeito não mais se reconhece. A desorganização psíquica provocada pela perda das referências identificatórias que sustentam o sentimento de identidade sexual pode ser de tal forma insuportável, que para continuar a existir psiquicamente o sujeito apresente um episódio psicótico.
Existe um movimento (Butler, 1990; Fausto-Sterling 2000) que defende que os intersexuados sejam deixados como estão. Sustenta-se que a atribuição de um sexo a um recém-nascido pseudo-hermafrodita constitui uma prática abusiva consequência do imperativo social que determina a existência de dois sexos mutuamente excludentes. Segundo esta corrente, os trabalhos em biologia partem de pressupostos culturais, nunca questionados, baseados em uma bipartição natural dos sexos. Pensar a sexuação sobre uma base binária equivale manter o imperativo da heterossexualidade normativa dominante, referência para toda e qualquer discussão sobre o tema. As cirurgias corretivas, entendidas como verdadeiras ‘mutilações’, impediriam que os intersexuados descobrissem uma ‘sexualidade pseudo-hermafrodita’. Este movimento, que criou uma associação internacional de ‘direito de gênero’, parte do principio que a sexualidade é um continuum e que é impossível traçar o destino sexual de uma criança quando de seu nascimento. O movimento milita pelos direitos dos hermafroditas, dos transexuais, dos travestis enfim, dos ‘transgêneros’. Trata-se, finalmente, de associação que defende que todos, e todas, que assim o desejarem, possam mudar de sexo, casarem-se com a pessoa do sexo que escolherem, e educar os filhos fora dos padrões convencionais que ditam as diferenças clássicas entre homem e mulher. Ou seja, a cada um o direito e a liberdade de se situar lá onde se crê pertencer, quando assim o quiser, sem uma referência explicita ao corte da sexuação (Ansermet, 2005).
A malformação responsável pela intersexualidade induz, no psiquismo, uma situação que guarda certas semelhanças com a que encontramos no transexualismo: ambos desenvolveram uma psicossexualidade em oposição ao sexo cromossômico. Nos intersexuais, ocorreu uma atribuição sexual em desacordo com o sexo cromossômico, mas em acordo com os genitais externos. Nos transexuais, a atribuição corresponde ao lugar que eles ocupam na dinâmica pulsional de quem os acolheu no mundo, mas em desacordo com o sexo anatômico, sem que exista qualquer malformação anátomo-biológica e/ou desequilíbrio hormonal.
O transexual procura ajuda para adaptar seu corpo a seu sentimento de identidade sexual; o intersexual é informado que seu corpo deve ser modificado para adaptar-se a seu sentimento de identidade sexual.
A riqueza das possibilidades de organizações simbólicas relativas ao masculino e ao feminino mostra toda a sua complexidade graças à antropologia. Com efeito, essa disciplina demonstra o quanto é impossível chegar-se a um consenso universal para masculino/feminino, masculinidade/feminilidade, o que nos leva ao antigo debate epistemológico, jamais completamente concluído, da polaridade natureza-cultura, cuja problemática embute outra questão ainda mais antiga: a da origem da espécie humana.
Estamos, aqui, diante de uma questão fundamental da contemporaneidade que afeta diretamente o nosso debate: o que especifica a natureza humana. Para Bertini (2009), a capacidade de se auto-inventar é a característica central do ser humano, e sua única universalidade está na aptidão inovadora de criar. O particular, o acidental, o singular, nada mais é do que uma expressão da potencialidade do universal; uma transformação deste universal.
Por falta de identidade, somos condenados à identificação, processo inconsciente que possui uma dinâmica própria: o Eu se constitui através de uma série de identificações. E por serem as identificações, ou melhor, os processos identificatórios, tributários da particularidade do simbólico da cultura onde emergem, é por este processo que a cultura “humaniza” o ser humano e mostra, ao mesmo tempo, a sua diversidade, desfazendo, assim, a ideia de uma natureza intrínseca e reguladora. Com isso, desfaz-se, igualmente,
de um instrumento que por muito tempo serviu para obrigar-nos a aceitar as formas de sociabilidade tradicional marcadas pelo dispositivo de Gênero e pelo discurso de ordem simbólica entendido, ao mesmo tempo, como horizonte intransponível e como realização de uma humanidade manifesta (Bertini, 2009, 143).
A constituição do Eu, assim como dos ideais e do superego, a constituição do sujeito em Lacan, é o resultado de um longo processo que começa antes do nascimento do bebê. Nenhum indivíduo nasce “sexuado”: tanto a sexuação quanto a subjetivação são produtos das relações que o recém-nascido estabelece com os outros, e cada sexo é, em certa medida, uma mascarada para o outro (Butler, 1990). As bases sobre as quais repousam as identificações constitutivas do Eu e as futuras escolhas de objeto são indefinidas e indeterminadas, posto que dependentes da polimorfia e da heterogeneidade das pulsões parciais e da multiplicidade das zonas erógenas.
O fato de nascermos “sexualmente indiferenciados”, e não menino ou menina,  faz com que a masculinidade e a feminilidade sejam pontos de chegada sem que exista uma unicidade. A questão, então, é saber como a partir da indiferenciação inicial  se produz este “artefato social que é o homem viril, ou uma mulher feminina” (Bourdieu, 2002, 42).
A partir daí, a questão “onde se situa esta diferença entre os sexos?” transforma-se em uma pergunta difícil: em sua intricada determinação temos que considerar o sexo morfológico, o cromossômico, o genético, o endocrinológico e as questões de gênero, as determinações sócias, a atribuição fálica, e a escolha do gozo… Ademais, ao tentarmos definir a morfologia dos ‘estado normais’, somos confrontados a uma tal complexidade de esquemas de enzimas e de genes, que mais parece que estamos lidando com um modelo utópico. Então, em que consiste diferença dos sexos? Onde ela se encontra? Na linguagem? Na lei? Será a diferença apenas um operador como sustentam alguns antropólogos?
Sem dúvida, a questão da diferença é complexa no processo de assunção subjetiva do sexo, posto ser tributária de um real incontornável e independente das formas biológicas, sociais e psicológicas das quais ela emerge. A diferença não é um dado localizável, e sua escolha será sempre incerta e ambígua, pois os caminhos da sexuação são sempre enigmáticos. Assim, a pergunta ‘o que é uma mulher?’ ou ‘o que é um homem?’ vai além da lógica fálica, e fica sem resposta. A cada um de situar-se nesta diferença – mais ou menos do lado dos homens ou das mulheres – de forma singular e imprevista.
Faz parte deste processo, a violência simbólica que consiste em um série de operações de diferenciação através das quais os signos mais exteriores do sexo são incentivados (o que inclui o que a criança deve e não deve fazer se for menino ou menina), conforme a distinção sexual socialmente criada (Bourdieu, 2002). Ao mesmo tempo, as condutas impróprias (ao sexo em questão) são interditadas ou desencorajadas, sobretudo as que “pertencem” ao outro sexo. É assim que alguns rituais que os jovens devem seguir para “tornarem-se homens” consistem, basicamente, na produção de uma ruptura com o universo maternal.
Os "rituais" reservados pelo exército aos recrutas nada deixam a desejar aos antigos rituais iniciáticos quando à dureza e a crueldade da disciplina imposta. Isto é particularmente verdadeiro nos Marines americanos: para se ter acesso ao grupo dos homens, dos "verdadeiros", é necessário despojar-se de toda contaminação feminina. A "filosofia" dos Marines é suficientemente clara: para se criar um grupo de homens, mate a mulher que está neles (Badinter, 1994).
Na perspectiva desenvolvida até aqui, tudo que é relativo às teorias de gênero no sentido amplo faz parte dos caminhos identificatórios constitutivos da psicossexualidade não havendo, portanto, razões para separar sexo e gênero. Talvez devêssemos falar de sexo/gênero: o gênero é, na realidade, o sexo social. Sendo a socialização sexuada, ela constrói o corpo como realidade sexuada resultado de uma visão que produz uma divisão sexuante. Se não existe, como vimos, algo como uma essência do masculino/masculinidade e nem do feminino/feminilidade, mas apenas a potencialidade de tornar-se, o gênero nada mais seria do que uma falsa alteridade que gera estratégias de dominação (Bertini, 2009). Apoiando-se em dados históricos, Thomas Laquer (1992) mostra que quase tudo que possa ser dito sobre o sexo – como o compreendamos e o vivenciamos – contem uma afirmação sobre o gênero, sobre o que é o masculino e o feminino.
A maneira como o sexual será captado pelos dispositivos da sexualidade dependem não apenas da sexuação mas, e sobretudo, da disposição perversa polimorfa da qual nos fala Freud, fazendo como que as regras do uso do sexo sejam criadas sócio-historicamente, logo, abertas a inúmeras possibilidades.
Seja como for, todo cuidado deve ser tomado neste tipo de debate para não corrermos o risco de que a diferença – seja ela de sexo ou de gênero – sirva para sustentar desigualdades graças a poderosos dispositivos da ordem simbólica, que são verdadeiras teologias apoiadas na antropologia estrutural e em certas práticas psicanalíticas. A diferença dos sexos e os atributos de gênero só podem ser pensados historicamente.

BIBLIOGRAFIA
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*Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Chercheur associé à l’Université Paris 7 Denis-Diderot; Professor Adjunto III da PUC-MG. Professor credenciado a dirigir pesquisas, e docente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA; Orientador de Pesquisa e Professor do Mestrado Profissional de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência da Faculdade de Medicina da UFMG; Pesquisador do CNPq.
E-mail: paulocbh@pq.cnpq.br
Homepage: www.ceccarelli.psc.br.


[1] A tradução de "male" por homem e de "female" por mulher não é adequada. O mais correto seria traduzir "male" por macho e "female" por fêmea. Entretanto, o uso destas palavras em português conotações ambíguas.
[2] Desconstruir um texto não é destruí-lo, e sim re-interrogar os pressupostos, para abrir novamente a partir dai, novas significações. Desta forma, coloca-se em crise seus conceitos e suas categorias mais seguras, para relançar o sentido e a precária verdade.
[3] Freud expõe longamente sobre a dificuldade de se encontrar uma significação satisfatória para "masculino" e "feminino" numa extensa nota de rodapé acrescentada em 1915 aos Três ensaios (O(p.226 ); e, também, em uma outra nota, ainda mais longa, no Capítulo VII de O mal-estar na Civilização ( p. 126 e seg.).
[4] A palavra "solução" parece-me melhor definir os destinos pulsionais: a forma como cada experiência a sua psicossexualidade é uma "solução", um sintoma, no sentido psicanalítico do termo, entre, de um lado, as demandas pulsionais e, de outro, os limites impostos pelo processo civilizatório como todos os elementos que ele contem. "Solução" no sentido matemático do termo: uma equação que comporta múltiplas variáveis frente às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será alcançada.
[5] O "estranho" (Unheimlich) faz retorno quando a anatomia falha: a desorientação da equipe médica frente a uma malformação anatômica é evidente quando não se consegue determinar, "a olho nu", o sexo anatômico do bebê.