O Brasil vem sendo caracterizado como a nova terra das oportunidades. Relações de trabalho metodicamente precarizadas, laços de produção semiformais, sistema normativo predatório, engenharia de controle planejada para a corrupção; tudo isso combinado com altos teores de empreendedorismo em estrutura de condomínio. Este cenário de capitalismo brazilianizado (com “z” mesmo), que estamos começando a exportar para o resto do mundo, está substituindo o antigo formato baseado na lei de Gérson. Não é mais tão consensual que o importante é levar “vantagem em tudo”. Agora é também desejável evitar perigos, controlar riscos e disciplinar as variáveis de contexto. Não deixa de ser curioso que enquanto uma parte de nosso povo tenha se dedicado à laboriosa ascensão social, como classe batalhadora, outra parte tenha criado uma cultura inteiramente nova de concursos públicos. Mas, a vida baseada em projetos, cuja máxima é: se não caçar não come, tem um limite. Assim como o namorador inveterado que cavalga no Tinder noite após noite, chega a desejar o casamento, quando chega ao limite da exaustão, o trabalhador de ocasião, empreendedor de si mesmo, chegará a sonhar com o concurso público, última forma remanescente e anacrônica de segurança eterna.
Em menos de quinze anos surgiu uma rede capilar e profissional de cursinhos preparatórios, sites e jornais especializados, métodos apostilados decorrentes da concorrência exponencial por vagas em cargos públicos. Há uma cultura de concursos que coloca à prova o desejo do candidato: devo ceder a um concurso mais fácil, mesmo sendo ele mais distante do que quero? Devo me submeter a mudar de estado para começar uma luta sem fim por remanejamentos e transferências? Devo, enfim, trabalhar com o que detesto para poder ter tempo e dinheiro para minha realização fora do trabalho? A vida de um “concurseiro” apresenta desafios e incompreensões generalizadas para o candidato e para os que estão à sua volta.
Há uma espécie de fascínio exercido pela ideia de grande prova, em uma época na qual se torna cada vez mais importante, mas menos claro, o valor de nossos atos. O heroísmo representado pela travessia do concurso recupera a narrativa do grande obstáculo, aliás, mimetizada pela maior parte de nossos jogos de video-game. Enquanto isso outras vidas ficam em estado de pendência: casamentos indefinidos, moradias suspensas, outras decisões adiadas. Isso concorre para uma perigosa fantasia, à qual gostamos de nos agarrar: a vida, a verdadeira vida, a vida real, vai começar daqui a pouco. O que tivemos até aqui foi uma espécie de ensaio preparatório, de parêntese preliminar. Ora, esta fantasia de renascimento, ou de nascimento, é algo que deve ser criteriosamente evitado. Ela empobrece a tal ponto o presente que o prazer retirado da existência fará falta para a arte do estudo. Ela cria uma espécie de desculpa genérica, para suspender o desejo, sobre a qual outros sintomas, mais antigos, logo se agregarão. Em terceiro lugar, a vida em forma de concurso cria uma bolha de isolamento moral que obriga o candidato, posteriormente, a ir em frente na sua escolha. Ora, nada que ocupe tão fortemente o desejo de alguém pode superar uma fase tão longa de sua transformação em demanda. Lutar pelo que se quer tão determinadamente deveria reservar um saudável recuo para a indeterminação, seja porque provas contêm inevitavelmente um elemento de sorte, seja porque, se não reconhecemos o imponderável de nosso desejo, é certo que ele se voltará contra nós.
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