O Brother, Where Art Thou?
A contextualização do repúdio ao trabalho forçado pelo ordenamento jurídico brasileiro é necessária para que se enfrente a discussão acerca dos projetos de lei que visam a sua aplicação como pena.
Carlos Eduardo Rios do Amaral
Não raras vezes projetos de lei são apresentados na Câmara dos Deputados ou no Senado Federal versando sobre a obrigatoriedade do condenado criminalmente de trabalhar para pagar pelas suas despesas dentro da prisão.
Acontece que, bem ou mal, nossa vigente Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente qualquer tipo de pena de trabalhos forçados. Desejou nossa Assembleia Nacional Constituinte à época que o Poder Público fosse eternamente o provedor da pessoa humana encarcerada. E mais, inseriu tal disposição constitucional no rol dos direitos e garantias fundamentais, ou seja, trata-se de cláusula pétrea, matéria assim intocável pelo legislador derivado.
Destarte, estabelecer, no Brasil, a obrigatoriedade do condenado criminalmente de trabalhar para pagar pelas suas despesas na prisão só sob a égide de outra Constituição. Qualquer diploma legislativo nesse sentido, mesmo pela via de emenda constitucional, é disposição normativa natimorta, que certamente será rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, pela unanimidade de seus juízes.
Trabalho voluntário, desejado pelo preso, a laborterapia, até mesmo como forma de remir, pela sua atividade, parte do tempo de execução da pena é outra história. Aliás, a garantia de trabalho ao condenado é um direito social que deve ser propiciado pelo Estado.
Naturalmente, qualquer dispositivo da Lei de Execuções Penais, de 1984, que sugira ou determine o exercício de trabalhos forçados pelo preso, seja qual for a sua causa ou razão, deve ser considerada não recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
Quando das discussões parlamentares, à época da Assembleia Nacional Constituinte, o Deputado Hélio Rosas (PMDB/SP) apresentou a emenda nº 11235, em 12/07/1987, propondo ao preso o regime de execução de trabalhos forçados, em regime especial, diversos daquele aplicável aos trabalhadores urbanos e rurais.
Em sua justificativa, discorria o Deputado Hélio Rosas:
“A propositura visa simplificar o dispositivo, apenas relacionando as penas e deixando sem detalhamento ao legislador ordinário. Além disso, agrega a essa relação a pena de execução de trabalhos forçados. É absurda e acintosa a ociosidade dos presidiários. Como se sabe, a ociosidade é a mãe de todos os vícios e o trabalho um fortíssimo instrumento de reeducação.Paralelamente, o custo de manutenção de um presidiário é muito superior à remuneração recebida por um imenso número de trabalhadores, pais de família. É justo, portanto, que o preso seja obrigado a trabalhar, contribuindo, dessa forma, para seu próprio sustento.É preciso deixar claro que não se aplicam aos presidiários os direitos e garantias conferidos aos trabalhadores em geral, urbanos e rurais, sem o que a aplicação de tais penas seria inviável.Não se pretende reduzi-los à condição de escravos. Por isso se remete ao legislador ordinário o estabelecimento do regime jurídico específico dessa forma de trabalho, que, embora compulsório há de respeitar a dignidade e a saúde física e mental, além de outros direitos previstos na letra ‘q’.O que se pretende, em síntese, é que o trabalho não seja apenas um direito do sentenciado, mas um dever que lhe possa ser compulsoriamente imposto, sob pena de arcar com as sanções inerentes à desobediência.”.
A emenda proposta pelo Parlamentar paulista foi singelamente rejeitada pela Assembleia Nacional Constituinte, nestes termos:
“A redação proposta não se coaduna com o espírito da nova Carta. Pela rejeição, portanto”.
Vivíamos em 1987 a comemoração generalizada dos 100 anos da abolição da escravatura, o clima de euforia social e cultural com o fim de 21 anos de ditadura militar no Brasil, o processo de abertura política e redemocratização na América Latina, a luta de Nelson Mandela contra o apartheid na África do Sul, a derrocada da Guerra Fria, o movimento new wave e a disseminação de cultura pop, o fim da censura nos meios de comunicação, a liberdade religiosa e a revolução sexual dos relacionamentos interpessoais permeavam as ideias do constituinte originário e de toda a sociedade civil dos anos 80.
No final da década de 80, a ideia de trabalhos forçados sugeria, na cabeça das pessoas, de modo generalizado, o retrocesso de tudo aquilo conquistado pelo povo brasileiro com o fim da ditadura militar, insinuava a manutenção do preconceito racial no País. Ora, em plenos anos 80, p. ex., muitos elevadores denominados “sociais”, nos condomínios da classe média e alta, eram de utilização proibida por empregadas domésticas, que, obrigatoriamente, só podiam utilizar os elevadores de serviço, destinados ao transporte do lixo das unidades residenciais e de materiais. E mais, em muitos edifícios antigos a porta desses elevadores não dava para o mesmo corredor, o elevador de serviço tinha um acesso independente, pela porta dos fundos dos apartamentos.
Não vivíamos numa democracia ainda consolidada em 1987, ainda não havíamos escolhido nosso primeiro presidente civil eleito pelo voto direto após a ditadura. O povo temia que qualquer pena de trabalhos forçados pudesse ser usada e manipulada contra os próprios interesses democráticos que cresciam cada vez mais à época. Esse era o espírito que construía a Constituição Federal de 1988.
Assim, durante a conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte acabou vingando, no Parecer Final, a vontade da maioria dos Deputados Federais e Senadores que aboliam qualquer tipo de pena de trabalhos forçados no Brasil:
“Admitirmos, agora, a adoção da pena de trabalhos forçados será regredirmos no tempo, negando todos os progressos da ciência penal.”.
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