domingo, 31 de agosto de 2014

O comportamento de beber entre dependentes de álcool: estudo de seguimento



Drinking behaviour between alcohol users: a follow-up study


Andrezza FontesI; Neliana Buzi FiglieII; Ronaldo LaranjeiraIII
IPsicóloga, especialista em dependência química e mestranda pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) da Unifesp
IIPsicóloga, coordenadora do Ambulatório de Álcool da UNIAD da Unifesp
IIIProfessor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, coordenador da UNIAD da Unifesp



RESUMO
CONTEXTO: Dependentes de álcool que procuram tratamento especializado apresentam sucesso modesto nos programas de tratamento. Dependentes de álcool com doenças gastrointestinais demonstram pior prognóstico e taxa de mortalidade aumentada quando comparados a pacientes da gastroenterologia que não consomem álcool e com a população geral.
OBJETIVO: Apresentar os resultados de um estudo que visou a verificar o que aconteceu com dependentes de álcool após a procura de tratamento em dois ambulatórios.
MÉTODOS: Estudo de seguimento com 228 dependentes de álcool (114 do ambulatório especializado no tratamento do alcoolismo e 114 do ambulatório de gastroenterologia, ambos do Hospital São Paulo da Unifesp).
RESULTADOS: Foi encontrado alto índice de mortalidade da amostra (15%; n = 34), destes, 70,5% (n = 24) eram da gastroenterologia. Os pacientes do ambulatório especializado no tratamento do alcoolismo, mais jovens, apresentaram dependência de álcool mais grave e sofreram mais problemas conseqüentes do hábito de beber nos aspectos emocionais e de saúde mental. No grupo da gastroenterologia, ocorreu diminuição da dor, mas, em contrapartida, diminuição na qualidade dos aspectos sociais.
CONCLUSÃO: Verificou-se a necessidade de constante adequação das intervenções às necessidades dos dependentes de álcool, de implantação de novas abordagens de tratamento com o intuito de melhorar a efetividade e de intervenções psicossociais que visem ao consumo de bebidas no ambulatório de gastroenterologia.
Palavras-chave: Bebidas alcoólicas, alcoolismo, gastroenterologia, tratamento, estudos de seguimento.

ABSTRACT
BACKGROUND: Alcohol dependents seeking specialized alcohol treatment present modest rates of success in treatment programs. Alcohol dependents with gastrointestinal diseases present a worse prognostic and increased mortality rate compared with other non-alcoholic gastroenterology outpatients and the general population.
OBJECTIVE: To present the results of a study verifying outcomes of alcohol dependents following their treatment in one of two different clinic types.
METHODS: Follow-up study on 228 alcohol dependents: 114 from a specialist alcohol treatment service and 144 from a gastroenterology clinic, both located within the Hospital São Paulo (Unifesp).
RESULTS: A high rate of mortality was found for the overall sample (15%; n = 34), with 70.5% (n = 24) of these deaths occurring in the gastroenterology clinic. The outpatients from the specialist alcohol treatment service were younger and more severely dependent on alcohol, having suffered from more alcohol-related problems in both emotional and mental health aspects. Patients in the gastroenterology group reported less pain but greater social compromise.
CONCLUSION: Constant adaptation of interventions to meet alcohol dependents' needs was evidenced, along with a need to implement more effective treatment approaches, coupled with psychosocial interventions to tackle drink use within the gastroenterology clinic itself.
Key-words: Alcoholic drinks, alcoholism, gastroenterology, treatment, follow-up studies.



Introdução
A dependência do álcool acomete de 10% a 12% da população mundial (OMS, 1999) e, de acordo com o primeiro levantamento domiciliar sobre o uso de drogas (Carlini et al., 2002), 11,2% dos brasileiros que vivem nas 107 maiores cidades do País. No entanto, a porcentagem de pessoas que já havia recebido algum tratamento para o uso de álcool foi de apenas 4%. Diante de tal situação, pode-se concluir que os problemas relacionados ao consumo de álcool são igualmente alarmantes e responsáveis por mais de 10% dos problemas totais de saúde no Brasil (Meloni e Laranjeira, 2004).
Entre outras doenças, o consumo do álcool pode causar importantes alterações na mucosa gastrointestinal, no pâncreas e no fígado (Seitz e Homann, 2001). Segundo o consenso sobre a síndrome da abstinência do álcool (Laranjeira et al., 2000), as principais comorbidades clínicas do sistema gastrointestinal associadas ao consumo de bebidas alcoólicas são: pancreatite crônica, esteatose hepática, hepatite alcoólica, hemorragia digestiva, cirrose hepática com ou sem hepatite alcoólica, gastrite, esofagite de refluxo e tumores.
Bouchier et al. (1992), Yuan et al. (1997), Pessione et al. (2003), Jepsen et al. (2003), Ramstedt (2003), Sorensen et al. (2003) e Dam-Larsen et al. (2004), em seus estudos (incluindo aqueles de seguimento), apontam que indivíduos com doenças gastrointestinais que abusam do álcool apresentam pior prognóstico e taxa de mortalidade aumentada quando comparados àqueles que não consomem álcool e à população geral.
Uma pesquisa realizada em um hospital da Escócia revelou que circunstâncias relacionadas ao álcool representavam 51% das internações na gastroenterologia, e 65% desses pacientes apresentavam doenças hepáticas alcoólicas (Waddell e Hislop, 2003). No Brasil, estudos também mostram prevalência elevada de pacientes com problemas relacionados ao álcool em ambulatório de gastroenterologia quando comparado a outros ambulatórios do hospital geral (Figlie et al., 1997; Turisco et al., 2000).
Ainda no Brasil, o álcool é responsável por mais de 90% das internações hospitalares por dependência (Carlini et al., 2002). Em relação aos pacientes internados por problemas psiquiátricos, aproximadamente 35% apresentam problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas, sendo 90% ligados ao consumo de álcool (Noto e Carlini, 1995). No entanto, a maior parte daqueles que procuram tratamento opta por ajuda médica geral e não por tratamento especializado em saúde mental (Turisco et al., 2000).
Em relação aos que buscam tratamento especializado, estudos de seguimento internacionais demonstram que as taxas de abstinência permanecem abaixo de 20%. Em um estudo do final da década de 1970 (Orford e Edwards, 1977), observou-se que, após 2 meses, 55% dos pacientes que receberam tratamento preencheram critérios para o sucesso (menos de 10 dias de ingestão de bebidas em 2 meses); em 6 meses, essa cifra diminuiu para 35%; ao término de 2 anos, para 20%. Ao final desse estudo, o padrão de consumo alcoólico da amostra não submetida a tratamento foi idêntica à amostra sujeita a tratamento.
Após duas décadas, estudos de seguimento apresentaram índices semelhantes. Um deles, com duração de 20 anos (Edwards e Dare, 1997) e amostra de 100 homens com dependência alcoólica, idade média de 42 anos, constatou que 44% morreram, 17% ainda estavam bebendo de modo dependente e 17% estavam abstinentes. Nos 11% que haviam chegado a beber socialmente estavam inclusos sujeitos cuja perda de tolerância ou estado de saúde física impediam qualquer coisa além de uma ingestão moderada. Outro estudo (Paille et al., 1995) encontrou 13,3% de abstinência no seguimento de 1 ano. Em 2003, uma pesquisa (Moss e Moss, 2003) com pacientes tratados ambulatorialmente por até 8 semanas encontrou 25,9% de abstinência. Esses dados praticamente não revelam evolução no que diz respeito ao sucesso dos tratamentos com o passar dos anos.
Mais recentemente, Bottlender e Soyka (2005b), em um estudo de seguimento bem controlado com uma amostra de 103 dependentes de álcool entrevistados 6, 12, 24 e 36 meses após o fim do tratamento, que investigou preceptores de recaída após 3 anos do término de um programa de tratamento ambulatorial, apresentaram resultados mais animadores quando comparados aos anteriores: 74 pacientes terminaram o programa de tratamento; após 36 meses, 2 pacientes morreram, 88% participaram da entrevista de seguimento, 43% estavam abstinentes, 45% tinham recaído e 12% apresentaram sucesso no tratamento. As variáveis significativas para a predição da recaída foram abandono do tratamento, sexo feminino e poucos eventos de vida positivos.
Nesse contexto, o estudo em questão teve como principal objetivo avaliar o que acontece com os pacientes dependentes de álcool, no curso natural da vida, após procura de tratamento em um ambulatório especializado no tratamento do alcoolismo e em um ambulatório de gastroenterologia.

Métodos
Amostra
O estudo foi realizado no Hospital São Paulo da Unifesp, onde foram pesquisados 228 dependentes de álcool; 114 pacientes do ambulatório de gastroenterologia e 114 do ambulatório especializado para tratamento do alcoolismo (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas – UNIAD), compondo uma amostra de conveniência. Cerca de 33 meses (dp = 1,7) após a primeira consulta nos referidos serviços, esses pacientes foram novamente contatados por entrevista feita no próprio local de tratamento, por telefone ou na residência.
O critério de inclusão utilizado consistia em pacientes dependentes de álcool que estavam passando pela primeira vez em consulta em ambos os ambulatórios.
Tipo de estudo
Estudo de seguimento, no qual os pacientes foram entrevistados na primeira consulta do serviço, onde foi aplicado inicialmente o protocolo. O seguimento foi realizado após intervalo de 30 a 36 meses, média de 33,2 meses (dp = 1,6) no ambulatório especializado e de 32,7 meses (dp = 1,7) no de gastroenterologia.
Instrumentos
Foi utilizada uma entrevista estruturada contendo: dados demográficos, Short, Alcohol Dependence Data Questionnaire – SADD (Jorge e Masur, 1985), padrão de consumo de álcool (Helander e Tabakoff, 1996), The Drinker Inventory of Consequences – DrInc (Miller et al., 1995), Form Health Survey – SF-36 (Cicconeli et al., 1999), The Stages Readiness and Treatment Eagerness Scale – SOCRATES (Miller, 1995) e University of Rhode Island Change Assessment Scale – URICA (McConnaughy et al., 1983).
Análise estatística
As respostas foram categorizadas e analisadas descritivamente por meio do programa Statistical Package Science Social (SPSS). Para a comparação dos grupos, foi utilizado o teste T de Student, para variáveis contínuas que apresentaram distribuição normal.

Resultados
No grupo do ambulatório especializado, o intervalo médio para a realização da entrevista de seguimento foi de 33,2 meses (dp = 1,6) e na gastroenterologia, de 32,7 meses (dp = 1,7). Embora o intervalo de tempo entre a primeira entrevista e o seguimento não tenha sido exatamente o mesmo para todos os pacientes, os grupos não foram avaliados em intervalos diferentes.
Em virtude de alguns pacientes terem abandonado ou concluído o tratamento, o seguimento foi realizado no próprio local de tratamento, por telefone ou na residência, evitando perdas na amostragem.
Dos 228 pacientes que configuravam a amostra inicial desse estudo, 85% (n = 194) foram avaliados no seguimento, pois 15% (n = 34) morreram. Do total de óbitos observados, 70,5% (n = 24) eram da gastroenterologia e 19,5% (n = 10) do ambulatório especializado, ou seja, 21% (n = 24) da amostra da gastroenterologia e 9% (n = 10) da amostra do ambulatório especializado morreram.
Dados sobre os óbitos e o tratamento dos falecidos foram obtidos por meio de contato telefônico com um familiar. As principais causas de óbitos entre os pacientes da gastroenterologia foram cirrose alcoólica (37,5%; n = 9), pancreatite (21%; n = 5) e hepatite alcoólica (12,5%; n = 3). Entre os pacientes do ambulatório especializado, figuraram os acidentes (40%; n = 4) e os assassinatos (30%; n = 3). Quanto ao tratamento, verificou-se que a maioria (85%; n = 29) das pessoas falecidas abandonou o tratamento logo após as primeiras consultas, sendo a recaída o principal motivo de abandono (32%; n = 26).
Dados demográficos
Nos dados demográficos não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos, conforme mostra atabela 1, com exceção da idade (p = 0,002), cuja média foi de 49 anos (dp = 10,8) para os pacientes da gastroenterologia e de 42,5 anos (dp = 9,8) para os pacientes do ambulatório especializado. Em ambos os grupos prevaleceram indivíduos brancos, não casados, que cursaram até o ensino fundamental e possuíam renda familiar de um a dez salários mínimos.
A severidade da dependência alcoólica apresentada nos dois grupos revelou diferença estatisticamente significativa (p = 0,0003). Entre os pacientes do ambulatório especializado, prevaleceu dependência grave (61,5%; n = 64); naqueles da gastroenterologia, dependência moderada (40%; n = 36).
Padrão de consumo de álcool
Na primeira avaliação, observou-se que o grupo do ambulatório especializado apresentou índice superior de consumo em termos de quantidade nos últimos 30 dias (média de 245,5 doses; dp = 238,3) e de total mensal em doses no período da vida em que mais bebeu (média de 894,4 doses; dp = 587,1), quando comparado com o grupo da gastroenterologia, que apresentou médias inferiores: 80,7 doses; dp = 134,4 e 610,4 doses; dp = 508,9, respectivamente.
Houve uma diminuição dos escores de consumo no mês em ambos os ambulatórios: -50,5; dp = 136,6 na gastroenterologia e -70,6; dp = 194,6 no serviço especializado, contudo, sem significância estatística (p = 0,413).
Problemas e conseqüências do hábito de beber (DrInC)
Nas duas avaliações, o grupo do ambulatório especializado apresentou escores maiores quando comparado com o grupo da gastroenterologia, com índices superiores de problemas em aspectos físicos, relacionamento interpessoal e intrapessoal, controle de impulsos e responsabilidade social.
Os pacientes da gastroenterologia tiveram maior diminuição dos problemas do que aqueles do grupo do serviço especializado nos aspectos físicos, no controle dos impulsos e no escore total, como mostra a tabela 2.
Qualidade de vida (SF-36)
Na primeira avaliação, o grupo do ambulatório especializado apresentou escores superiores em capacidade funcional (média de 79,7; dp = 21,5) e em aspectos físicos (média de 58,1; dp = 39,9) quando comparado ao grupo da gastroenterologia (média de 66,9; dp = 25,69 e média de 40,6; dp = 39,5, respectivamente). Nos demais aspectos não houve diferenças entre os grupos.
Na segunda avaliação, o grupo do ambulatório especializado apresentou qualidade superior em capacidade funcional (média de 79,7; dp = 21), aspectos físicos (média de 57,8; dp = 39,8) e dor (média de 58,8; dp = 28,2).
Ocorreram mudanças significativas entre a primeira avaliação e o seguimento no grupo da gastroenterologia, como a positiva diminuição da dor (p = 0,001), mas, em contrapartida, houve também uma diminuição na qualidade dos aspectos sociais (p = 0,003), como ilustra a tabela 3.
Motivação e estágios de mudança (SOCRATES E URICA)
Em relação à motivação para o tratamento, na primeira avaliação, o grupo do ambulatório especializado apresentou maior índice de reconhecimento e ambivalência (média de 34,2; dp = 6,1) do que o grupo da gastroenterologia (média de 29,9; dp = 6,6).
Na segunda avaliação, o resultado se repete, com o grupo do ambulatório especializado apresentando médias superiores em reconhecimento e ambivalência (média de 29,5; dp = 6,15) quando comparado ao grupo da gastroenterologia (média de 24,7; dp = 5,3). Na ação, não houve diferença entre os grupos em nenhum dos momentos da avaliação.
Quanto aos estágios de mudança, tanto na entrevista inicial como no seguimento, os índices de contemplação, ação e manutenção na URICA foram maiores no grupo do ambulatório especializado, enquanto os índices de pré-contemplação foram maiores no grupo da gastroenterologia. Todavia, não existiram mudanças significativas e positivas entre os grupos da primeira para a segunda avaliação como ilustra a tabela 4.

Discussão
O propósito deste trabalho foi avaliar o que ocorre aos pacientes dependentes de álcool, no curso natural da vida, após procura por tratamento, comparando dois grupos: os tratados em ambulatório especializado e em ambulatório de gastroenterologia.
Vale ressaltar que a análise dos resultados apresentados deve ser feita com cautela dadas as limitações apresentadas pelo estudo: utilização de uma amostra de conveniência e ausência de controle sobre as diversas etapas do tratamento. Se isso, por um lado, caracteriza uma limitação, por outro, pode ser uma vantagem, uma vez que observamos os pacientes no curso natural de suas vidas.
Entre os resultados, destacou-se o alto índice de mortalidade entre os alcoolistas da amostra (15%; n = 34), sendo a maioria do grupo da gastroenterologia. As causas dos óbitos desse grupo foram, em geral, cirrose, pancreatite e hepatite alcoólica. Tais dados são semelhantes aos de estudos internacionais que revelaram que indivíduos com doenças gastrointestinais que abusam do álcool apresentam pior prognóstico e taxa de mortalidade aumentada quando comparados àqueles que não consomem álcool e à população geral (Bouchier et al., 1992; Yuan et al., 1997; Pessione et al., 2003; Jepsen et al., 2003; Ramstedt, 2003; Sorensen et al., 2003; Dam-Larsen et al., 2004).
Entre os pacientes do ambulatório especializado, o índice de mortalidade foi inferior, ainda que preocupante (9%; n = 10). Esses faleceram predominantemente por acidentes e assassinatos, remetendo a uma associação indireta com o consumo de álcool, uma vez que indivíduos alcoolizados apresentam maior probabilidade de sofrer qualquer tipo de acidentes, se envolver em brigas e em situações violentas.
Foram encontradas diferenças significativas entre as populações estudadas. Os pacientes do ambulatório especializado, apesar de serem mais jovens, apresentaram dependência de álcool mais grave, pareceram ser bebedores mais pesados e sofrerem mais problemas conseqüentes ao hábito de beber no que diz respeito aos aspectos emocionais e de saúde mental, confirmando a teoria de que quanto maior o volume médio consumido, mais problemas de saúde ocorrem (Rehm et al., 2003).
Os pacientes da gastroenterologia eram mais velhos, provavelmente bebiam há mais tempo e marcaram predominantemente dependência moderada. De modo geral, apresentaram menos problemas e conseqüências decorrentes do hábito de beber e da primeira para a segunda entrevista apresentaram diminuição superior desses problemas, principalmente nos aspectos físico e de controle dos impulsos. Esse dado provavelmente se deve ao fato de eles estarem bebendo em menor quantidade em relação aos pacientes do ambulatório especializado. Foi levantada a hipótese de que os pacientes desse ambulatório que não pararam de beber ou que não deram continuidade ao tratamento tiveram os problemas de saúde agravados, provocando a morte.
Em relação à qualidade de vida, na primeira avaliação, o grupo do ambulatório especializado apresentou escores superiores em capacidade funcional e aspectos físicos. No seguimento, esse grupo apresentou qualidade superior nesses mesmos aspectos e em dor. No grupo da gastroenterologia, com significância estatística, ocorreu diminuição da dor, mas, em contrapartida, redução na qualidade dos aspectos sociais. Estudos internacionais encontraram dados semelhantes e confirmam que bebedores que desenvolveram doença hepática tendem a ser menos dependentes do álcool e a sofrerem menos conseqüências psicológicas e sociais quando comparados a bebedores que receberam tratamento psiquiátrico (Wodak et al., 1983).
Em relação à diminuição da qualidade dos aspectos sociais, lembrando que o álcool exerce uma função de mediador social em nossa e em muitas outras culturas, esse resultado torna-se compreensível. Na prática clínica, observa-se que dependentes e abusadores de álcool, ao pararem de beber, sentem-se socialmente prejudicados, uma vez que seus compromissos sociais em geral estão relacionados ao consumo alcoólico.
No que diz respeito aos estágios de mudança, provavelmente a associação dos problemas com a bebida fez os pacientes do ambulatório especializado perceberem a necessidade de procurar ajuda para mudar o comportamento de beber. Nesse sentido, não é surpresa o fato de terem apresentado maiores índices de contemplação (estágio em que o indivíduo admite problemas em relação ao álcool, porém se encontra ambivalente quanto às vantagens e às desvantagens do consumo), ação (estágio em que o indivíduo faz tentativas para mudar o comportamento aditivo) e manutenção (estágio em que as mudanças foram realizadas) nos estágios de mudança.
O grupo da gastroenterologia que teve menos problemas, principalmente emocionais, relacionados ao álcool apresentou maiores índices de pré-contemplação (estágio de mudança mais baixo, em que o indivíduo não identifica os aspectos negativos do uso nem as vantagens de parar de beber) nos dois momentos da entrevista.
Esse resultado é intrigante pelo fato de esses pacientes terem apresentado sérios problemas físicos, com necessidade de ajuda médica especializada, e demonstrado diminuição de consumo alcoólico. Era esperado que apresentassem escores mais altos em ação e manutenção, mesmo que tivessem parado de beber exclusivamente motivados pelo tratamento dos sintomas físicos, uma vez que na ocasião do seguimento estavam abstêmios ou bebendo em menor quantidade.
Foi levantada a hipótese de que, pelo fato de esses pacientes serem menos dependentes do álcool, não estivessem fazendo a devida associação do comportamento de beber com os sintomas físicos. Farid et al. (1998) confirmam a dificuldade de bebedores que desenvolveram doença hepática em relacionar o comportamento de beber ao estado de saúde.
Perante essa situação, concluímos que a doença física e o tratamento médico atuaram apenas como uma razão para a abstinência temporária, mesmo que por tempo prolongado, deixando os pacientes vulneráveis quanto à recidiva do consumo de álcool.
Os serviços de gastroenterologia necessitam aprimorar a organização para melhor atender às necessidades desses pacientes, oferecer algum tipo de intervenção que possa atuar no alcoolismo visando à abstinência, conseqüentemente à melhora do prognóstico dos sintomas gastrointestinais e à maior chance de sobrevivência (Schenker, 1984; Figlie, 2005).
Estudos têm demonstrado que pacientes que sofrem de dependência de álcool respondem a intervenções breves feitas por médicos e outros profissionais de saúde (Institute of Medicine, 1990). Educação sobre os efeitos do álcool, aconselhamento básico sobre como ficar abstinente ou diminuir o consumo, monitoramento das complicações médicas relacionadas e acompanhamento ambulatorial feito pelo clínico são eficazes na redução da morbidade e da mortalidade relacionadas ao álcool.
Recentemente, Cuijper et al. (2004) realizaram uma metanálise com o objetivo de investigar se as intervenções breves para problemas decorrentes do uso de álcool podem resultar na redução da taxa de mortalidade dos pacientes. Esse estudo encontrou claras indicações de que essas intervenções possuem um efeito sobre a mortalidade. Estimou-se que a mor-talidade entre bebedores pesados reduziu entre 23% e 36%, constituindo um índice considerável. Tal resultado é importante primeiro por sua relevância clínica: tal redução é mensurável e atesta a importância da realização de exames para o diagnóstico de padrões problemáticos do uso de álcool e intervenções breves como rotina nos procedimentos em saúde; e em segundo lugar, por ilustrar como as intervenções psicossociais podem ter um impacto importante sobre os pacientes, não apenas produzindo resultados nas esferas emocionais e sociais (área que se apresentou comprometida no seguimento dos pacientes da gastroenterologia), mas efetivamente reduzindo a mortalidade entre esses indivíduos (Cuijper et al., 2004).
Quanto aos pacientes do ambulatório especializado, estudos mostram crescente evidência de que a eficácia do tratamento ambulatorial pode ser comparável a modalidades de tratamentos mais intensivos (Bottlender e Soyka, 2005a), como a internação, ao menos para subgrupos de dependentes de álcool, mas, tendo em vista os resultados desse estudo, não animadores, torna-se imprescindível a busca constante de adequação das intervenções às necessidades dos dependentes, como também a identificação e a implantação de novas abordagens de tratamento.
Estudos de seguimento e revisão mostram que os programas de tratamento para dependentes de álcool têm tido sucesso modesto (Orford e Edwards, 1977; Paille et al., 1995; Edwards e Dare, 1997; Moss e Moss, 2003), com baixos índices de abstinência e altos indicadores de abandono do tratamento. No estudo em questão, a principal razão para o abandono foi uma recaída logo após as primeiras consultas; supomos que isso tenha um efeito prejudicial à motivação inicial para o tratamento, o que ressalta a importância de se utilizarem técnicas de prevenção de recaída e de entrevista motivacional o mais precocemente possível.
Mesmo o álcool exercendo grande peso como causa e manutenção de problemas à saúde (Laranjeira et al., 2000; Seitz e Homann, 2001), a história natural do abuso de álcool ainda é pouco compreendida, e o motivo principal é a escassez de estudos prospectivos, principalmente nacionais, e bem controlados de longa duração a ele relacionados.
Os estudos de seguimento procuram observar a história natural das doenças ou o grau de sucesso de abordagens terapêuticas instituídas. São, desse modo, uma importante ferramenta de pesquisa. O estudo de seguimento de George Vaillant com usuários de álcool é o mais antigo e conhecido na área das dependências químicas. O pesquisador já publicou diversos artigos sobre as diversas etapas do seu seguimento, nas quais, entre outras informações relevantes, relatou alta taxa de mortalidade e abstinência estável mais freqüente a partir da dependência do que do abuso (Vaillant, 2003). Entretanto, estudos atuais se fazem necessários diante da gravidade da questão, principalmente no que diz respeito à investigação dos tratamentos mais efetivos, bem como em relação a novas abordagens. Perante tudo isso, é inegável a importância da implementação de alternativas preventivas.

Conclusão
Apesar das limitações do estudo (utilização de uma amostra de conveniência e ausência de controle sobre as diversas etapas do tratamento), os dados reforçam de forma alarmante que o consumo de álcool tem considerável peso como causa de adoecimento e morte (Meloni e Laranjeira, 2004; Seitz e Homann, 2001), e ante essa situação o alto índice de abandono de tratamento torna-se ainda mais preocupante.
Considerando que grande parte dos dependentes de álcool é vista em ambulatórios médicos gerais, é iminente a necessidade de intervenções no consumo de bebidas alcoólicas dessa população, que busca apenas o tratamento para doenças gastrointestinais, uma vez que o tratamento médico pode ser uma razão para a abstinência temporária de álcool.
Quanto aos pacientes que procuram ajuda especializada, é imprescindível a busca constante de adequações das intervenções às necessidades dos dependentes de álcool por parte dos profissionais da saúde, como também a identificação e a implantação de novas abordagens de tratamento mais efetivas, objetivando técnicas de prevenção à recaída e entrevista motivacional com o intuito de melhorar a eficácia.
Financiamento: FAPESP processo nº 00/04968-0.

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