RESULTADOS DE UMA AVALIAÇÃO MULTIDISCIPLINAR
HELGA C. ALMEIDA SILVA*, MARGARETE J. CARVALHO**, CARMEM L. JORGE*, MALEBRANCHE B. CUNHA NETO***, PLÍNIO M. GOES****, ELZA M.T. YACUBIAN*****.
RESUMO - Onze pacientes do sexo masculino com epilepsia e queixa de alteração sexual foram submetidos a avaliação multidisciplinar. A média de idade foi 27 anos (20-34), a duração média da epilepsia foi 19 anos (0,5-32) e a frequência média das crises foi duas por semana (0-7). Dez pacientes apresentavam crises parciais e um, mioclônicas. Dez pacientes recebiam drogas antiepilépticas (difenil-hidantoína - 1, carbamazepina - 8, clonazepam - 3, clobazam - 2, valproato - 3, vigabatrina - 1). Segundo os critérios do DSM III ¾ R, as queixas foram disfunção erétil (9), redução da libido (4), froteurismo (4), inibição do orgasmo (3), ejaculação precoce (3), fetichismo (2), voyeurismo (2), exibicionismo (2), pedofilia (1) e aversão sexual (1). A avaliação endocrinológica mostrou hipogonadismo hipogonadotrófico em dois pacientes. A avaliação urológica revelou disfunção erétil orgânica em outros dois. Em um paciente a alteração sexual foi considerada psicogênica. Em seis pacientes não foi possível estabelecer diagnóstico etiológico definitivo. Este estudo mostra que a alteração da sexualidade na epilepsia é multifatorial e necessita de abordagem multidisciplinar.
PALAVRAS-CHAVE: epilepsia, sexualidade, endocrinologia, urologia.
Sexual disorders in epilepsy: results of a multidisciplinary evaluation
ABSTRACT - Eleven epileptic men who complained of epilepsy and sexual dysfunction were submitted to a multidisciplinary evaluation. Mean age was 27 years (20-34), mean epilepsy duration was 19 years (0,5-32) and the mean seizure frequency was two by week (0-7). Ten patients had partial seizures and one other had myoclonic epilepsy. Ten patients were treated with antiepileptic drugs (phenytoin - 1, carbamazepine - 8, clonazepam - 3, clobazam - 2, valproic acid - 3, vigabatrin - 1). As defined in the DSM III-R, the complaints were: erectile disorder (9), hypoactive sexual desire disorder (4), frotteurism (4), inhibited orgasm (3), premature ejaculation (3), fetishism (2), voyeurism (2), exhibitionism (2), pedophilia (1) and sexual aversion disorder (1). Two patients showed hypogonadotropic hypogonadism on endocrinologic screening. Urological evaluation disclosed organic erectile dysfunction in other two. One patient had a diagnosis of psychogenic sexual disorder. In six patients a conclusive etiologic diagnosis was not reached This report shows the multifactorial nature of sexual disorder in epilepsy and underlies the need of a multidisciplinar evaluation.
KEY WORDS: epilepsy, sexual behavior, endocrinology, urology.
A maioria das doenças do sistema nervoso pode interferir na expressão satisfatória da sexualidade1, especialmente as que acometem o hipotálamo e o lobo temporal2. Em contrapartida, as alterações sexuais estão entre os distúrbios encontrados na epilepsia, afetando em média 38 a 71% dos homens e 14 a 50% das mulheres3-5. No período intercrítico há relato de várias alterações, tais como hipersexualidade, pansexualidade, erotomania, paranóia sexual, transvestismo, exibicionismo, fetichismo e sentimentos de incerteza quanto à identidade sexual6-8. Segundo a maior parte dos autores, o problema mais frequentemente observado na epilepsia é a falta de desejo e/ou excitação sexual verificado predominantemente em pacientes com crises parciais complexas, resultantes do acometimento do lobo temporal5. Em relação ao período crítico, as crises podem se expressar como sensações e/ou comportamentos sexuais, havendo relatos de crises epilépticas desencadeadas por estímulos sexuais específicos3,8.
A disfunção sexual na epilepsia é provavelmente multifatorial, resultante tanto de fatores socioculturais como de lesões estruturais, alterações eletrofisiológicas e hormonais e de efeitos colaterais de drogas antiepilépticas (DAEs)9. A estreita relação entre epilepsia e alteração da função sexual é ilustrada pelos relatos de melhora das disfunções sexuais após o controle de crises epilépticas (seja pelo uso de DAEs ou cirurgia), de controle da epilepsia após a correção de problemas hormonais e de relação entre crises epilépticas e fase do ciclo menstrual5,6,8,10-14.
O propósito desse trabalho foi estudar, de forma multidisciplinar, um grupo de pacientes epilépticos com queixa ligada à função sexual.
MÉTODO
No período de janeiro de 1993 a dezembro de 1994 foram selecionados onze pacientes do sexo masculino que procuraram o serviço espontaneamente com queixas de epilepsia e disfunção sexual. O acompanhamento foi realizado no ambulatório de epilepsia da Divisão de Clínica Neurológica do HC/FMUSP. Foram incluídos apenas pacientes do sexo masculino em decorrência da maior acessibilidade à avaliação objetiva da função sexual e maior estabilidade dos níveis hormonais. Cada paciente respondeu a um questionário básico, aplicado pelo primeiro investigador, constando dos seguintes itens:
1. identificação;
2. exposição dos objetivos e solicitação do consentimento do paciente para participar da investigação;
3 . dados sobre a vida sexual (idade de início, modalidade, frequência de relações antes e após o início da epilepsia e das DAEs);
4. detalhes sobre mudança nos seguintes aspectos: ereção (matutina, noturna, reflexa e psicogênica), ejaculação e orgasmo;
5 . presença de alterações sexuais específicas, conforme critérios estabelecidos pelo DSM III ¾ R15, incluindo parafilias (exibicionismo, fetichismo, froteurismo, pedofilia, masoquismo, sadismo, fetichismo transvestido, voyeurismo) e distúrbios sexuais (hipoatividade do desejo sexual, transtorno da ereção masculina, inibição do orgasmo e ejaculação precoce). Na investigação das alterações da sexualidade, a definição de cada forma foi lida para o paciente, após o que se solicitava que ele explicasse o que havia entendido, sendo esclarecidas as suas dúvidas. Em seguida ele deveria definir seu tipo de parafilia, se era incomodado por ela, se e com que frequência a praticava. O diagnóstico de parafilia só era feito se o indivíduo a tivesse praticado (definindo-se as formas moderadas e graves) ou se era intensamente incomodado por ela, apesar de não a haver praticado (formas leves).
6 . dados sobre a epilepsia (idade de início, tipos de crises, fatores de melhora e piora, resposta à terapia).
7 . antecedentes médicos, epidemiológicos e familiares.
Cada paciente foi submetido a exame físico geral e neurológico.
A investigação básica constou de: avaliação do hemograma, da função renal (uréia, creatinina e eletrólitos), função hepática (transaminases e enzimas canaliculares, eletroforese de proteínas séricas e coagulograma), perfil lipídico (colesterol e triglicérides); pesquisa de lues (VDRL), glicemia e função cardíaca (RX de tórax e eletrocardiograma). Todos os pacientes realizaram dosagem de DAEs, eletrencefalograma (EEG) e exames de imagem do sistema nervoso central (SNC): tomografia computadorizada de crânio (TC) e/ou ressonância magnética do encéfalo (RM).
A avaliação endocrinológica incluiu a dosagem dos hormônios relacionados ao eixo hipotálamo-hipofisário e à função sexual incluindo tri-iodotironina (T3), tiroxina (T4), hormônio estimulador da tireóide (TSH), hormônio luteinizante (LH), hormônio folículo estimulante (FSH), prolactina, estradiol, di-hidro testosterona (DHT), 4 androstenediona, testosterona total e livre, di-hidro-epi-androsterona (DHEA), sulfato de di-hidro-epi-androsterona (DHEAS) e proteína carreadora do hormônio sexual (Sexual Hormone Binding Globulin - SHBG). Em seguida, os pacientes foram submetidos a determinação da resposta do LH e do FSH ao estímulo com GnRH (hormônio liberador de gonadotrofinas), segundo metodologia descrita por Borges e col.16. Finalmente, foi realizada densitometria óssea.
A investigação urológica constou de exame físico, teste da papaverina, ultrassonografia pélvica e espermograma. No teste da papaverina foi dada uma nota subjetiva de 1 a 10, segundo o grau de turgescência e ereção observado após a injeção de 40 mg de papaverina17,18. Apenas os valores de 7 a 10 foram considerados normais.
Nenhum dos pacientes apresentava outras causas de disfunção sexual, como patologia de pequenos vasos (associada a diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica ou hiperlipidemia); uso de outras drogas que interferem na função sexual (inibidores da monoamino-oxidase, fenotiazinas, álcool, alfametildopa, beta-bloqueadores, bloqueadores alfa-adrenérgicos, anticolinérgicos, estimulantes do SNC, narcóticos); doença hepática, renal, cardíaca, pulmonar ou neoplásica; hipo ou hipertireoidismo; doença urogenital resultante de infecção ou trauma; outras doenças neurológicas (lesão da medula espinal ou neuropatia periférica ou autonômica) ou doença psiquiátrica (psicose, transtorno bipolar, depressão).
Todos os pacientes foram encaminhados para avaliação neuropsicológica e psiquiátrica, sendo orientado para acompanhamento quando necessário.
Dentro deste estudo, as alterações da sexualidade foram classificadas como de causa endócrina (se os níveis hormonais estavam anormais, caracterizando disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal), urológica (se havia disfunção erétil objetiva, comprovada pelo teste da papaverina) ou psicogênica (diagnóstico de exclusão, quando o restante da avaliação estivesse normal).
RESULTADOS
Os dados relativos à identificação e antecedentes estão listados na Tabela 1. Dos onze pacientes, com média de idade de 27 anos (20-34 a), nove eram brancos e dois negros. Um dos pacientes apresentava antecedentes de anóxia perinatal e outro referia convulsões febris na infância. A escolaridade foi variável, com quatro pacientes tendo completado o primeiro grau, quatro outros, o segundo e três deles, a universidade. Cinco pacientes apresentavam história familiar de epilepsia e dois foram submetidos a lobectomia temporal anterior no decorrer do acompanhamento, sem modificação das queixas referentes à sexualidade após 3 a 5 anos de cirurgia. Entre os cinco pacientes que possuíam cônjuge (considerada como companheira habitando no mesmo domicílio), apenas dois possuíam filhos.
Em dois pacientes que referiam abuso sexual na infância as queixas estavam relacionadas apenas à disfunção sexual. No primeiro foram constatadas alterações do espermograma e, no segundo, alterações do teste do GnRH.
Os dados relativos à epilepsia estão na Tabela 2. A duração média da eplepsia era 19 anos (6 m a 32 a). O Paciente 6 possuía epilepsia generalizada e os outros dez, epilepsia parcial (epilepsia do lobo temporal nos Pacientes 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10 e 11; do lobo parietal nos Pacientes 1 e 7). Todos os pacientes apresentavam mais de um tipo de crise e apenas em um elas puderam ser controladas. Sete pacientes apresentavam crises parciais simples, em média 6,8/mês, nove, crises parciais complexas, 2,4/mês e nove, crises tônico-clônicas generalizadas, 0,05/mês. A frequência média das crises era duas por semana (0-7). Apenas um paciente apresentava crises mioclônicas (30/mês). Dez pacientes recebiam DAEs, em cinco como monoterapia, e um não utilizava medicação, em virtude da baixa frequência das crises. As DAEs utilizadas foram, em oito, carbamazepina (CBZ) na dose média de 1322 mg/dia (1000 a 1700 mg/dia); em três, valproato de sódio (VPA) na dose média de 1500 mg/dia (1200 a 1800 mg/dia); em dois, clobazam (CLB) na dose média de 25 mg/dia (20 a 30 mg/dia); em três, clonazepam (CLN) na dose média de 2,6 mg/dia (2 a 4 mg/dia); em um, difenil-hidantoína (DPH) na dose de 300 mg/dia e em um, vigabatrina (VGB) na dose de 1500 mg/dia. O EEG foi normal em quatro pacientes, demonstrou atividade epileptiforme temporal direita em dois, e temporal esquerda, bitemporal, fronto-temporal bilateral, centro-temporal esquerda e generalizada em um paciente cada. Atividade epileptiforme foi caracterizada como presença de espículas e ondas agudas. Os exames de imagem (TC e/ou RM) foram normais em seis pacientes, mostraram esclerose mesial temporal em quatro (três à direita e um à esquerda) e aumento do ventrículo esquerdo em um.
Os dados relativos à sexualidade estão listados na Tabela 3. A média de idade na primeira relação sexual foi 17,6 anos (13-30 a). Cinco pacientes possuíam cônjuge, cinco parceira fixa (companheira habitando domicílio separado) e um, parceiras ocasionais. A frequência de ereção matutina foi diária em oito pacientes, semanal em dois e mensal em um. As queixas na área da sexualidade estavam presentes, em média, há 5,6 anos (3 m a 16 a). A relação entre o início da queixa sexual e da epilepsia foi considerada definida em dois pacientes (queixa sexual e epilepsia concomitantes), possível em cinco (a epilepsia precedeu a queixa sexual que sempre esteve presente), e ausente em quatro (a epilepsia precedeu a queixa sexual e houve um período de vida sexual normal). Um dos pacientes com relação definida associava o problema sexual à DPH, três com relação possível atribuíam a alteração sexual à CBZ e um com relação ausente, ao VPA.
Sete pacientes apresentavam queixas exclusivamente relacionadas à função sexual. Nesse grupo a queixa mais frequente foi disfunção erétil (em sete), seguida por ejaculação precoce (em quatro), inibição do orgasmo (em dois) e hipoatividade do desejo sexual (em dois). Três pacientes apresentavam associação de disfunção sexual com parafilias. Apenas um deles referiu parafilias na ausência de disfunção sexual, sendo que esse paciente apresentava frequência de relações sexuais de cinco vezes ao dia. Para os pacientes com queixa de hipossexualidade, a frequência média de relações sexuais foi 8,7/mês (variando de uma ao dia até uma no semestre). Todos os pacientes apresentavam formas leves de parafilias, tendo sido relatadas até cinco por paciente.
Os dados referentes aos exames paraclínicos estão listados na Tabela 4. As dosagens hormonais basais foram normais em cinco pacientes, mostraram diminuição de testosterona livre em dois e alterações inespecíficas em quatro (diminuição de delta-4-androstenediona, de di-hidro-epi-androsterona e de sulfato de di-hidro-epi-androsterona). A dosagem de SHBG foi normal nos quatro pacientes testados. O teste de estimulação com GnRH foi realizado em dez pacientes, sendo normal em cinco e revelando diminuição da resposta em cinco. A densitometria óssea mostrou osteopenia em apenas um paciente, no qual a avaliação endocrinológica havia sido normal.
Dois dos sete pacientes submetidos ao teste da papaverina apresentavam diminuição da resposta erétil. O espermograma, analisado em sete pacientes, revelou aumento do número de espermatozóides mortos e imóveis em três.
A análise global da avaliação endocrinológica e urológica permitiu diagnosticar dois pacientes (Pacientes 2 e 5) como portadores de hipogonadismo hipogonadotrófico, visto que os níveis de testosterona livre estavam diminuídos em associação com diminuição da resposta à estimulação com GnRH. Dois outros pacientes (Pacientes 3 e 9) possuíam disfunção erétil orgânica secundária a alteração vascular peniana. O Paciente 6 havia relacionado o início da queixa sexual ao uso do VPA, entretanto, não apresentou qualquer alteração endócrina ou urológica que confirmasse essa relação, sendo considerado como portador de disfunção erétil psicogênica e encaminhado a psicoterapia. Os outros seis pacientes (Pacientes 1, 4, 7, 8, 10 e 11) apresentavam alterações endocrinológicas isoladas e inespecíficas, sendo que um deles também apresentava anormalidades do espermograma; nesses pacientes não foi possível chegar a diagnóstico etiológico definitivo, mas todos foram enviados para acompanhamento psicoterápico
DISCUSSÃO
Este estudo mostrou que a alteração da sexualidade na amostra específica dos pacientes epilépticos estudados teve etiologia multifatorial, tendo ocorrido alterações endócrinas e urológicas. Em que medida essas alterações são decorrentes das descargas epilépticas ainda é tema de discussão. Estudos complementares com maior número de pacientes e a utilização de grupos controle sem queixa de alteração da sexualidade permitiriam uma melhor compreensão desse problema. Excetuando-se os Pacientes 1 e 4, os demais pacientes do presente estudo apresentavam epilepsias graves, como pode ser evidenciado pelo longo tempo de doença, alta frequência de crises epilépticas, dose elevada de DAEs, necessidade de associação medicamentosa e de terapia neurocirúrgica.
A presente análise restringiu-se a pacientes jovens do sexo masculino, com distribuição diferente quanto à instrução, de forma que esses não foram fatores que interferiram nas queixas. As oportunidades de desenvolvimento social são limitadas nos epilépticos, sendo ainda descritos fatores psicológicos como baixa auto-estima13,19. É difícil definir em que extensão as alterações da sexualidade interferiram na vida social dos pacientes desse grupo ou como a epilepsia restringiu as oportunidades de desenvolvimento social, tendo sido esses fatores apenas sugeridos de forma indireta pelo pequeno número de pacientes com cônjuge.
Na literatura, é descrito que a queixa de alteração da sexualidade aparece, em geral, após o início da epilepsia e que a essa alteração é mais comum em pacientes mais idosos, com maior duração da doença e com lesões estruturais do sistema nervoso14. Todos os pacientes deste estudo começaram a apresentar alteração da sexualidade de forma concomitante ou após o início da epilepsia. Apenas em cinco pacientes desta série foi demonstrada lesão estrutural nos exames de imagem, predominando a EMT, presente em quatro deles, sendo esta a lesão mais frequentemente associada à disfunção sexual14.
Segundo o DSM III ¾ R, as alterações da sexualidade podem ser divididas em parafilias e disfunções sexuais15. As parafilias caracterizam-se por excitação em resposta a objetos ou situações que não são parte dos padrões de excitação convencionais, interferindo com a expressão sexual afetiva e recíproca. É comum a ocorrência de três ou quatro parafilias em um mesmo indivíduo, como aconteceu em três pacientes da presente casuística.
Em contrapartida, as disfunções sexuais caracterizam-se por inibição no desejo sexual ou mudanças psicofisiológicas que fazem parte do ciclo de resposta sexual. Na presente amostra, as disfunções sexuais estiveram presentes em dez dos onze pacientes estudados, sendo associadas a algum grau de alteração endocrinológica ou urológica em nove deles. O conceito de disfunção sexual nestes pacientes deve ser colocado com a ressalva de que a maioria apresentava fatores orgânicos ou medicamentosos contribuindo para o quadro, além dos fatores psicogênicos. Segundo Singer2, a ereção requer uma série complexa de fenômenos vasculares, mediados por vias neurais, que ocorrem em ambiente psicológico propício, o que torna muito difícil a separação entre disfunção erétil (ou impotência) psicogênica e orgânica. A manutenção da ereção matutina diária é geralmente relatada como indicativa de disfunção psicogênica, o que não foi confirmado pela análise do paciente 3, com ereção matutina diária e diagnóstico de disfunção erétil orgânica, comprovada através do teste da papaverina.
No presente estudo, houve sete pacientes que apresentavam apenas queixa subjetiva isolada de disfunção sexual, ao lado de quatro com alteração objetiva (impotência orgânica): dois com hipogonadismo hipogonadotrófico e dois com alteração no teste da papaverina. Singer2 assinalou que as endocrinopatias contribuem para impotência orgânica em 5 a 35 % dos casos. As descargas epileptiformes, especialmente as de estruturas límbicas, modulam a resposta hipotalâmica e alteram a secreção hormonal20. Podem ser verificadas alterações do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal, como hiperprolactinemia e hipogonadismo hipo ou hipergonadotrófico19. Reciprocamente, o nível de hormônios circulantes endógenos, como os estrógenos, influencia a suscetibilidade às crises epilépticas21,22. Como referido por Herzog4, a disfunção endócrina pode resultar tanto das descargas epileptiformes como a frequência das crises pode ser exacerbada pelas alterações hormonais, além de que as duas alterações podem ser devidas a fatores pré-natais que alteraram o desenvolvimento dos sistemas nervoso e endócrino.
Os efeitos psicotrópicos da testosterona são controversos23. Entretanto, é aconselhável investigar deficiência de andrógenos em casos de impotência ou diminuição de libido, porém discute-se qual medida, a da testosterona total ou livre, melhor reflete a disfunção sexual na epilepsia4,24-26. No presente estudo optamos pela medida da testosterona livre, associada à quantificação dos níveis de SHBG quando possível. Nos dois pacientes com hipogonadismo hipogonadotrófico havia apenas diminuição dos níveis de testosterona livre sendo que os níveis de testosterona total foram normais e não teriam permitido o diagnóstico da disfunção endócrina desses pacientes. Os níveis séricos de SHBG foram normais nesses dois casos, indicando que a alteração endócrina não dependia diretamente das DAEs. Em outro estudo de pacientes epilépticos brasileiros, Silveira27 descreveu a associação estatisticamente significante de hipossexualidade com aumento do nível sérico de SHBG e diminuição do nível de andrógenos livres (razão entre nível sérico de testosterona total e SHBG).
Não foi possível chegar a diagnóstico etiológico definitivo em seis pacientes que apresentavam alteração dos níveis séricos de 4 androstenediona, DHEA, DHEAS e FSH. Possivelmente esses pacientes apresentam alteração sexual psicogênica e essas anormalidades hormonais são inespecíficas. Nesses sentido, Silveira27 relatou diminuição dos níveis séricos de estradiol e DHEAS em pacientes epilépticos, porém sem relação com a queixa de alteração sexual.
Neste grupo não houve aumento da prolactina, fato em parte explicado pela ausência de crises nas 24 horas que antecederam a avaliação dos níveis séricos dos hormônios. Na série de Pritchard e col.28, os níveis intercríticos de prolactina foram normais em pacientes com e sem queixa de hipossexualidade; os níveis pós-críticos estavam aumentados após crises parciais complexas, alteração essa que pode estar associada à disfunção sexual nesse grupo. Nosso estudo não avaliou os níveis de prolactina pós-críticos. Entretanto, os aumentos descritos podem ocorrer em pacientes sem hipossexualidade e em outras formas de epilepsia, principalmente após crises generalizadas.
A diminuição dos níveis séricos do hormônio DHEA, observada em dois pacientes em uso de CBZ, já foi relatada por outros autores em pacientes epilépticos recebendo DAEs, sendo atribuída à indução do sistema microssomal hepático via citocromo P45019,29.
Rodin30 descreveu pacientes com epilepsia e hipossexualidade que apresentavam aumento dos níveis de LH, ao lado de diminuição dos níveis séricos de testosterona total. Esse tipo de alteração é explicado por queda do nível de testosterona induzido pelas DAEs, seguido do aumento dos níveis de LH. Nenhum dos pacientes da presente casuística mostrou esse padrão.
Três dos pacientes desta amostra apresentavam alterações importantes do espermograma. Taneja e col.31encontraram diminuição do volume de fluido seminal e da concentração e motilidade dos espermatozóides em pacientes epilépticos sem tratamento e naqueles tratados com DPH, sugerindo que a epilepsia pode afetar a função gonadal de forma independente do tratamento com DAEs. O mecanismo mais aceito é a disrupção da função hipotalâmica pelas descargas epilépticas, levando a aumento de prolactina, inibição da liberação de GnRH, com consequente diminuição da liberação de LH e FSH e, finalmente, diminuição do nível de testosterona livre e diminuição na produção de esperma. Apenas um paciente da nossa amostra apresentava essas disfunções endócrinas como fator causal para as alterações do espermograma. Para os outros dois, uma explicação possível é a ação direta das DAEs sobre os espermatozóides; um deles fazia uso de DPH, associação descrita na literatura32.
Embora nove dos pacientes da presente casuística apresentassem alterações hormonais e do espermograma, não foi possível sua associação com uma DAE específica. As DAEs podem levar a disfunção sexual pela ação direta sobre o córtex ou sobre os hormônios relacionados à função sexual33. Essas influenciam a síntese, incluindo a produção gonadal, a ligação protéica através da indução de enzimas hepáticas com aumento da produção da SHBG e o nível sérico e catabolismo dos hormônios, principalmente o mediado pelo sistema P450 hepático5,33. No estudo de Mattson e col.34, envolvendo 622 pacientes com crises parciais com ou sem generalização secundária, a primidona (PRM) foi considerada a DAE mais implicada na disfunção sexual sendo que 22% dos pacientes que recebiam esta droga queixavam-se de diminuição da libido ou impotência, seguida por PB (16 %), CBZ (13 %) e DPH (11 %).
Este estudo analisa a ocorrência de alterações da sexualidade na epilepsia e demonstra que esta associação pode resultar de múltiplos fatores que devem ser cuidadosamente avaliados em cada paciente. É necessário investigar alterações endócrinas e urológicas antes de atribuir a alteração da sexualidade na epilepsia apenas a fatores psicogênicos.
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Divisões de Endocrinologia (***Médico Assistente), Neurologia (*Médico Pós-Graduando, **Médico Colaborador,*****Médico Assistente) e Urologia (****Médico Assistente) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, (FMUSP). Aceite: 15-junho-1999.
Dra. Helga C. Almeida Silva - Departamento de Patologia FMUSP - Av. Dr. Arnaldo, 455 sala 1121 - 01245-903 São Paulo SP - Brasil.
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