terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Os anéis e os dedos

Se o assunto é amor, o catolicismo ganha de lavada dos outros monoteísmos. A noção de querer tão bem aos outros quanto a si mesmo, a escolha do não revide mesmo diante do tapa na cara, a compaixão e o entusiasmo pelo fenômeno humano foram uma revolução que talvez um Jesus de carne e osso tenha vivido, mas certamente o apóstolo Paulo amalgamou como proposta de irmandade universal. Ao menos no papel, um credo de consciência e tolerância diferente de quase tudo no planeta àquela época, tão avançado moralmente quanto o budismo, terreno fértil para uma civilização livre e generosa, certo?
Errado. Repressão comportamental e opressão clerical foram a tônica da Igreja Católica Apostólica Romana através dos séculos. No quesito crimes históricos por razões ideológicas, a Igreja é mais culpada de guerras, execuções e torturas que o Estado Islâmico degolador. As Cruzadas, a Inquisição e a invasão da América são três gigantescos holocaustos na conta do papa.
Mas, graças a Deus, não deste papa. Confesso que torci o nariz para a fumaça branca que indicou o cardeal Jorge Bergoglio ao cargo vitalício de sumo pontífice. Notório opositor dos presidentes Kirchner, pairava sobre ele a suspeita de haver neglicenciado a segurança de padres sequestrados e assassinados pela ditadura militar em 1976. Além disso, o religioso argentino sucedia um colega com passado e jeitão de nazista, ligações perigosas na Cúria Romana e uma aposentadoria precoce suspeita, provavelmente ligada aos escândalos de pedofilia na Igreja. Bergoglio tornou-se Francisco e levou para o Vaticano a camisa 10 de Maradona. Parecia pouco para dar conta do recado.


Mas o novo papa não escolheu seu nome em vão. Como São Francisco de Assis, esse papa é amigo dos animais, especialmente dos humanos. As coisas que disse e fez nos dois últimos anos mostram que o homem entende a profunda responsabilidade que carrega. Criticou a obsessão moralista com julgamentos do comportamento alheio, como aborto, homossexualismo, divórcio e adultério. Pregou a humildade ao beijar os pés de prisioneiros muçulmanos, tem ajudado a levantar o embargo sobre Cuba, criticou o capitalismo e defendeu o meio ambiente nas Nações Unidas. E declarou de modo surpreendente: “Terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso, o papa é um comunista. Não se compreende que o amor pelos pobres é o centro do Evangelho”.
O papa Francisco incomoda muita gente. Na internet, é virulentamente atacado como representante infiltrado da maçonaria, “besta que se veste como um cordeiro, mas fala como um dragão”. Resta saber até onde conseguirá ir. Por mais avançado que seja, o papa é o líder máximo de uma instituição que abertamente discrimina as mulheres e interdita inúmeras formas de amor. Enquanto não permitir a ordenação feminina, rejeitar homossexuais e obrigar o celibato, a Igreja não será verdadeiramente católica nem se livrará das vexaminosas compensações libidinais de tanta repressão.
Numa religião do amor, como pode não haver sexo? Para não perder os dedos, a Santa Sé precisa entregar os anéis da caretice. É isso ou desaparecer na poeira da história. Neste vertiginoso século 21 em que tudo muda cada vez mais rápido, a redenção da Igreja está na realização plena da pregação utópica do Cristo e dos roqueiros ainda mais famosos do que ele: love, love, love.

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