Adaílson Calheiros
Foi promulgada a Lei nº 13.271/16, que proíbe a “revista íntima” de funcionárias no local de trabalho e em ambientes prisionais.
Foi promulgada a Lei 13.271/16 que proíbe a “revista íntima” de funcionárias no local de trabalho e em ambientes prisionais.
O artigo 1º. da legislação sob comento proíbe terminantemente essa busca pessoal invasiva, seja em “empresas privadas”, seja em “entidades da administração pública direta ou indireta”. Perceber-se-á que essa legislação tem caráter híbrido, pois que trata de questão trabalhista, civil, administrativa, de execução penal, de direito penal e de processo penal.
Havia uma brecha na lei que permitiria a revista íntima em ambientes prisionais e em atos de investigação criminal. Era o artigo 3º. que assim dispunha:
“Art. 3º. Nos casos previstos em lei, para revistas em ambientes prisionais e sob investigação policial, a revista será unicamente realizada por funcionários servidores femininos”.
Ocorre que tal artigo foi vetado para exatamente evitar a “interpretação no sentido de ser permitida a revista íntima nos estabelecimentos prisionais”. Assim também é razão do veto a possível interpretação de que toda revista íntima deveria ser feita por funcionárias públicas, ainda que em homens.
Fato é que o veto e suas razões deixam translúcida a “mens legis”, ou seja, há estabelecimento de proibição absoluta de revistas íntimas, seja no âmbito privado, seja em estabelecimentos prisionais ou mesmo em investigações policiais.
Pode ser que essa proibição cause espécie, dando a impressão de que se trata de uma legislação a beneficiar aqueles envolvidos no mundo do crime. Acontece que o problema não reside na proibição das revistas íntimas, procedimento degradante e desnecessário, mas sim no fato de que o Estado há muito tempo é desidioso no aparelhamento das Polícias e dos estabelecimentos prisionais com dispositivos para revistas sem necessidade de invasão corporal.
Na iniciativa privada a violação dessa proibição, segundo o disposto no artigo 2º., incisos I e II da Lei 13.271/16, sujeita o infrator sujeito à pena de multa de vinte mil reais, revertidos aos órgãos de proteção dos direitos da mulher. Em caso de reincidência a multa é dobrada (quarenta mil reais).
Observe-se que essa punição é de caráter administrativo, tanto é fato que o próprio dispositivo sob comento ressalva a possibilidade de indenização civil por danos morais e materiais, afora as “sanções de ordem penal”.
O infrator da iniciativa privada, na seara criminal estará sujeito às penas do crime de Constrangimento Ilegal nos termos do artigo 146, CP.
Na seara pública, o funcionário infrator não estará sujeito à penalidade administrativa prevista no artigo 2º. da Lei 13.271/16, vez que há que obedecer ao Princípio da Legalidade. Acontece que o dispositivo se refere claramente ao “empregador” e não trata em momento algum do funcionário público. Dessa forma, resta claro que a sanção administrativa ali prevista se refere tão somente aos agentes do âmbito privado.
Mas então o funcionário público estaria livre de sanções administrativas?
É claro que não. Em primeiro lugar, há infrações administrativas passíveis de se amoldarem à situação, levando à responsabilização funcional com penas que vão de advertência até demissão a bem do serviço público. Isso é encontrável nos diversos diplomas que regem o funcionalismo público (v.g. Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado, Leis Orgânicas etc.). Além disso, a infração ao comando proibitivo da Lei 13.271/16 pode configurar, no âmbito civil e administrativo,improbidade administrativa por infração aos Princípios que regem a Administração Pública, nos estritos termos do artigo 11 (legalidade), inciso I, da Lei 8.429/92.
Também será natural a responsabilidade civil do funcionário público por danos morais e materiais, bem como a responsabilidade objetiva do Estado em solidariedade.
Finalmente, o funcionário público poderá ser responsabilizado no âmbito criminal por Abuso de Autoridade, nos termos do artigo 4º. , “b “ e “h” da Lei 4898/65.
Embora a Lei 13.271/16 se refira expressamente somente às mulheres como sujeitos da proibição de buscas pessoais íntimas, entende-se que sua interpretação só pode ser extensiva, isso devido à aplicação do Princípio da Isonomia, nos exatos termos do artigo 5º., I, CF. Portanto, também ficam terminantemente proibidas, seja no âmbito privado, seja no público, a realização de buscas íntimas também em homens.
Sabe-se que o Princípio da Isonomia comporta relativização bem como, principalmente, ponderações. No entanto, há que haver um elemento distintivo que justifique tratamentos diferenciados em dados casos concretos, exatamente com a finalidade de dar cumprimento à igualdade. São casos em que a igualdade pura e simples constituiria odiosa desigualdade. Este é o correto ensinamento de Bandeira de Mello:
“O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele”. [1]
Pois bem, não há motivo algum que racionalmente justifique poderem os homens ser submetidos a revistas íntimas degradantes e desnecessárias no atual estágio tecnológico e não o poderem as mulheres. O sexo não é um fator suficiente para fundar uma discriminação positiva no caso concreto.
Importa frisar que nada se altera em relação às buscas pessoais reguladas pelo Código de Processo Penal. A Lei 13.271/16 é específica sobre as “buscas íntimas”, ou seja, aquelas invasivas que importam em desnudamento e inclusive em inspeção visual e tátil de partes íntimas (v.g. vagina, ânus). Para isso será necessário o emprego de meios tecnológicos como “scanners”, superada a vetusta e humilhante prática até então adotada nos estabelecimentos prisionais e nas buscas pessoais policiais.
Como bem destaca Lopes Júnior, não há que confundir “busca pessoal com intervenção corporal”. [2]
A busca pessoal
“é possível quando ‘houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou outros objetos. Consiste ela na inspeção do corpo e das vestes de alguém para apreensão dessas coisas. Inclui, além disso, toda a esfera de custódia da pessoa, como bolsas, malas, pastas, embrulhos etc., incluindo os veículos em sua posse”. [3]
No que tange às mulheres, há ressalva no Código de Processo Penal (artigo 249) de que deve ser feita por outra mulher, salvo no caso em que o cumprimento dessa regra venha a causar retardamento da diligência. Logicamente o dispositivo também deve ser interpretado com cuidado, eis que não será qualquer pretexto de retardamento que irá justificar uma busca pessoal em mulher por um homem. Por exemplo, não se justifica isso devido à mera necessidade de esperar a chegada de uma Policial feminina. A única situação justificável será nos casos extremos em que a não realização da busca venha a ocasionar a perda irrecuperável de seu objeto, bem como não exista realmente possibilidade de acesso a uma funcionária. [4]
Ainda aqui, no bojo do artigo 249, CPP, há que ressalvar que a lei comporta uma interpretação extensiva de modo a conciliar-se com a Constituição Federal no artigo 5º., I (Princípio da Isonomia). Dessa maneira, um homem também não deve, em regra, ser submetido a buscas por parte de uma mulher, o que importará em constrangimento ilícito desnecessário e injustificável nos mesmos moldes de uma mulher submetida a buscas por um homem. Novamente não há motivação idônea para qualquer discriminação positiva.
Dissertando antes da edição da Lei 13.271/16, Marcão afirma que nada impediria a busca íntima, já apontando, porém, a possibilidade de utilização de meios tecnológicos, tais como “scanners”, aparelhos de raio X e “detectores diversos”. [5] O ensinamento se torna hoje inviável em sua parte inicial devido à novel legislação, mas valioso quanto à menção dos meios tecnológicos que podem substituir as buscas invasivas. A jurisprudência, mesmo antes da Lei 13.271/16, já vinha apontando que o “excesso desnecessário na busca e apreensão a pretexto de colher material para a formação do corpo de delito constitui ilegalidade” (RT 565/341; JTacrSP 69/217). À vista da Lei 13.271/16, as buscas íntimas invasivas são claramente um “excesso” proibido e desnecessário na atualidade.
Se as normas do Código de Processo Penal quanto às buscas pessoais não íntimas continuam em vigor, o mesmo não se pode dizer de normas administrativas que regulavam as buscas íntimas. Estas estão atualmente revogadas pela Lei 13.271/16 com a qual são absolutamente incompatíveis. Exemplo disso são os artigos 156 a 158 da Resolução SAP 144, de 29/06/2010. Não obstante, deve-se atentar que essa Resolução já previa a proibição de “revista interna visual ou tátil do corpo do indivíduo” (artigo 157, § 1º.), embora permitindo o desnudamento de presos e visitantes. Portanto, o desnudamento passa a ser proibido e mantida a vedação de inspeção interna do corpo das pessoas. Para essas espécies de revistas ou buscas, será necessário o uso de aparelhagens próprias que evitem o constrangimento ilegal de visitantes e detentos.
REFERÊNCIAS
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
PITOMBO, Cleunice Bastos. Da Busca e Apreensão no Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2005.
NOTAS
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 37.
[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 738 – 741.
[3] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 323.
[4] Cf. PITOMBO, Cleunice Bastos. Da Busca e Apreensão no Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 159.
[5] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, p. 578.
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