sábado, 29 de outubro de 2016

A última noite de Mary Stuartp


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Reportagem

A última noite de Mary Stuart

Fevereiro de 1587. A rainha da Escócia será executada por ordem de sua prima Elizabeth da Inglaterra. Diante da morte iminente, a soberana recapitula sua vida, dedicada a combater a Reforma protestante e zelar pela fé católica na Grã-Bretanha

A última noite de Mary Stuart

Pascal Marchetti-Leca
Museu do Lovre/ (c) RMN /Jean-Gilles Berizzi/ Other Imges
Mary Stuart (à dir.) no momento em que foi levada para a execução. Óleo sobre tela de Philippe Jacques Van Bree, século XIX
Amanhã não haverá alvorecer. Eu, ao menos, não vou ver o dia amanhecer. Foi o desejo de Deus que chegasse ao fim esse doloroso caminho que foi minha vida. A peregrinação termina por meio de um decreto no último dia 1o de fevereiro, com o selo real de minha prima, Elizabeth da Inglaterra. Esse fim varrerá tanto os sonhos não cumpridos quanto as traições não patentes e as repetidas humilhações. Deo gratias.

Na aurora de minha vida, nada deixava antever o desastre. Para ser rainha, me bastou nascer, em 9 de dezembro de 1542, no castelo de Linlithgow. Mas já naquela época a calamidade se preparava para dissipar a bem-aventurança. Eu mal tinha aberto os olhos, e morria meu pai, Jaime V da Escócia, confirmando a perturbadora profecia: “A coroa nos veio por uma mulher, e com uma mulher ela nos deixará!”.

Soberana no berço, eu tinha um corpo frágil, que se tornou de imediato objeto de tratativas políticas. Meu real parente, Henri que VIII da Inglaterra, se apressou a pedir a mão da herdeira perfeita para seu filho caçula, o príncipe herdeiro Eduardo. Em nosso meio, nada como um casamento para transformar hostilidade em concórdia. O sangue dos Stuarts e o dos Tudors mesclados para comandar o destino do mundo!

Interveio aí a perspicácia de minha mãe, a católica Maria da Lorena, herdeira dos Guises. Temendo a ideia de delegar os cuidados de minha educação a heréticos, ela preferiu se voltar para a França e, com o apoio dos papistas, promoveu negociações com sua terra natal para propiciar a minha fuga. Em 7 de agosto de 1548, eu embarquei no galeão de velas brancas.
Reprodução
Mary Stuart ao lado de seu primeiro marido, o rei Francisco II da França. Óleo sobre madeira de François Clouet, 1559
Fui recebida como uma pequena rainha em terras francesas, onde houve festejos, salvas e vivas. Foi lá que conheci o lívido príncipe que me tinha sido destinado por esposo: Francisco, o herdeiro do trono dos Valois. Daquele momento em diante, nossos destinos estavam para sempre unidos. Em 24 de abril de 1558, os noivos adolescentes se ajoelharam diante do altar de Nossa Senhora e desempenharam a representação da cena de dupla grandeza monárquica para a qual tinham sido mecanicamente preparados.

Ao me tomar por esposa, Francisco II fez de mim sua rainha. Ao lhe dar minha mão, eu oferecia a ele a coroa da Escócia.

A França me ensinou a civilidade dos prazeres, a sutileza intelectual, o refinamento das maneiras que, ainda hoje, faltam à nossa miserável Escócia, petrificada pela rudeza. Não me desagradou descobrir como se pode ser concomitantemente uma dama e uma alegre, sensual, elegante e humanista esposa.

Em 6 de dezembro de 1560, eu vesti luto por meu marido Francisco II. Minha sogra Catarina de Médici, que o meteórico casamento do filho havia eclipsado, foi novamente alçada a seus direitos dinásticos.
Galeria Nacional de Retratos, Londres
Amargo retorno: depois de 13 anos de ausência, Mary volta para sua terra natal e encontra uma Escócia hostil. Gravura, autor desconhecido, 1893
Como é que eu, Mary Stuart, princesa de sangue real, e até a véspera rainha da França, teria podido aceitar viver à sombra de uma arrogante filha de mercadores? Viúva real, talvez, mas sempre rainha. Com a morte na alma, atravessaria o oceano de volta, para garantir o único bem que me parecia inalienável: a coroa da Escócia.

Eu estava enganada. Lordes e barões nunca recuaram diante da oportunidade de uma traição – minha defunta mãe sentiu isso na carne, mas até seu último suspiro ateve-se à fidelidade à Igreja romana. Para mim, a deslealdade tornou-se algo familiar.

Deixei a França com fausto e pompa, para chegar em casa em 19 de agosto, um ambiente hostil. As delicadezas com as quais havia me acostumado se perderiam sob a indigência de uma terra que, depois de 13 anos de ausência, me considerava uma completa estrangeira. Fui para o castelo de Holyrood, que, às portas de Edimburgo, tornava-se minha residência.

A rainha da Escócia não era bem-vinda em seu próprio reino. Para se apoderar dos bens da santa Igreja e usurpar o poder real, os lordes escoceses haviam cedido à Inglaterra e se devotado ao calvinismo. Eles formaram uma barreira fatal à minha autoridade de soberana católica.
Ante tantas alianças contrariadas, como eu, sozinha e mulher, poderia resolver uma situação tão delicada? Com um novo casamento, disse a mim mesma.

Depois de um exame do mercado matrimonial político, minha escolha recaiu sobre um primo, o primeiro príncipe de sangue dos Tudors: Henry Darnley. Contra todas as expectativas, aquele jovem soube comover meu coração, e decidi elevá-lo à dignidade de rei consorte, título que ele obteve em 25 de junho de 1565, ao colocar a aliança em meu dedo, na capela de minha fortaleza.

Infelizmente, o cortesão perfeito se tornou rapidamente altivo. Em 9 de junho de 1566, os canhões de nosso castelo de Holyrood ribombaram, anunciando a chegada ao mundo do herdeiro que oferecíamos à Escócia, mas nem isso tirou nossa união do rumo do desastre. Henry se irritava com todos os que, cercando minha pessoa, faziam sombra a suas prerrogativas de esposo. Ferido em seu orgulho conjugal, esse insolente chegou ao cúmulo de conspirar contra mim. Na aterradora noite de 9 de março de 1566, mandou apunhalar diante de meus olhos o menestrel que eu havia ordenado com o grau de conselheiro, David Riccio. Nunca mais nós voltaríamos a nos entender.
Galeria Nacional Escocesa de Retratos
James Hepburn, o “urso letrado” a quem a rainha delegou a tarefa de assassinar o marido. Óleo sobre madeira, artista flamengo, 1566
Onde, então, buscar socorro? A quem poderia eu dedicar uma confiança tantas vezes traída? Obtive a resposta nos traços do guerreiro que outrora havia emprestado seu braço forte à resistência que minha mãe opunha aos lordes da Congregação: James Hepburn, conde de Bothwell. Quase cavaleiro, quase fora da lei, aquele urso letrado conhecia a arte de somar a astúcia à força.

Sua máscula segurança venceu todos os meus princípios, e meus sentidos lutaram em vão para conter o caudal de uma moral em dispersão. Naquele momento, só o que me importava era sua satisfação. E, para Bothwell, não podíamos mais esperar: era preciso nos livrarmos de meu marido. Apesar de ser incapaz de fomentar um complô, tampouco fiz algo para impedir o atentado em 10 de fevereiro de 1567, que roubou a vida do rei da Escócia.

A voz do povo se fez de imediato ouvir, e não tardou para que todas as fachadas de Edimburgo ficassem cobertas de galhofas. Eu me emparedei em silêncio, que aos olhos da Escócia e de outras nações sugeria minha culpa. Ao anúncio de meu necessário casamento com alguém tido como o assassino do rei da Escócia, saltava aos olhos essa culpa, como um insulto.

Os senhores se sublevaram, e, em 15 de junho de 1567, as tropas reais desertaram. Fiquei prisioneira no castelo de Lochloven e fui obrigada a abdicar em favor de um filho demasiado jovem para reinar.
Quando tudo parecia perdido, ergui a cabeça. Menos de um ano depois de minha detenção, consegui ludibriar a vigilância de meus carcereiros e buscar asilo junto de minha eterna rival, Elizabeth da Inglaterra, que me mantém cativa há cerca de 20 anos.

Por instigação dela, a infâmia de um processo – capciosamente chamado de “conferência” – me foi infligida, a fim de deixar patente ao mundo a responsabilidade que eu porventura poderia ter no assassinato de meu esposo. Contrariamente à promessa que me tinha feito, de não atentar contra minha honra, os versos e cartas que eu havia escrito a Bothwell foram trazidos para figurar das discussões.

Minha prima nunca poupou mesquinhez, intriga e humilhação. E minha Impetuosidade serviu de desculpa para seu ressentimento. Só lamento esse traço parcialmente, porém: para ser rainha, teria sido preciso ser menos mulher. Meu coração se incendiou como um pedaço de estopa, mas essa ousadia, que foi minha perdição, também me valeu um bom número de adeptos.

Estará Elizabeth ainda rindo de mim? Que me importa! Não me envergonho. Meu único crime é minha posição, minha verdadeira ofensa é meu título. Como ela ousa me pôr a perder, perderá mais que eu. Seu nome ficará para sempre manchado. A história fustiga a impostura e reabilita o justo. Um dia – quem sabe? – meu filho reunirá as duas coroas, que de maneira tão ávida disputaram comigo. Assim, não cederei ao miserável triunfo de minha prima e de suas reformas doutrinárias.

Não será como pecadora contrita que caminharei para o cadafalso, mas como uma autêntica soberana. Na hora derradeira, no grande salão de Fotheringhay, eu sei que Deus me ajudará a enfrentar o suplício com dignidade, sem falhar. Se em vida eu nem sempre compreendi tudo, de minha morte não quero ignorar nada. Quero adentrá-la com os olhos abertos, um crucifixo nas mãos e dois rosários à cintura. Até o fim, permanecerei surda aos ventos heréticos do calvinismo. Castelo de Fotheringhay, 7 de fevereiro do ano da graça de 1587.
Galeria Nacional de Retratos, Londres
O herdeiro: em 1603, Jaime I realizou o sonho de sua mãe ao reunir as coroas da Escócia e da Inglaterra. Óleo sobre tela de Daniel Mytens, 1621

E a história seguiu seu curso...

O filho de Mary Stuart foi coroado rei da Escócia com 1 ano de idade, em 1567, chamado de Jaime VI. Em 1603 tornou-se soberano da Inglaterra e da Irlanda, como Jaime I. Governou longamente os ingleses, até 1625, como era o desejo de sua mãe.

A disputa entre católicos e protestantes continuou na Inglaterra e na Escócia de Mary Stuart. Seu filho Jaime, ao tomar o poder, tentou transformar a religião anglicana da Inglaterra em algo mais próximo do catolicismo e mais distante do calvinismo.

Nessa área religiosa, porém, nunca houve um vitorioso. Hoje, no Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte), há cerca de 20% de católicos, igual proporção de anglicanos, cerca de 40% de presbiterianos, metodistas, batistas e outros cristãos, 17% de islâmicos e o restante de sikhs, hinduístas, judeus e adeptos de outras religiões.
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