David R. Montgomery para o The Conversation
O mito do dilúvio que mudou a China possuiria embasamento geológico, assim como lendas de enchentes da Escandinávia ao TibeT
Os antigos relatos sobre grandes inundações há muito têm mexido com as mentes modernas. Será que eles falam de eventos reais num passado distante ou são apenas mitos com raízes na imaginação? O mais familiar, para muitos de nós do Ocidente, é a história bíblica de Noé. Mas culturas do mundo todo passam para as gerações seguintes seus próprios contos de desastres naturais devastadores.
Uma nova pesquisa publicada na revista científica Science por um grupo de pesquisadores - cujo a maioria é chinesa - liderado por Qinglong Wu reportou a descoberta de evidência geológica para um evento que, segundo propõem, pode estar por trás de uma história chinesa sobre uma grande enchente. A pesquisa investiga o campo da geomitologia, que relaciona tradições orais e folclore com fenômenos naturais como terremotos, erupções vulcânicas e enchentes.
"O grande Yu controla as águas"
A história do Imperador Yu, o lendário fundador da primeira dinastia chinesa, gira em torno de sua habilidade de drenar a água de focos de enchente persistentes nas áreas de baixa altitude, trazendo ordem para a terra. Essa história de enchente antiga foca no triunfo da engenhosidade humana e do trabalho sobre as forças caóticas do mundo natural. É bastante diferente de outras tradições e histórias envolvendo enchentes, já que o herói não sobreviveu a uma inundação destruidora de mundos, mas realizou proezas relacionadas à engenharia fluvial que lhe permitiram estabelecer um caminho para a agricultura de várzea. Mas será que o Imperador Yu foi uma verdadeira figura histórica e, se sim, o que causou a grande enchente tão central em sua própria história?
Em sua nova análise, Wu e seus colegas se basearam em estudos prévios sobre deslizamentos de terra em Jishi Gorge que represaram o Rio Amarelo na região onde ele flui desde o alto do Planalto Tibetano. Eles organizaram evidências geo e arqueológicas para argumentar que quando a barragem formada pelos deslizamentos cedeu, uma enchente avançou pelo Rio Amarelo, em torno de 1920 a.C. Eles dataram os sedimentos lacustres que ficaram armazenados rio acima da barragem de detritos e sedimentos da enchente depositados rio abaixo, em elevações de até 50 metros acima do nível do rio. Os pesquisadores estimaram que a falha na barragem de sedimentos enviou aproximadamente meio milhão de metros cúbicos de água por segundo para o Rio Amarelo e por toda a China antiga. Também notou-se que o período dessa inundação coincide com uma enorme transição arqueológica, do Neolítico para a Idade do Bronze, nas planícies à jusante do Rio Amarelo.
O estudo publicado na Science não apenas reportou evidências do acontecimento de uma grande enchente no mesmo local e época em que, acredita-se, a de Yu teria ocorrido, mas também nota que ela coincide com uma mudança previamente identificada no curso do Rio Amarelo, em direção a uma nova saída através da planície norte da China. Os pesquisadores sugerem que a enchente identificada por eles pode ter destruído diques no rio localizados naquela região de planície, e provocado essa mudança.
E isso, por sua vez, ajudaria a explicar o aspecto singular da história da enchente de Yu. Um rio grande, redirecionado para um novo curso, poderia desencadear enchentes persistentes em áreas baixas. Uma rota mais longa para o mar imporia um declive gentil que promoveria deposição sedimentar, entupindo o canal, e dividindo a corrente em múltiplos canais — isso tudo causaria uma inundação exacerbada das áreas baixas. Esse parece um bom cenário para a história do longo trabalho de Yu para drenar as águas da inundação e canalizá-las para o mar.
Histórias de enchente de diferentes culturas ao redor do globo
Quando eu pesquisei as possíveis origens geológicas das histórias de enchente do mundo para o meu livro “The Rocks Don’t Lie: A Geologist Investigates Noah’s Flood," fiquei impressionado ao reparar como a geografia de detalhes aparentemente curiosos de muitos mitos locais era consistente com processos geológicos que causam enchentes desastrosas em regiões diferentes. Mesmo ao longo do Nilo, onde as enchentes anuais são bem previsíveis, a falta de histórias de inundações é consistente com o fato das secas serem o real perigo no antigo Egito. Lá, a falta de enchentes teria sido catastrófica.
Perto do Pacífico, área propensa a tsunamis, histórias de enchentes contam de ondas gigantes que surgiram no mar. Antigos missionários cristãos ficaram perplexos ao saber que as tradições relacionadas à inundações no Sul do Pacífico não mencionavam o dilúvio bíblico de 40 dias e 40 noites; ao invés disso, falavam sobre ondas gigantes que vinham sem aviso. Uma história tradicional da costa do Chile descreve como duas grandes cobras competiam para ver qual podia fazer o mar se levantar mais, desencadeando um terremoto e enviando uma enorme onda para a praia.
Contos nativo-americanos de comunidades litorâneas do Noroeste Pacífico falam de batalhas entre pássaros mitológicos e baleias que faziam o chão balançar e provocavam ondas enormes. Todas essas histórias parecem descrições pré-científicas de um tsunami: uma onda provocada por um terremoto que pode inundar a costa de repente e deixar consequências catastróficas.
Outras histórias sobre inundações evocam falhas em barragens de gelo e detritos nas margens de geleiras que liberaram de repente os rios que elas seguravam. Uma história escandinava, por exemplo, fala sobre como Odin e seus irmãos mataram o gigante de gelo Ymir, causando uma enorme enchente e afogando pessoas e animais. Não é preciso muita imaginação para ver como isso descreve a falha em uma barreira glacial.
Enquanto fazia trabalho de campo no Tibet, aprendi uma história local sobre um guru que drenava um lago no vale do Rio Tsangpo, no limite da Planície Tibetana — depois que nosso time descobriu terraços feitos de sedimentos empoleirados bem acima do chão do vale. Os fragmentos de madeira de mais de 1.200 anos que coletamos dos sedimentos do lago correspondem à época em que o guru chegou no vale e converteu a população local ao Budismo ao derrotar, segundo conta a história, o demônio do rio e revelar o fértil fundo do rio no qual os moradores da vila ainda praticam agricultura.
Não espere provas definitivas
Claro, tentativas de usar a ciência para relacionar contos antigos com eventos reais são repletas de especulação. Mas fica claro que histórias sobre grandes enchentes são algumas das mais antigas da humanidade. E o padrão global de tsunamis, enchentes causadas por quebra de geleiras, e inundações catastróficas de áreas baixas se encaixam muito bem com detalhes incomuns dessas histórias.
E mesmo que evidências geológicas tenha acabado com a ideia de uma enchente global há quase dois séculos, existem opções de explicação racional para o dilúvio bíblico. Uma é a inundação catastrófica que os oceanógrafos Bill Ryan e Walter Pitman sugerem que aconteceu quando o aumento pós-glacial do nível do oceano rompeu o Bósforo e decantou o Mediterrâneo em um vale de planície de água doce, formando o Mar Negro. Ou talvez esteja relacionado com a inundação cataclísmica na planície da zona estuarina da Mesopotâmia, como a que inundou o delta de Irrawaddy em 2008, matando mais de 130.000 pessoas.
O novo trabalho de Wu e seus colegas prova que a enchente que eles reconstruíram foi, de fato, a do Imperador Yu? Não, mas monta um caso intrigante sobre essa possibilidade. Ainda assim, pesquisadores que estudaram barragens de detritos em Jishi George anteriormente concluíram que os lagos antigos do local foram drenados lentamente, e foram datados como sendo 1000 anos mais velhos do que as datas reportadas nesse novo artigo. Houve mais de uma geração de barragens de detritos e enchentes? Sem dúvida os geólogos continuarão debatendo sobre as evidências. Isto é, afinal, o que fazemos.
Sempre fez parte da natureza humana se fascinar por e prestar atenção no mundo natural. Grandes inundações e outros desastres naturais por muito tempo foram vistos como obra de divindades ou entidades sobrenaturais bravas. Mas agora que estamos aprendendo que algumas histórias antes vistas como folclóricas e mitos podem ter suas raízes plantadas em eventos reais, os cientistas estão prestando um pouco mais de atenção aos contadores de histórias.
Esse artigo foi originalmente publicado no The Conversation. Leio o artigo original.
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