quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Tratamento farmacológico da distimia: avaliação crítica da evidência científicafa

Pharmacological treatment of dysthymia: a critical appraisal of the evidence

Maurício Silva de Lima1



RESUMODistimia é um transtorno depressivo de natureza crônica, mas de menor gravidade que a depressão maior, cujos sintomas persistem por mais ou menos dois anos. Este artigo aborda aspectos relativos à eficácia do tratamento farmacológico na distimia, a partir de resultados de revisões sistemáticas recentemente concluídas. Em termos de eficácia, os resultados foram similares para as diferentes classes de drogas, tais como tricíclicos (ADT), inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), inibidores da mono-amino-oxidase (IMAO) e outras drogas (sulpirida, amineptina, e ritanserina). Os pacientes tomando tricíclicos relataram um maior número de efeitos adversos, comparado com placebo. Em resumo, o tratamento farmacológico da distimia é eficaz, sem efeito diferencial entre os diversos antidepressivos. O uso de tricíclicos está associado à maior ocorrência de efeitos adversos e de desistências. Apesar de a distimia ser uma doença crônica, existe ainda informação limitada sobre a qualidade de vida dos pacientes e sobre o tratamento a médio e longo prazo.
DESCRITORES
Distimia, revisão sistemática, metanálise, depressão crônica, antidepressivos.

ABSTRACT
Dysthymia is a depressive disorder of chronic nature but of less severity than major depression, in which depressive symptoms are more or less continuous for at least two years. This paper discusses the role of pharmacological treatment for dysthymia. Similar results are found in terms of efficacy for different groups of drugs, such as tricyclic (TCA), selective serotonin reuptake inhibitors (SSRI), monoamine oxidase inhibitors (MAOI) and other drugs (sulpiride, amineptine, and ritanserin). Patients treated on TCA are more likely to report adverse events, comparing with placebo. In conclusion, pharmacological treatment seems to be effective in the treatment of dysthymia with no differences between and within class of drugs. Although dysthymia is a chronic condition, there remains little information on quality of life and medium or long-term outcome.
KEYWORDS
Dysthymia, systematic review, meta-analysis, chronic depression, antidepressants.


Introdução
O termo "distimia" refere-se a um transtorno afetivo de natureza crônica, caracterizado por sintomatologia depressiva, cuja gravidade costuma ser menor que aquela encontrada na depressão maior. O diagnóstico de distimia foi definido na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana,em 1980. Persistem ainda dúvidas sobre sua natureza precisa e seus limites, já que apenas recentemente dados populacionais passaram a ser disponíveis.
A distimia é uma síndrome depressiva leve ou moderada, os sintomas são persistentes e a prevalência é maior na população geral do que as depressões graves ou psicóticas. Estudos epidemiológicos como o ECA2mostraram que a co-morbidade também é elevada: mais de 2/3 dos pacientes apresentam também depressão maior, abuso de substância ou algum transtorno de ansiedade.
Distimia tornou-se logo um termo popular nos Estados Unidos da América e em outros países, como o Brasil. Já na Europa esse conceito enfrenta resistências, principalmente na Inglaterra, onde diagnósticos que supostamente abrangem a distimia, como as `depressões menores' e a depressão ansiosa, são utilizados para descrever um grupo heterogêneo de transtornos comumente encontrados na prática médica geral. Recentemente, um artigo escrito por um psiquiatra inglês defendia a utilidade do diagnóstico sindrômico `síndrome neurótica geral', incluindo pacientes com sintomas ansiosos, depressivos e com características de personalidade dependente, situação comum em ambulatórios e serviços de atenção primária à saúde em geral.3
Parece não haver dúvida de que a inclusão da distimia entre os transtornos de humor representou um grande avanço no tratamento dos pacientes cronicamente deprimidos. Muitos pacientes, anteriormente vistos como portadores de perturbação caracterológica (transtorno de caráter depressivo), e caracteristicamente resistentes às abordagens psicoterapêuticas tradicionais, passaram a ser abordados dentro da perspectiva terapêutica das doenças afetivas, resultando em um aumento do interesse na abordagem farmacológica nesse grupo de pacientes.
Uma quantidade razoável de estudos clínicos randomizados foram conduzidos, a partir da década de 80, visando avaliar a eficácia do tratamento farmacológico da distimia. A partir dos resultados de uma revisão sistemática,4,* discute-se neste artigo aspectos relacionados à eficácia e tolerabilidade dos antidepressivos na distimia.

Métodos e resultados
Com o objetivo de evitar viés de publicação, foi realizada uma busca compreensiva de todos os ensaios clínicos randomizados, nos quais qualquer psicofármaco fosse comparado com placebo no tratamento da distimia. Foram consultadas várias bases de dados eletrônicas, como Medline, Embase, Lilacs, Biological Abstracts, e Cochrane Library. A estratégia de busca de artigos relevantes inclui ainda checagem manual de referências e capítulos de livros, contatos com os autores dos principais estudos e com companhias farmacêuticas (a estratégia de pesquisa completa está disponível a partir do volume 2 de 1997 da Cochrane Library). Foram encontradas 5.513 referências, cujos resumos foram checados em busca de artigos potencialmente elegíveis.
Foram localizados 15 ensaios clínicos randomizados5-19 que preencheram todos os critérios de inclusão e que apresentavam pelo menos um desfecho clínico que pudesse ser combinado com os demais estudos, através de metanálise. A tabela 1 mostra os resultados, de acordo com a classe de antidepressivos, em termos de resposta clínica. No geral, o tratamento farmacológico mostrou ser superior ao placebo, com resultados estatisticamente significativos para todos os grupos de drogas. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre drogas e entre classes de drogas.


Definido como o inverso das diferenças de riscos entre os grupos, o `número necessário para tratar - NNT,5 foi semelhante entre os grupos de drogas: 4.3 para os tricíclicos, 4.7 para os serotoninérgicos, 2.9 para os Inibidores da MAO e 3.9 para as outras drogas agrupadas. O NNT é uma medida epidemiológica útil para o clínico, e expressa o número de pacientes que precisamos tratar com antidepressivos (no caso da distimia, em torno de 4) para obter uma melhora, quando comparado com o grupo placebo. Esse número é equivalente àquele necessário para prevenir infarto, morte e AVC em pacientes hipertensos tratados com drogas hipertensivas, um tratamento consagrado em prática médica geral.5 Ainda que quatro pareça um número elevado, é preciso lembrar que boa parte dos pacientes com depressão tratados com placebo melhoram, principalmente se a depressão for leve ou moderada.
No geral, a qualidade dos estudos incluídos na metanálise foi razoável. Cinco autores forneceram informações adicionais e com isso maiores detalhes sobre a qualidade metodológica foram obtidos. Uma análise de sensibilidade comparou os ensaios clínicos com escores mais altos em uma escala para avaliação de qualidade dos ensaios com os mais baixos, e não foram encontradas diferenças entre os dois grupos.
Com relação à tolerabilidade, apesar de haver uma tendência de um maior número de `dropouts' nos estudos com tricíclicos, quando comparado com as taxas observadas no grupo placebo, essa diferença não foi estatisticamente significativa. O mesmo ocorreu com outras classes de medicamentos. Já os efeitos adversos foram mais freqüentes nos pacientes tomando tricíclicos, o mesmo ocorrendo com amineptina e ritanserina. Os efeitos adversos não foram significativamente mais freqüentes do que aqueles observados em pacientes tomando placebo nos estudos com serotoninérgicos e IMAO.
As doses de antidepressivos empregadas nos estudos incluídos na revisão não são diferentes daquelas descritas como as mais adequadas e usadas em estudos sobre outras formas de depressão (por exemplo, cerca de 150 mg de Imipramina por dia).

Conclusões
Existe evidência científica, a partir de 15 ensaios clínicos randomizados comparando antidepressivos com placebo, e com razoável qualidade metodológica, sugerindo que os antidepressivos são eficazes no tratamento a curto prazo da distimia. Os resultados foram homogêneos, apesar de se referirem a diferentes estudos, em diferentes contextos e populações, o que aumenta o poder de extrapolação desses resultados.
Os resultados sugerem também que antidepressivos mais seletivos, como os serotoninérgicos, apresentam um melhor perfil de tolerabilidade, o que pode resultar em maior adesão ao tratamento.
Não existe evidência confirmando a crença de que doses maiores que as habituais são necessárias para que se atinja resposta terapêutica nesses pacientes.
No entanto, existe uma importante interrogação relativa aos tratamentos farmacológicos da distimia. Os resultados aqui apresentados referem-se à resposta terapêutica a curto prazo, no máximo avaliada ao final de 12 semanas. Considerando-se a natureza crônica da distimia, são necessárias maiores informações no que diz respeito a ensaios clínicos com longo período de acompanhamento. Existe também carência de informações relativas à qualidade de vida.
A evidência disponível no momento envolve um bom número de pacientes, é de boa qualidade e indica que pacientes portadores de depressão crônica, tradicionalmente considerados resistentes às abordagens terapêuticas, podem se beneficiar com o uso de antidepressivos a curto prazo e a um custo relativamente baixo.

Referências bibliográficas
1. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III). 3rd ed. Washington (DC): APA; 1980.         [ Links ]
2. Weissman MM, Leaf PJ, Bruce ML, Florio L. The epidemiology of dysthymia in five communities: rates, risks, comorbidity and treatment. American Journal of Psychiatry 1988;145:815-9.         [ Links ]
3. Tyrer P, Seivewright N, Ferguson B, Tyrer J. The general neurotic syndrome: a coaxial diagnosis of anxiety, depression and personality disorder. Acta Psychiatr Scand 1992;85(3):201-6.         [ Links ]
4. Lima MS, Moncrieff J. A comparison of drugs versus placebo for the treatment of dysthymia: a systematic review. The Cochrane Library 1999, Issue 1. Oxford: Update Software; Updated quarterly.         [ Links ]
5. Bakish D, Lapierre YD, Weinstein et al. Ritanserin, Imipramine and placebo in the treatment of dysthymic disorder. Journal of Clinical Psychopharmacology 1993;13:409-14.         [ Links ]
6. Bella R, Biondi R, Raffaele R, Pennisi G. Effect of acetyl-L-carnitine on geriatric patients suffering from dysthymic disorders. International Journal of Clinical Pharmacological Research 1990;10:355-60.         [ Links ]
7. Bersani G, Pozzi F, Marini S, Grispini A, Pasini A, Ciani N. 5-HT2 receptor antagonism in dysthymic disorder: a double-blind placebo-controlled study with ritanserin. Acta Psychiatric Scand 1991;83:244-8.         [ Links ]
8. Botte L, Gilles C, Evrard JL, Meesters D, Roth Sir M, Stenier P, et al. Moclobemide versus placebo in the treatment of depression. A multicentre study in Belgium. Proceedings of the International Symposium `The treatment of depression in the 1990s'; 1989; Lisbon, Portugal.         [ Links ]
9. Boyer P, Lecrubier Y. Atypical antipsychotic drugs in dysthymia: placebo controlled studies of amisulpride versus imipramine, versus amineptine. European Psychiatry 1996;11:135s-40s.         [ Links ]
10. CostaeSilva J. Traitement des dysthymies par de faibles doses d'amisulpride. Etude comparative amisulpride 50 mg/j versus placebotreatment of dysthymic disorder with low-dose amisulpride. A comparative study of 50 mg/d amisulpride versus placebo. Annales De Psychiatrie 1990;5:242-9.         [ Links ]
11. Hellerstein DJ, Yanowith P, Rosenthal J, Samstag LW, Maurer M, Kasch K, et al. A randomized double-blind study of fluoxetine versus placebo in the treatment of dysthymia. American Journal of Psychiatry 1993;150:1169-75.         [ Links ]
12. Kocsis JH, Frances A, Mann J, et al. Imipramine for treatment of chronic depression. Psychopharmacology Bulletim 1985;21:698-700.         [ Links ]
13. Guelfi J, Wiseman R. Treatment of dysthymia with sertraline: a double-blind, placebo-controlled trial in dysthymic patients without major depression. Proceedings of the 8th European College of Neuropsychopharmacology Congress; 1995; Venice, Italy.         [ Links ]
14. Reyntjens A, Gelders YG, Hoppenbrouwers JA, Bussche GV. Thymosthenic effects of ritanserin (R 55667), a centrally acting serotonin-S2 receptor blocker. Drug Development Research 1986;8:205-11.         [ Links ]
15. Stewart JW, McGrath PJ, Liebowitz MR, Harrison W, Quitkin F, Rabkin JG. Treatment outcome validation of DSM-III depressive subtypes. Clinical usefulness in outpatients with mild to moderate depression. Archives of General Psychiatry 1985;42:1148-53.         [ Links ]
16. Stewart JW, McGrath PJ, Quitkin FM, et al. Chronic depression: response to placebo, imipramine, and phenelzine. Journal of Clinical Psychopharmacology 1993;13:391-6.         [ Links ]
17. Thase M, Fava M, Halbreich U, Kocsis JH, Koran L, Davidson J, et al. A placebo-controlled, randomized clinical trial comparing sertraline and imipramine for the treatment of dysthymia. Archives of General Psychiatry 1996;53:777-84.         [ Links ]
18. Vanelle JM, Attar-Levy, Poirier MF, Bouhassira M, Blin P, Olie JP. Controlled efficacy study of fluoxetine in dysthymia. British Journal of Psychiatry 1997;170:345-50.         [ Links ]
19. Versiani M, Amrein R, Stabl M and the International Collaborative Study Group. Moclobemide and Imipramine in Chronic Depression (Dysthymia). Int Clin Psychopharmacol 1997;12(4):183-93.         [ Links ]

Correspondência
Maurício Silva de Lima
Av. Duque de Caxias, 250
Pelotas, RS - Brasil
Tratamento farmacológico da distimia


1. Professor Adjunto do Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
* Lima MS, Hotopf M, Wessely S. The efficacy of drug treatments for dysthymia: a systematic review and meta-analysis. Psychological Medicine (no prelo).

Nenhum comentário:

Postar um comentário