terça-feira, 16 de setembro de 2014

CA-MRSA em furunculose: relato de caso do sul do Brasil

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Fernanda RazeraI; Sabrina De StefaniII; Renan Rangel BonamigoIII; Gislaine Silveira OlmIV; Cícero Armídio Gomes DiasV; Gabriel Azambuja NarvaezVI
IMestre em epidemiologia. Médica dermatologista do Serviço de Dermatologia do Hospital Mãe de Deus - Porto Alegre (RS), Brasil
IIMestranda do programa de pós-graduação em patologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Médica dermatologista do Serviço de Dermatologia do Hospital Mãe de Deus - Porto Alegre (RS), Brasil
IIIDoutor em ciências médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Chefe do Serviço de Dermatologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e do Serviço de Dermatologia do Hospital Mãe de Deus - Porto Alegre (RS), Brasil
IVMestranda do programa de pós-graduação em hepatologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Médica dermatologista do Serviço de Dermatologia do Hospital Mãe de Deus - Porto Alegre (RS), Brasil
VDoutor em ciências (microbiologia) - UFRJ. Professor adjunto em microbiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) - Porto Alegre (RS), Brasil
VIMédico infectologista do Hospital Mãe de Deus - Porto Alegre (RS), Brasil



RESUMO
Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA), outrora isolado especificamente em ambientes hospitalares, vem sendo identificado como causador de infecções cutâneas em pacientes da comunidade. Neste artigo, é relatado um caso do sul do Brasil com furunculose por CA-MRSA. O microrganismo isolado foi submetido a exames de PCR para o gene mecA e para o gene que codifica a leucocidina de Panton-Valentine. Esses exames permitiram a identificação genotípica do CA-MRSA.
Palavras-chave: Furunculose; Resistência a meticilina; Staphylococcus aureus

INTRODUÇÃO
Staphylococcus aureus é bactéria comumente encontrada na pele e na cavidade nasal da população. Estima-se que aproximadamente 25 a 30% da população seja carreadora dessa bactéria.1 Os S. aureus meticilina- resistentes (MRSA, em inglês) são bactérias resistentes aos antibióticos betalactâmicos (oxacilina, penicilina e amoxicilina). Inicialmente, essas infecções estavam restritas a ambientes nosocomiais.2 A partir da década de 80, foram descritos os primeiros casos de infecções por S. aureus resistentes à meticilina em pacientes que não apresentavam os fatores predisponentes reconhecidos. Esses estafilococos foram denominados de S. aureusresistentes à meticilina adquiridos na comunidade (CA-MRSA, em inglês). Os primeiros relatos de CA-MRSA isolados na América Latina foram feitos em Porto Alegre em 2002 e 2003; dos três casos relatados, dois apresentavam lesões cutâneas ou de partes moles.3
Como a maioria das infecções causadas por MRSA oriundos da comunidade está restrita à pele e ao tecido subcutâneo, torna-se essencial o papel do dermatologista no reconhecimento e manejo dessa infecção. O presente trabalho reporta um caso atendido em um pronto-atendimento dermatológico, com quadro de piodermite causada por CA-MRSA.

RELATO DO CASO
Paciente branca, de 32 anos, apresentou placa eritematosa, infiltrada, com uma pústula isolada sobre a lesão, no membro inferior direito (região da coxa), com dor e calor no local. Apresentava lesão semelhante, com tamanho menor, na perna esquerda. Sem sintomatologia sistêmica, a paciente havia sido tratada para "picada de aranha". Previamente hígida, relatava cesariana cinco meses antes do início do quadro. O marido apresentava lesões semelhantes e também recebera o mesmo tratamento, sem boa resposta. Foi realizado exame bacterioscópico e bacteriológico da pústula e iniciado tratamento com cefalosporina de primeira geração por 14 dias.
Na primeira semana de tratamento, o eritema regrediu e ficaram realçadas lesões furunculoides (Figura 1). Ao final dos 14 dias, houve regressão total do quadro. O antibiograma mostrou S. aureus resistente à oxacilina e sensível aos demais antibióticos testados (sulfametoxazol-trimetropin, clindamicina, eritromicina, gentamicina, ciprofloxacina e vancomicina), compatível com as características fenotípicas do CA-MRSA.


O microrganismo isolado foi submetido aos seguintes testes visando a sua caracterização genotípica: PCR para o gene mecA e determinação do tipo de cassete cromossômico, tipagem molecular por eletroforese em campo pulsado (PFGE) e multilocus sequence typing (MLST), além de PCR para o gene lukF-PV, que codifica a leucocidina de Panton- Valentine. Foi constatada a presença do gene mecA, inserido em SSCmec tipo IV, e do gene que codifica a exotoxina Panton-Valentine. A amostra apresentou características moleculares compatíveis com o clone ST30 - OSPC (Oceania Southwest Pacific clone) (Figura 2).4


Diante dos achados clínicos, fenotípicos e genotípicos, foi feito diagnóstico de piodermite por CA-MRSA.

DISCUSSÃO
A prevalência das infecções causadas por CAMRSA vem aumentando.5 Purcell e Fergie demonstraram que, em 1990, 2,9% dos S. aureus isolados eram meticilina-resistentes. 5 Em 2000, a prevalência aumentou para 19% e para 62,4% em 2003.5 Outros estudos apontam para prevalência de 53% de S. aureus meticilina-resistente. 6
As manifestações clínicas podem variar desde lesões cutâneas sem gravidade até choque séptico. O acometimento cutâneo é o mais prevalente, podendo alcançar 94% das manifestações clínicas decorrentes da infecção por essa bactéria.5,7,8 Os abscessos e as furunculoses são as lesões mais relatadas. 2,3,5,6,8 Também são descritos celulite, pápulas ou nódulos eritematosos, placas com crostas (impetigo) ou ainda a combinação desses quadros clínicos.6
A resistência à meticilina ocorre pela produção da PBP2a, proteína ligadora à penicilina que diminui a atividade da maioria das penicilinas. A PBP2a é codificada pelo gene mecA carreado por um elemento genético móvel conhecido como cassete cromossômico estafilocócico (SCC). São reconhecidos, atualmente, cinco tipos de SCCmec: I, II, III, IV e V. Os três primeiros estão presentes predominantemente nos MRSA hospitalares, enquanto os últimos são encontrados nos MRSA adquiridos na comunidade.2,7,9 Por ser uma molécula pequena, acredita-se que o mec IV tenha maior facilidade de disseminação do que os elementos genéticos carreadores dos mec I, II e III.1,2 O SSCmec IV codifica resistência apenas à meticilina/oxacilina, e não a outras drogas não betalactâmicas.
As infecções cutâneas por CA-MRSA ocorrem após a colonização cutânea ou nasal do hospedeiro. Provavelmente as bactérias CA-MRSA possuem características de virulência como maior aderência, maior resistência a alguns sais e a exotoxina leucocidina Panton-Valentine (PVL), que permitem que elas prevaleçam sobre as bactérias comensais.2 A exotoxina leucocidina Panton-Valentine (PVL) é letal para neutrófilos e causa necrose celular, havendo predileção pela pele e tecido subcutâneo. A PVL está associada, também, a pneumonia necrotizante.2,7,10,11
Os pacientes sem lesões graves, sem história de exposição a ambientes nosocomiais e em locais de baixa prevalência podem iniciar tratamento com penicilinas resistentes à penicilinase (oxacilina) ou com cefalosporinas de primeira geração (cefazolina, cefalexina), enquanto aguardam o resultado definitivo da cultura.2,12 Para os pacientes com infecções menos graves ou crônicas, pode ser aconselhável aguardar resultados de cultura, otimizando o tratamento.2
No caso de lesões com coleções purulentas, salienta-se que o tratamento de escolha é a drenagem dos abscessos, podendo ser o tratamento definitivo em muitos casos.2,5,6,11
Apesar de haver fator de risco para MRSA identificável na história prévia da paciente (parto cesáreo cinco meses antes da piodermite), já havia suspeita da possibilidade de tratar-se de CA-MRSA devido às características de resistência apresentada a outros antibióticos não betalactâmicos. Diante das características genotípicas encontradas, confirmou-se a possibilidade de CA-MRSA com fator de risco. 4
Devido à dificuldade da diferenciação entre infecções adquiridas ou não na comunidade e ao aumento de incidência suposto, é importante estar atento a tal possibilidade, uma vez que há risco de progressão para infecções mais graves.

AGRADECIMENTO
Os autores agradecem à Profª Agnes Figueiredo, do Instituto de Microbiologia Professor Paulo de Góes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela caracterização molecular da amostra.

REFERÊNCIAS
1. Centers for Disease Control and Prevention. CDC.org [acesso 09/07/07]Disponível em:www.cdc.gov/ncidod/dhqp/ar_mrsa_ca_clinicians.html         [ Links ]
2. Zetola N, Francis JS, Nuermberger EL, Bishai WR. Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus: an emerging threat. Lancet Infect Dis, 2005;5:275-86         [ Links ]
3. Ribeiro A, Dias C, Silva-Carvalho MC, Berquó L, Ferreira FA, Santos RNS, et al. First Report of infection with Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus in South America. J Clin Microbiol. 2005;43:1985-8         [ Links ]
4. Ribeiro A, Coronado AZ, Silva-Carvalho MC, Carvalho BTF, Dias C, Rozenbaum R, et al. Detection and Characterization of international community-acquired infections by methicillin-resistant Staphylococcus aureusclone in Rio de Janeiro and Porto Alegre cities causing both community- and hospital associated diseases. Diangnostic microbiology and Infectious Disease (in press)         [ Links ]
5. Purcell K, Fergie J. Epidemic of Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus infectious. Arch Pediatr Adolesc Med. 2005;159:980-5         [ Links ]
6. Cohen PR, Kurzrock R. Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus skin infectious: An emerging clinical problem. J Am Acad Dermatol. 2004;50: 277-80         [ Links ]
7. Dietrich DW, Auld DB, Mermel LA. Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus in Southern New England Children. Pediatrics. 2004;113:347-52         [ Links ]
8. Ma XX, Galiana A, Pedreira W, Mowszowicz M, Christophersen I, Machiavello S, et al. Communityacquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus, Uruguay. Emerging Infectious Disease. 2005;11:973-6         [ Links ]
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11. Elston DM. Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus. J AM Acad Dermatology. 2007;56:1-16         [ Links ]
12. Cohen PR, Grossman ME. Management of cutaneous lesions associated with an emerging epidemic: Community-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus skin infections. J Am Acad Dermatol. 2004;51:132-5        [ Links ]


 Endereço para correspondência:
Fernanda Razera
Rua General Couto de Magalhães, 1.876/303
Bairro São João
90540 130 Porto Alegre RS, Brasil

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