Questões notariais e registrais
O receio dos Oficiais de Registro de proceder ao registro de escritura de bem de família, mormente quando o instituidor apresenta distribuições contra o seu nome, é, indubitavelmente, descabido.
INTRODUÇÃO
Decidi escrever este texto sobre o bem de família contratual, restringindo-me a abordar tão somente aspectos relativos às áreas notarial e registral, muito em razão da grande dificuldade encontrada por mim e, acredito, também pelos demais colegas Notários, em registrar uma escritura pública de instituição de bem de família.
No decorrer deste estudo, veremos que o receio dos Oficiais de Registro de proceder ao registro desse tipo de escritura, mormente quando o instituidor apresenta distribuições contra o seu nome, é, indubitavelmente, descabido.
Na minha ótica, muito pelo contrário, a instituição do bem de família se consubstancia numa situação que oferece muito mais segurança para esse eventual credor.
Passemos, então, a discorrer sobre o tema em questão.
O nosso direito consagra o princípio da responsabilidade patrimonial do inadimplente, que está previsto no art. 391, do Código Civil, e art. 591, do Código de Processo Civil, segundo os quais todos os bens do devedor respondem por perdas e danos decorrentes do inadimplemento da obrigação, salvo as restrições previstas em lei, entre elas o bem de família.
O instituto do bem de família se encontrava regulado no Código Civil de 1916, nos artigos 70 a 73, na PARTE GERAL, do Livro II, que tratava dos BENS (Livro I, das Pessoas, Livro II, dos Bens e Livro III, dos Fatos Jurídicos).
No Código passado, a regulamentação do bem de família estava sustentada em duas normas básicas: o Decreto-Lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, e a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos).
A Lei nº 10.406 (Código Civil/2002), modificando a anterior, enquadrou o bem de família contratual, dentro da PARTE ESPECIAL, do Livro IV, que se refere ao DIREITO DE FAMÍLIA, nos artigos 1.711 a 1.722.
O Código Civil de 2002 não revogou expressamente normas supracitadas, no entanto, alguns dos seus dispositivos são incompatíveis com o texto do atual Código, o que nos remete a sua revogação, ainda que parcialmente.
A intenção do legislador, bem como a do idealizador do Anteprojeto do Código Civil de 2002, pertinente ao Livro IV, do DIREITO DE FAMÍLIA, Professor CLOVIS COUTO E SILVA, foi conferir, efetivamente, vida ao aludido instituto, de molde a torná-lo suscetível de realizar a sua alta função social.
Exemplo disso foi a previsão da formação de um patrimônio separado cuja renda se destina à salvaguarda da família, permitindo-se, inclusive, que valores mobiliários fossem abrangidos pela sua proteção, a meu ver, um novo e valioso instrumento para um planejamento sucessório.
DA DECLARAÇÃO DE SOLVÊNCIA DO INSTITUIDOR
Atualmente, na Cidade do Rio de Janeiro, para que seja lavrada uma escritura pública de bem de família, exigimos da parte interessada a juntada das certidões negativas de estilo.
Cabe aos estados deliberarem sobre essa matéria, nesse caso, o Poder Judiciário, por meio das suas Corregedorias Estaduais, estabelece as suas próprias normas sobre quais certidões seriam necessárias para a lavratura daquele pretendido ato.
Então, a primeira grande dúvida que se nos descortina é quais seriam as certidões necessárias para a lavratura de uma escritura de um bem de família.
Seria realmente necessária a juntada das certidões de praxe, considerando-se que, quando se institui um bem de família, não se está onerando, tampouco alienando?
E, não se tratando de uma alienação ou de uma oneração, qual seria a natureza jurídica do bem de família?
Segundo entendimento majoritário da doutrina, incluindo nesse rol o nosso grande mestre CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, o instituto do bem de família é uma forma de “afetação de bens a um destino especial, que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio.” (g.n)
Por seu turno, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, acertadamente, por meio da sua Consolidação Normativa, determina no inciso IX, do art. 241, o que se segue adiante:
“Art. 241 – Antes de lavrar a escritura, o tabelião observará:..................... omissis ................IX - na escritura lavrada para instituição de bem de família, na forma prevista no art. 1.711 do Código Civil, a certidão do imóvel objeto da instituição, devidamente atualizada, bem como declaração do (s) instituidor (es) sobre a existência de dívidas de qualquer natureza.” (g.n)
Ultrapassada essa questão da necessidade ou não da juntada das certidões, enfrentaremos outro problema, haja vista que os Oficiais de Registro de Imóveis da Cidade do Rio de Janeiro, pelo menos aqueles com quem tive contato direto, entendem que, se houver distribuição no nome do instituidor, o registro da escritura de bem de família será negado.
Entendo, sim, que está havendo uma grande confusão!
Primeiramente, que, muitas vezes, o réu de uma determinada ação é, na verdade, um credor em potencial, como se vê nas ações de revisão de aluguel, renovatória, consignação em pagamento.
Portanto, ser réu não equivale a dizer que o instituidor seja devedor ou insolvente!
Posteriormente, há outro grande imbróglio, o fato de determinada pessoa, física ou jurídica, apresentar distribuições contra ela, não quer dizer que essa pessoa seja insolvente.
São conceitos completamente distintos, sendo certo que não cabe ao Notário ou ao Registrador comprovar a solvência ou a insolvência de determinada pessoa.
O conceito de insolvência está previsto no art. 748, do Código de Processo Civil, segundo o qual “dá-se insolvência toda vez que as dívidas excederem à importância dos bens do devedor”. (g.n)
Vejamos o entendimento dos festejados civilistas, NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIAS[1]:
“Vale esclarecer, por oportuno, que a lei não exige do instituidor a comprovação do seu estado de solvência quando da constituição do bem de família convencional. É que a solvência é presumida” (g.n)
Comungando com esse entendimento, LEONI LOPES DE OLIVEIRA[2] esclarece: “mesmo que o instituidor tenha dívidas, poderá instituir determinado imóvel como bem de família. A existência da dívida não impede a instituição, nem a invalida, mas, em relação às dívidas anteriores à instituição, não se pode alegar a impenhorabilidade”. Na mesma esteira, ALVARO VILLAÇA DE AZEVEDO[3][4].
Isso importa dizer que basta que conste na escritura pública de instituição de bem de família declaração do instituidor afirmando, sob as penas da lei, que ele é solvente.
Aliás, o nosso sistema notarial funciona basicamente em função das declarações das partes envolvidas. Quando determinada pessoa se declara brasileiro, solteiro, engenheiro, residente e domiciliado na Rua das Acácias s/nº, nós, Notários e Registradores, não vamos desempenhar o papel de detetives e comprovar se todas as declarações prestadas são verdadeiras.
Vale repetir, caberá ao Oficial Registrador verificar, simplesmente, se consta na escritura pública de instituição de bem de família declaração do instituidor de que ele seja solvente.
Por outro lado, a meu ver, não se justifica o receio dos Oficiais de Registro de proceder ao registro de uma escritura pública de bem de família, quando há distribuições que possam, pelo menos, potencialmente, comprometer aquele patrimônio do instituidor.
Visto que, uma vez registrada a escritura, o instituidor não poderá alienar aquele bem afetado a terceiros, sem autorização judicial. E, perante aquele credor de dívida anterior, a instituição será ineficaz, sendo-lhe inoponível a impenhorabilidade.
Não resta a menor dúvida de que, entre as duas situações, é muito mais confortável e seguro para o credor que a parte institua bem de família, do que o aliene a terceiros.
Mormente, quando a nossa Corte Especial do STJ editou a Súmula 375: “O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.” (vide §4º, do art. 659, do CPC).
Em poucas palavras, de acordo com o STJ, se não houver o registro da penhora, aquele que comprou o bem, ainda que em curso a execução, será considerado comprador de boa-fé.
Acrescente-se, igualmente, que, caso não se trate de processo de execução, o credor poderá propor anulatória de negócio jurídico e, se for o caso, requerer a tutela antecipada e terá o prazo decadencial de 4 (quatro) anos para propor a ação competente.
Nesse caso, o prazo para a propositura da ação terá início no dia em que se realizou o negócio jurídico, vide inciso II, do art. 171 c/c com o inciso II, do art. 178, ambos do Código Civil.
Enquanto isso, o bem instituído permanece inalterado, não poderá ser alienado, sem autorização judicial, proporcionando ao credor maior segurança.
Por derradeiro, ressalte-se que, se a declaração prestada pelo instituidor for falsa, este poderá, simultaneamente, ser tipificado no crime de falsidade ideológica, vide art. 299, do Código Penal, que tem a seguinte redação:
“Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.” (g.n)
DA OUTORGA UXÓRIA PARA INSTITUIÇÃO
Passemos, agora, para outra celeuma jurídica, qual seja, é necessária a outorga uxória, no momento em que um casal ou conviventes decidem instituir bem de família, mesmo que se trate de um bem particular?
Entendo também ser despicienda a exigência da aludida outorga, quando se tratar de bem particular, visto que, quando afetamos um bem, com o propósito de ele servir de moradia à família, não estamos onerando, nem alienando, consequentemente, a regra contida no inciso I, do art. 1.647, não se aplica à instituição do bem de família.
Corroborando esse entendimento, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[5], in verbis:
“Afirme-se, por oportuno, a desnecessidade de outorga do cônjuge para a instituição do bem de família, considerando que o instituto “não representa uma alienação ou gravame, mas, ao revés, um benefício constituído em prol do grupo familiar, como percebe MARCIONE PEREIRA DOS SANTOS. Aliás, não seria demais lembrar que o conteúdo do art. 1645 da Lei Civil é de clareza meridiana, indicando a necessidade da outorga do consorte apenas para a alienação ou oneração de bens imóveis, deixando antever a desnecessidade de consentimento para a instituição do bem de família.” (g.n)
DO CONSENTIMENTO DE AMBOS OS CÔNJUGES OU CONVIVENTES PARA ACEITAR DOAÇÃO OU HERANÇA
Entendo, igualmente, ser desnecessária a exigência da aceitação de ambos os cônjuges ou companheiros, para que receba um bem em doação ou herança, subordinados à instituição do bem de família.
Suponhamos a seguinte situação, eu resolvo doar determinado bem imóvel a uma pessoa casada, será necessária a aceitação de ambos os cônjuges?
A resposta é muito simples: não!
Agora, se eu resolvo doar um determinado bem e acrescento uma modalidade na minha doação, será agora necessária a aceitação de ambos, cônjuges ou companheiros, se não houver comunicação de bens entre eles?
A resposta continua sendo simplesmente não!
Penso que, somente quando o casal ou os conviventes estabelecerem o regime da comunhão universal de bens e não for imposto o gravame da incomunicabilidade será imprescindível o consentimento de ambos, pois, nesse caso, ninguém poderá ser impelido a aceitar uma doação, subordinada à instituição de bem de família, contra a sua vontade.
O mesmo se dará quando terceiro estipular a instituição do bem de família em testamento; somente quando tiver comunicação de bens haverá a necessidade da aceitação de ambos, cônjuges ou conviventes.
DA OPOSIÇÃO À INSTITUIÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA
Atentemo-nos bem para o procedimento, quando houver oposição de terceiro à instituição de bem de família, nessa hipótese, o Registrador não suscitará dúvida, ele suspenderá o registro, devolvendo-o ao interessado, v.g., art. 264, da LRP.
Vale dizer que o Oficial Registrador, ao receber o título para registro, deverá verificar os aspectos formais da escritura de instituição de bem de família, i.e., se consta declaração de que o instituidor seja solvente e, na hipótese de a instituição ser de bem do próprio instituidor, que conste declaração do aludido instituidor de que aquela afetação corresponde a 1/3 (um terço) do seu patrimônio líquido e, finalmente, se a certidão de ônus reais está de acordo.
A meu ver, bastaria isso.
Eventual oposição deverá ser de terceiro, não do Oficial Registrador.
E, na hipótese de haver a oposição de terceiro, o interessado, instituidor do bem de família, se for o caso, é quem deverá requerer ao juiz competente que ordene o registro, sem embargo da reclamação, ex vi do § 1º, do art. 264, da LRP.
Na Cidade do Rio de Janeiro, nos termos do inciso VII, do art. 89, do CODERJ, será o juiz da Vara de Registros Públicos competente para analisar esse requerimento.
A REGRA DA INSTITUIÇÃO EQUIVALENTE A 1/3 DO PATRIMÔNIO LÍQUIDO
O art. 1.711 e seu Parágrafo único reza o seguinte:
“Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse 1/3 (um terço) do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.Parágrafo único – O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo da eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.” (g.n)
O caput do art. 1.711 determina que os cônjuges ou os companheiros podem instituir bem de família, desde que não ultrapasse a um terço do patrimônio líquido, existente ao tempo da instituição.
Verifica-se, portanto, que essa exigência de que somente 1/3 (um terço) do patrimônio poderá ser afetado aplica-se tão somente aos cônjuges e aos companheiros, no momento em que pretendem afetar parte do seu patrimônio, como bem de família.
Acrescente-se, ainda, conforme mencionei anteriormente, que basta a declaração dos instituidores de que o bem afetado corresponde a 1/3 (um terço) do seu patrimônio líquido.
Com efeito, não será necessário que Notários e Registradores comprovem a veracidade da declaração prestada.
E, na hipótese de se tratar de declaração falsa, além de o instituidor responder criminalmente, como já visto acima, poderá a parte que se sentir preterida propor ação de nulidade do negócio jurídico, vide inciso II, § 1º, do art. 167 e art. 169, todos do Código Civil, e a prescrição se dará em 10 (dez) anos, posto não se tratar de ação imprescritível.
A finalidade da regra em questão, no que tange à limitação de 1/3 do patrimônio líquido, é evitar que todo o patrimônio do casal ou entidade familiar fique afetado.
E qual seria o inconveniente da afetação de todo o patrimônio?
Vejamos o que diz o grande jurista Sílvio de Salvo Venosa, in verbis:
“A nova roupagem do bem de família entre nós irá demonstrar sua conveniência ou não. É inconveniente a oneração de todo o patrimônio do interessado. É desvantajoso para a sociedade e para o próprio instituidor a oneração de seu único imóvel, porque isso dificultará sua vida negocial: não poderá contrair empréstimos de vulto, pois as instituições financeiras pedirão outras garantias.”[6] (g.n)
Por outro lado, o Código Civil vigente alterou, sobremaneira, o instituto do bem de família, possibilitando que um terceiro, por meio de doação ou de testamento, institua o bem de família.
Ainda, pela leitura do Parágrafo único, do art. 1.711, verificamos, nesse caso, para que o ato se torne eficaz, tratando-se de uma doação ou de um testamento, subordina-se apenas a aceitação expressa de ambos os cônjuges ou companheiros.
A propósito, partindo de uma interpretação sistemática do nosso Código Civil, só dependerá da aceitação de ambos se houver comunicação patrimonial, haja vista que, mesmo se tratando de um casal ou de conviventes, em que ficou estabelecido o regime da comunhão universal, poderá o terceiro doador ou testador gravar a dita doação ou o testamento, com a cláusula de incomunicabilidade, não havendo, nessa situação, a aludida comunicação patrimonial.
Portanto, o Parágrafo único, do art. 1.711, do Código Civil, contempla a hipótese de um ato jurídico (art. 104, CC), cuja eficácia poderá ficar subordinada a determinada modalidade.
Vejamos a lição do grande mestre SAN TIAGO DANTAS[7]:
“Esses fatos, estas circunstâncias, às quais podem ficar subordinada a eficácia de um ato jurídico, chamam-se modalidades dos atos jurídicos. São as autolimitações da vontade.Há três espécies de modalidades.1º - as condições;2º - os termos;3º - os modos, também chamados encargos.A condição é um evento qualquer, futuro e incerto, do qual se faz depender a eficácia de um ato jurídico. O termo é um evento futuro, porém certo, do qual fica dependendo essa eficácia. E o modo, finalmente, é apenas um ônus, um encargo, que a parte beneficiada com o ato deve aceitar para que o benefício possa ter lugar.”
No mesmo sentido, Silvio de Salvo Venosa[8]:
“O Parágrafo único do art. 1.711 permite que o terceiro institua o bem de família, por testamento ou doação, dependendo da eficácia do ato, da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada. Essa aceitação pode ocorrer no mesmo instrumento de doação ou posteriormente, mormente quando se tratar de instituição por testamento. O terceiro não está sujeito ao limite de um terço do patrimônio.”(g.n)
Portanto, entendo não restar a menor dúvida de que a limitação quanto à afetação de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido não se aplica quando for um terceiro que institui o bem de família, por meio de doação ou de testamento.
Resta claro, nos termos do Parágrafo único, do art. 1.711, do atual Código, que a eficácia do ato dependerá, única e exclusivamente, da aceitação de um ou de ambos os cônjuges ou os companheiros − dependendo se houver ou não comunicação patrimonial −, para que o ato se aperfeiçoe.
Obviamente, quando o ato praticado for uma doação por terceiro, deverá ser observado o que dispõe o art. 548, em relação ao doador, e, quando se tratar de um testamento, deve-se verificar o que determina o art. 1.857, em relação ao testador. Ambos os artigos citados são do Código Civil.
DA DESNECESSIDADE DA PUBLICAÇÃO DOS EDITAIS
Saber se há ou não necessidade da publicação dos editais é uma questão tormentosa, atualmente, no mundo jurídico. As opiniões se dividem e há nomes ilustres sustentando ambas as posições.
Álvaro Villaça Azevedo, Marcione Pereira dos Santos, Sylvio Capanema de Souza, entre outros importantíssimos nomes, entendem que persiste a necessidade da publicação dos editais.
Entre os que se posicionam de forma contrária, encontramos Walter Ceneviva, em sua obra Lei de Registros Públicos Comentada, Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, no Novo Código Civil Comentado, obra coordenada por Ricardo Fiuza, e Milton Paulo de Carvalho Filho, na obra Código Civil Comentado, coordenada pelo Ministro Cezar Peluso.
Filio-me à corrente que entende pela desnecessidade da publicação dos editais, pelos motivos adiante expostos.
Aqueles que advogam a tese da necessidade se baseiam em duas premissas:
a) a lei quis conferir ampla publicidade ao bem de família, para evitar que credores fossem prejudicados pela instituição;
Como já explanei acima, nenhum credor será prejudicado, pois se a afetação foi efetivada em fraude à execução, a impenhorabilidade do bem de família ser-lhe-á inoponível àquele credor; se for constatada a fraude contra credores, o prejudicado terá 4 (quatro) anos para propor ação anulatória; e se a escritura contiver declaração falsa, o credor terá 10 (dez) anos para propor ação de nulidade.
Indubitavelmente, a publicidade do ato se dá com o registro imobiliário!
Lembrando, também, que nesse ínterim o bem não poderá ser alienado a terceiros, sem a prévia autorização judicial.
Qual será o prejuízo do credor?
Agora, pergunto-lhes, quando lavramos uma escritura de compra e venda, em que o vendedor apresenta nas certidões acostadas processo de execução contra o seu nome, publicamos no jornal a síntese dessa escritura? Existe tanta preocupação com esse credor? Ou caberá ao credor ser diligente e, rapidamente, proceder ao registro da penhora, conforme determina o §4º, do art. 659, do CPC, pois, se assim não o fizer, quem adquirir aquele bem, será considerado comprador de boa-fé, vide Súmula 375, do STJ.
Então, a primeira premissa está, a meu ver, descartada, isso sem adentrarmos na discussão de qual seria o direito preponderante, i.e., o direito do credor ou o direito à moradia.
b) a Lei nº 6.015/73, LRP, trata-se de lei especial, e como o Código Civil de 2002, que é uma lei geral, não cuidou do tema, continuará vigendo a lei especial.
É bem verdade que, quanto à matéria processual, em relação ao instituto do bem de família criou-se um vazio, conforme podemos ver adiante:
Segundo o Des. Sylvio Capanema de Souza[9], “o Prof. ALFREDO BUZAID, que fez o projeto do Código de Processo, disse textualmente na exposição de motivos que não reproduziria os artigos sobre o procedimento do bem de família, por entender – e disse claramente – que era um instituto de direito material e que, portanto, isso tudo deveria ser regulado no Código Civil. Pois, por incrível que pareça, quando se fez o Código Civil, entendeu-se que o procedimento deveria ser regulado no Código de Processo. Resultado: ficou no limbo. Foi uma espécie de conflito de competência, porque nem o Código de Processo nem o Código Civil assumiram a paternidade do procedimento.”
Dessa forma, continuou a Lei de Registros Públicos a regulamentar a matéria, no que tange ao procedimento. E, nos seus arts. 167, I, "1", 260 a 265, dispôs sobre a lavratura da escritura pública de bem de família, a publicação dos editais na imprensa local, para ciência de terceiros, entre outras matérias.
Todavia, entendo que, no que tange à necessidade da publicação dos editais, o atual Código Civil não foi negligente, haja vista que no seu art. 1.714 foi enfático ao determinar que o bem de família se constitui pelo registro de seu título no Registro de Imóveis, e.g., o ato alcança a eficácia com o registro, não se referindo, propositalmente, à publicação dos editais, por entender pela sua absoluta excrescência.
Vejamos, então, de que forma o Código Civil de 1916 tratava a matéria, no seu art. 73, in verbis:
“Art. 73. A instituição deverá constar de escritura pública transcrita no registro de imóveis e publicada na imprensa local e, na falta desta, na da capital do estado.”
No Código passado exigia-se a publicação dos editais. No atual, não!
Outro ponto que merece relevo é que temos, culturalmente, o hábito de sermos prolixos; quando lavramos uma procuração para alienar determinado bem imóvel, deixamos expresso no instrumento que o mandatário poderá vender, dar quitação, transmitir domínio, responder pela evicção, e por aí afora.
A propósito, se não colocarmos todos esses poderes, provavelmente o Serviço Notarial em que se realizará a pretendida escritura não o aceitará, por entender que os poderes são insuficientes.
Não bastaria dizermos que o mandatário X tem poderes para a venda, os outros poderes não seriam corolários do primeiro, que é a venda?
Mutatis mutandis, acredito que ocorra o mesmo na leitura do art. 1.714, se determino que a instituição do bem de família alcançará a eficácia com o registro, despiciendo dizer que não há necessidade da publicação dos editais, está implícito.
Este também é o entendimento de ALEXANDRE GUEDES ALCOFORADO ASSUNÇÃO[10], ao afirmar que:
“A necessidade do registro do instrumento que institui o bem de família tem o objetivo de dar publicidade ao ato, evitando que terceiros possam ser prejudicados em seu crédito. Retirou o novo Código Civil a disposição que ainda determinava a publicação na imprensa local, por ser de evidente exagero.”
Idêntico é o entendimento exposto pelo doutrinador MILTON PAULO DE CARVALHO FILHO[11], que se segue adiante:
“Nos termos da LRP, o registro perante o cartório de Registro de Imóveis da escritura instituidora de bem de família é formalidade essencial do ato, que dá a ele a mais ampla publicidade, a fim de evitar prejuízos a terceiros, que sejam credores do instituidor. Os arts. 167, I, 260 e segs. da LRP tratam do registro do bem de família, tendo sido revogada parcialmente a disposição contida no art. 262 que impunha ao oficial a publicação de edital na imprensa da instituição do bem de família, por não mais o exigir o presente artigo.” (g.n)
Entendo ser desnecessária a publicação dos editais por duas razões: a primeira é com fundamento no art. 1.714, que condiciona a eficácia do ato de instituição do bem de família ao registro imobiliário e a segunda é que a publicação dos editais representa um alto custo financeiro ao seu instituidor, que deverá ser somado ao valor dos emolumentos, notarial e registral, cerceando a utilização do instituto e se afastando, frontalmente, do espírito do legislador civil, que foi de conferir efetividade ao instituto.
DA EXTINÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA
No que concerne à extinção do bem de família, o atual Código Civil estendeu a afetação protetora, quando houver na família filho sujeito à curatela; nesse caso, o bem permanecerá afetado a aludida instituição protetora, mas sempre condicionada a sua extinção ao requerimento judicial, por força do disposto no art. 1.722.
Mencione-se, por oportuno, que o requerimento judicial para a desconstituição do bem de família será em todas as situações imprescindível, conquanto pudesse parecer num primeiro momento, pela leitura do art. 1.719, que não haveria necessidade da outorga judicial, quando se pretendesse alienar um bem imóvel afetado pelo instituto do bem de família, bastando a concordância de todos os interessados, após a oitiva do Ministério Público.
“Art. 1.717 – O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem de família, não podem ter destino diverso do art. 1.712 ou serem alienados, sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.” (g.n)
Entretanto, não é essa a melhor exegese, conforme veremos adiante.
Analisando o art. 1.719 do atual Código Civil, podemos verificar que, somente com a autorização judicial, será possível a extinção ou a sub-rogação do bem de família. E a pretendida autorização dar-se-á com o adimplemento de três requisitos: a) comprovação da impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído; b) requerimento dos interessados; e c) oitiva do Ministério Público e do instituidor.
O Projeto de Lei nº 6.960, de 2002, do deputado Ricardo Fiuza, propõe a seguinte redação:
“Art. 1.719 – Comprovada a manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo, autorizar a alienação ou a sub-rogação dos bens que o constituem em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público.” (g.n)
Retornando, agora, ao art. 1.722, vimos que o bem de família extinguirse-á com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos à curatela.
É importante salientar que, se um dos cônjuges falece ou na hipótese de haver filho sujeito à curatela, não será aberto inventário daquele bem, enquanto viver o filho curatelado, é o que determina o art. 20, do Decreto-Lei nº 3.200/41:
“Por morte do instituidor, ou de seu cônjuge, o prédio instituído em bem de família não entrará em inventário nem será partilhado, enquanto continuar a residir nele o cônjuge sobrevivente ou o filho menor de idade. Num e noutro caso, não sofrerá modificação a transcrição.” (g.n)
Depois do advento da Lei nº 11.441/07, que possibilitou o inventário e divórcio extrajudiciais, essa matéria passou a ser de suma importância para Notários e Registradores. Portanto, é de grande relevo que saibamos que, enquanto o bem estiver afetado, não será aberto o inventário.
Logo, se o inventário não poderá ser aberto enquanto o bem estiver afetado, entendo não ser cabível o pagamento antecipado, até mesmo porque não haverá partilha. Portanto, trata-se de hipótese de não incidência do imposto causa mortis.
Enfim, como disse no preâmbulo desse estudo, este se limitou à abordagem do instituto do bem de família contratual, no âmbito do direito notarial e registral, objetivando, principalmente, o debate das questões abordadas sobre esse instituto, a meu ver, injustamente, tão esquecido por nós.
Notas
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3 ed. Editora Lumen Juris.
[2] Oliveira, J M Leoni Lopes De. Teoria Geral do Direito Civil, volume 2. Pag. 460. Editora Lumen Juris.
[3] AZEVEDO, Alvares Villaça, Bem de Família - com Comentários à Lei
[4] .009/90. Pag. 101. Editora Atlas.
[5] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3 ed. Pag. 853. Editora Lumen Juris.
[6] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 7 ed. Editora Jurídico Atlas.
[7] DANTAS San Tiago. Programa de Direito Civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942 – 1945). Parte Geral. Editora Rio.
[8] VENOSA, Silvio de Savo. Direito Civil. Direito de Família. 7 ed. Editora Jurídico Atlas.
[9] SOUZA, Sylvio Capanema de. O Bem de Família no Novo Código Civil. Coletânea de Textos CEPAD.
[10] ASSUNÇÃO, Alexandre Guedes Alcoforado e outros. Coordenador Ricardo Fiuza. Novo Código Civil Comentado. 3 ed. Editora Saraiva.
[11] GODOY, Claudio Luiz Bueno de e outros. Coordenador Ministro Cezar Peluso. Código Civil Comentado. 8 ed. Editora Manole. 2014.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/32668/o-bem-de-familia-contratual#ixzz3KMh28ZAm
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