terça-feira, 18 de novembro de 2014

A cruzada antipedofilia e a criminalização das fantasias sexuais

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La cruzada anti-pedofilia y la criminalización de las fantasías sexuales

The anti-pedophilia crusade and the criminalization of sexual fantasies


Laura Lowenkron
Doutora em Antropologia, Pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero, PAGU-Unicamp / Bolsista Fapesp, Rio de Janeiro, Brasil,lauralowenkron@uol.com.br



RESUMO
Partindo do pressuposto de que as categorias classificatórias utilizadas na construção de "problemas sociais" influenciam nas formas de compreensão e gestão dos mesmos, o artigo analisa como o enfrentamento à violência sexual contra crianças a partir da noção de "pedofilia" e com o enfoque na pornografia infantil na internet produz um borramento das fronteiras entre atos e fantasias sexuais, produzindo um deslocamento da atenção política das desigualdades de poder para a ameaça das perversões. O material de análise é baseado em discussões legislativas realizadas no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pedofilia, do Senado Federal brasileiro, e em um dos inquéritos consultados durante pesquisa etnográfica na Polícia Federal. Por fim, são discutidos alguns dos efeitos da "cruzada antipedofilia".
Palavras-chave: pedofilia; pornografia infantil; fantasias sexuais; crime

RESUMEN
Con el presupuesto de que las categorías clasificatorias utilizadas en la construcción de "problemas sociales" influyen sobre las formas de comprenderlos y gestionarlos, este artículo analiza, a partir de la noción de "pedofilia", el combate a la violencia sexual contra niños/as, poniendo el foco en la pornografía infantil en internet. La hipótesis es que se produciría un borramiento de fronteras entre actos y fantasías sexuales, produciendo un corrimiento de la atención política, de las desigualdades de poder a la amenaza de las perversiones sexuales. El material empírico está basado en discusiones legislativas llevadas a cabo en el ámbito de la Comisión Parlamentaria Investigadora de la Pedofilia, en el Senado Federal brasileño, y en uno de los sumarios policiales consultados durante la pesquisa etnográfica en la Policía Federal. Se discuten, finalmente, algunos de los efectos de la "cruzada anti-pedofilia".
Palabras clave: pedofilia; pornografía infantil; fantasías sexuales; delito

ABSTRACT
Assuming that the categories used to define "social problems" affect the ways those are understood and administered, this paper analyzes how the combat against sexual violence against children has mobilized the notion of "pedophilia," with focus on child pornography on the internet. The hypothesis is that this "anti-pedophilia crusade" blurs the boundaries between sexual acts and fantasies, producing a political focus shift from the inequality of power to the dangers related to sexual perversion. The empirical sources of this project are the legislative debates within the Parliamentary Inquiry Committee on Pedophilia, in the Brazilian Federal Senate; and one of the police inquiries accessed during ethnographic fieldwork at the Federal Police Department. Finally, some effects of the "anti-pedophilia crusade" are discussed.
Keywords: pedophilia; child pornography; sexual fantasies; crime



Na última década, a categoria "pedofilia" passou a ser amplamente utilizada nos discursos públicos para se referir a um conjunto de condutas criminosas relacionadas a práticas sexuais envolvendo menores de idade, em especial, aos crimes vinculados à disseminação de "pornografia infantil" via internet. É importante deixar claro, contudo, que não existe em qualquer diploma legal brasileiro o crime de "pedofilia" propriamente dito. O termo refere-se originalmente a uma categoria diagnóstica da psiquiatria associada à presença de desejos e fantasias sexuais envolvendo crianças pré-púberes que podem ou não se atualizar em comportamentos sexuais definidos como criminosos (APA, 2000).
Segundo Tatiana Landini (2006), o tema da "pedofilia" aparece na imprensa brasileira a partir da segunda metade da década de 1990 como um problema diretamente relacionado à "pornografia infantil". Esse embaralhamento de termos e conceitos pode ser identificado também em matérias jornalísticas e outros discursos públicos no contexto brasileiro contemporâneo, principalmente ao ser referir ao fenômeno da "pornografia infantil na internet" (Lowenkron, 2012). Entretanto, cumpre salientar que a "pedofilia" é apenas uma entre outras possibilidades de denominar e compreender o fenômeno das "violências sexuais contra crianças e adolescentes" (Lowenkron, 2010). Partindo do pressuposto de que as categorias classificatórias utilizadas na construção de "problemas sociais" influenciam nas formas de compreensão e gestão dos mesmos,2neste artigo pretendo discutir como a abordagem do problema da "violência sexual contra crianças" a partir da noção de "pedofilia" e com o enfoque na "pornografia infantil na internet" produz um embaralhamento e um deslizamento da atenção política e criminal das práticas para as fantasias sexuais.
Para isso, inicialmente apresento as discussões legislativas no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pedofilia, realizada no Senado Federal brasileiro entre 2008 e 2010. Disponível no relatório final da CPI (Senado Federal, 2010), esse debate, envolvendo senadores e especialistas3 que prestaram assessoria técnica à comissão, permite entender as conexões estabelecidas entre "pedofilia", "pornografia infantil" e "abuso senxual infantil". Especial atenção será conferida aos argumentos que levaram à criminalização da "posse" da "pornografia infantil" e da "pornografia infantil simulada", o que pode ser interpretado como uma tentativa de controlar os perigos associados a determinadas fantasias e desejos sexuais.
Em seguida, apresento um "caso" baseado em um dos inquéritos policiais consultados4 durante pesquisa etnográfica realizada ao longo dos anos de 2009 e 2010 junto a um núcleo da Polícia Federal no Rio de Janeiro especializado no combate à "pornografia infantil" na internet. Selecionei este caso específico para apresentar por entender que ele revela de maneira particularmente densa como o combate criminal à "pornografia infantil" está associado a uma tentativa de controlar os perigos de determinadas fantasias e desejos sexuais. Por fim, discuto alguns dos efeitos da cruzada antipedofilia centrada no combate à "pornografia infantil". Desde já, vale notar que, na maioria dos casos, as investigações policiais contra "pornografia infantil na internet" atingem principalmente os consumidores desse material e não costumam levar à identificação dos abusadores e/ou das crianças sexualmente abusadas retratadas nas cenas.

Entre a fantasia e a realidade (PLS nº 250 de 2008)
(Fala de um delegado da Polícia Federal, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos, na 3ª reunião da CPI da Pedofilia, 27.03.2008)
Às vezes, quando a gente fala pedofilia na internet, a gente imagina que é uma coisa totalmente virtual, não físico, fora da nossa realidade. Mas as análises de alguns dos computadores já nos permitiu concluir que [...] o pedófilo, a pessoa que disponibiliza essa imagem, que tem esse desvio moral, ele se aproxima de criança e adolescente e a possibilidade de ele causar algum dano físico a uma criança e adolescente é bastante real. Por isso que a gente tem que intensificar cada vez mais o combate à pedofilia, [...] porque esse desvio moral, num momento ou outro, mais cedo ou mais tarde, vai se materializar numa criança violentada, num adolescente violentado que vai marcar para o resto da vida esta pessoa [...]. Então, nós temos que combater. Pensam assim: pô, está só mandando uma foto pela internet. Não. Não está só mandando uma foto. Ele está incentivando um desvio moral e está incentivando também que alguém violente essa criança e esse adolescente e produza essa foto (grifos meus).
Desde o início da CPI, o senador Magno Malta, presidente desta comissão, apresentou como um de seus principais objetivos a criminalização da "pedofilia". Apesar de esse projeto do presidente ter sido vetado pelos assessores da CPI, a meu ver, esse desejo de criminalizar fantasias e desejos sexuais, de certa maneira, ganhou expressão jurídica no Projeto de Lei do Senado nº 250 de 2008, que se transformou na Lei nº 11.829 de 2008. Este projeto de lei foi aprovado em tempo recorde, alterando significativamente a parte do Estatuto da Criança e do Adolescente que define os crimes relacionados à pornografia infantil. Além de aumentar as penas dos delitos de produção, venda e divulgação de imagens pornográficas envolvendo crianças e adolescentes, a Lei 11.829 criminalizou a "posse" e o "armazenamento" desse material, a "pornografia infantil simulada" através da foto ou da videomontagem e o aliciamento e o assédio online de crianças (menores de 12 anos). A fim de investigar como as diversas condutas relacionadas à "pornografia infantil" (produzir, vender, distribuir, divulgar, comprar, possuir, armazenar etc.) podem ser relacionadas à "pedofilia" e ao fenômeno da "violência sexual contra crianças", analiso a seguir os argumentos que serviram de base para a aprovação deste projeto de lei.
Ao longo da análise, procuro responder às seguintes questões: em nome da reparação de que danos ou da prevenção de que perigos os sujeitos que colecionam e divulgam essas imagens deveriam ser punidos? O que se pretende controlar com a criminalização da "posse" desse material pornográfico? A imaginação do "pedófilo" ou atos de "violência sexual" contra crianças? Ou, em outros termos, como os discursos e as práticas de regulação do fenômeno da "pornografia infantil na internet" borram a fronteira entre fantasias e práticas sexuais?
Vale notar que o temor de que representações visuais pornográficas possam despertar fantasias sexuais perigosas e incitar práticas de "violência sexual" não é novo. Essa retórica foi amplamente acionada, no contexto político norte-americano dos anos 1980, pelas chamadas "feministas radicais", que condenavam a pornografia como uma forma de agressão, degradação e objetificação das mulheres. Elas procuravam diferenciar seus argumentos do discurso político e jurídico conservador mais clássico, que censurava esse tipo de material por seu caráter "obsceno", ou seja, por considerá-lo um discurso "imoral" sobre o sexo que não poderia ser mostrado publicamente (Mackinnon, 2000).
Ao mesmo tempo é possível identificar convergências entre os argumentos das feministas antipornografia apresentados em tom "progressista" e as posições consideradas "tradicionais" ou "conservadoras" que caracterizavam os discursos antiobscenidade. Como sugere Judith Butler (2000), a visão destes dois grupos é apoiada em uma teoria comum da fantasia e do fantasmático orientada por um "realismo representacional", que pressupõe uma relação causal e mimética entre o real, a fantasia e a representação. Pretendo mostrar como os debates políticos e jurídicos contemporâneos contra a "pornografia infantil" também partilham desse "realismo representacional" que leva a crer na existência de um continuum e de uma relação causal entre fantasia, representação e ação.
Como se pôde verificar na fala do policial citada anteriormente, por um lado, a necessidade e a legitimidade do controle da circulação dessas imagens não são justificadas por elas veicularem uma representação considerada moralmente inapropriada da infância e da sexualidade, mas por estarem perigosamente associadas a atos de "violência sexual contra crianças". Esta posição vai ao encontro dos argumentos da vertente feminista antipornografia que foram apropriados de maneira adaptada por defensores dos direitos de crianças e adolescentes, os quais sugerem, dentre outros riscos, que essas representações poderiam reforçar a concepção segunda a qual a criança pode ser vista enquanto "objeto" ou "mercadoria sexual", fomentando a demanda por "exploração sexual infanto-juvenil" (ECPAT, 2005).5
Por outro lado, os atos de "violência sexual contra crianças" representados nessas imagens são interpretados como expressão de um "desvio moral" que seria alimentado pelo consumo desse material pornográfico, aproximando-se do discurso conservador mais clássico, segundo o qual o problema dessas imagens não consistiria em reforçar desigualdades de gênero ou geracionais, mas em publicizar e incentivar apetites sexuais "desviantes", "imorais" e "perigosos". Vejamos como estes dois tipos de argumentação encontraram na CPI da Pedofilia um espaço privilegiado para uma aliança estratégica, o que resultou na aprovação praticamente imediata e unânime da lei que alterou e ampliou a regulação jurídico-penal da "pornografia infantil" no Brasil.
O objetivo do PLS nº 250 de 2008 era atingir todas as etapas do chamado "ciclo da pornografia infantil", que começa na produção, passa pela comercialização e a divulgação e se encerra no consumo dessas imagens, e que ainda não fora criminalizado até então. Segundo o relatório da CPI, o primeiro e mais violento estágio desse ciclo seria quando crianças e adolescentes "de carne e osso" participam de alguma cena de sexo explícito ou pornográfica. Por isso, a pena prevista no projeto de lei para o crime de "produção de pornografia infantil" (art. 240 do ECA) é consideravelmente mais alta (reclusão de 4 a 8 anos e multa).
A segunda etapa da cadeia é a comercialização do material produzido (art. 241 do ECA), que é a conduta que torna a "pornografia infantil" um negócio lucrativo e retroalimenta a produção de fotos e vídeos envolvendo crianças e adolescentes. Esta é a justificativa para punir a comercialização da mesma forma e com a mesma intensidade com que se condena a produção do material. O terceiro estágio é a simples divulgação, sem a finalidade de lucro (art. 241-A do ECA). A pena é um pouco menor (de 3 a 6 anos de reclusão e multa). A aquisição, a posse e o armazenamento dessas imagens (art. 241-B) passaram a ser criminalizados (pena de 1 a 4 anos de reclusão e multa), fechando-se assim o ciclo que inclui todas as etapas do fenômeno da "pornografia infantil".
Além da tipificação da "posse" desse material, outra modificação importante introduzida pelo PLS 250 de 2008 foi que não só as cenas reais, mas também as fictícias passaram a ser tratadas como crime, a partir da tipificação da adulteração ou montagem de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de "representação visual" que simule a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica (art. 241-C). A pena é de reclusão de 1 a 3 anos e multa, e atinge ainda aqueles que vendem, divulgam ou armazenam essas imagens.
Foi criminalizado também o assédio ou o aliciamento de crianças (isto é, menores de 12 anos) por meio da internet ou qualquer meio de comunicação, com o fim de com ela praticar ato libidinoso ou de induzi-la a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita (art. 241-D). A pena é de reclusão de 1 a 3 anos e multa. O crime inclui ainda a facilitação ou a indução do acesso da criança a material pornográfico. Por fim, foi estabelecida uma definição jurídica de "pornografia infantil" (art. 241-E do ECA):
Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão "cena de sexo explícito ou pornográfica" compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.
Para compreender a penalização das condutas associadas à disseminação e ao consumo de "pornografia infantil", é importante ter em mente os diferentes usos associados a essas imagens. Segundo os pesquisadores que se dedicaram ao estudo de "comunidades" ou "redes" de "pedófilos", os usuários de "pornografia infantil" se relacionam com esse material de diferentes maneiras. Eles não apenas veem imagens, mas também as colecionam, catalogam, classificam (Tate, 1990:112). Além disso, interagem sexualmente com elas por meio da masturbação ou da fantasia (Taylor & Quayle, 2003).
Como apontam diferentes estudiosos do tema (Tate, 1990; Hacking, 1992; Jenkins, 2001; Taylor & Quayle, 2003), longe de ser simplesmente uma atividade sexual solitária, a "pornografia infantil" pode servir também como um instrumento de troca e socialização entre pessoas que sentem atração sexual por crianças ou por material pornográfico "extremo", bem como de validação e normalização de suas formas de excitação e satisfação erótica. Pode ser utilizada também na intimidação das vítimas para preservação do silêncio e continuidade dos contatos "abusivos", ou como ferramenta pedagógica para dessensibilizar e desinibir crianças durante o processo de aliciamento, de maneira a encorajá-las a normalizar e a reproduzir as atividades sexuais representadas. Segundo os especialistas, o processo de dessensibilização pode afetar também o observador, que passa a buscar material novo ou mais extremo para manter a excitação (Taylor & Quayle, 2003:25-26).
De volta aos debates sobre o tema na CPI da Pedofilia, de acordo com o texto do Relatório Final, "o mais grave é que, de acordo com inúmeras pesquisas, a divulgação da pornografia infantil pela Internet contribui para o aumento de crimes sexuais contra menores. Cuida-se, pois, de excelente veículo de propagação desse mal" (Senado Federal, 2010:304). Nos termos do delegado Felipe Seixas, da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal:
Existe uma pesquisa que diz que a grande maioria dos pedófilos de internet são potenciais pedófilos reais. Isso não é algo que é intuitivo, é uma pesquisa. É algo que foi feito com padrões científicos. Isso reforça o combate à pedofilia não só porque existe uma criança sendo abusada e a divulgação acaba que o dano se estende, mas também porque alimenta novos crimes a serem cometidos (3ª reunião da CPI da Pedofilia, 27.03.2008. Grifos meus).
Como se pode perceber pelas justificativas enunciadas pelo delegado, o argumento de que existe uma relação de contiguidade entre a disseminação de imagens de "pornografia infantil", o desvio psicológico "pedofilia" e os atos de "abuso sexual de criança" é apresentado sob o estatuto de "verdade científica",6 o que parece suficiente para lhe garantir imunidade contra questionamentos sem muito esforço retórico imediato. De acordo com esse esquema de encadeamento, nota-se que a "pedofilia" é compreendida como o elemento principal de ligação entre a "pornografia infantil" e o "abuso sexual de crianças".
É importante salientar que cronologicamente o "abuso sexual" está situado tanto antes quanto depois da "pornografia infantil", ou seja, as imagens são condenadas simultaneamente como produto e causa da violência. Produto porque, na fabricação da imagem, uma criança de "carne e osso" é "abusada", e o próprio ato de fotografar ou filmar uma interação sexual ou cena pornográfica envolvendo menores é considerado "abusivo". Mas a questão principal aqui é saber como a divulgação e o armazenamento desse material podem ser articulados com o "abuso sexual de crianças".
Primeiramente, é possível identificar a ideia, sugerida na fala do delegado Felipe, de que o registro amplia o dano causado à vítima pelo fato de congelar e preservar a cena e a memória do "abuso", o que torna a divulgação da foto ou do vídeo uma nova "violação da privacidade" da criança e faz de cada exposição/ visualização uma "revitimização". Esse entendimento vai ao encontro da afirmação dos psicólogos clínicos e forenses Taylor e Qualye, segundo a qual "a cada vez que uma imagem é acessada para fins sexuais, ela vitimiza o indivíduo envolvido por meio da fantasia" (Taylor & Quayle, 2003:31, grifo meu). O argumento dos especialistas sugere, portanto, que parte importante do horror atribuído à "pornografia infantil" e, principalmente, ao seu consumo decorre do fato de que o olhar do "pedófilo" é equiparado a um ato de "violência sexual".
Ao longo da CPI da Pedofilia foi possível reconhecer ainda dois modelos de compreensão sobre a conexão entre "pornografia infantil" e "abuso sexual de criança" que não se baseiam na lógica do dano, mas do perigo: um econômico ("lei da oferta e da demanda") e outro psicológico ("alimenta a tara"). Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet, apoiou-se no primeiro modelo de explicação, sugerindo compreender a "pornografia infantil" como parte do fenômeno da "exploração sexual comercial de crianças e adolescentes". Nesse sentido, ele situa a posse desse material no polo da demanda do negócio que, por sua vez, tem efeito direto na oferta e no aumento da produção de imagens que implicam o "abuso" e a "exploração sexual de crianças":
como nós sabemos, pela lei da oferta e da demanda, sempre que existe demanda vai existir oferta, e a oferta, nesse caso, implica no abuso e na exploração sexual de mais e mais crianças para que mais e mais fotos e vídeos sejam produzidos, para que sejam comercializados em aproximadamente 3.200 sites comerciais que vendem pornografia infantil por meio da Internet (grifos meus).
Já entre os senadores da CPI da Pedofilia, a explicação baseada no modelo psicológico prevaleceu. Como é possível verificar no diálogo travado durante a 3ª reunião da CPI da Pedofilia, o ato de "divulgar" ou de "ver" pornografia é considerado perigoso porque "alimenta a tara do pedófilo", intensificando com isso o risco de passagem da fantasia ao ato. Este era o perigo que justificava para os parlamentares a criminalização da "posse" de material pornográfico infantil:
SENADOR ROMEU TUMA: o sujeito que tem em casa, guardado, é porque ele tem a tendência.
SR. PRESIDENTE SENADOR MAGNO MALTA: E ele pode ser comprovadamente um pedófilo, mas se você não pegar ele em flagrante, ele não pode ser preso.
SENADOR ROMEU TUMA (PTB-SP): Ele está, sem dúvida nenhuma, se preparando, a hora em que tiver uma chance, ele vai fazer a prática criminal.
DEMÓSTENES TORRES: se alguém internacionalmente acaba alimentando a tara do pedófilo aqui, a única maneira de combater isso é justamente criar o delito da posse ou arquivamento de material pornográfico, porque o simples fato de a pessoa alimentar a sua tara com isso já passa a constituir um delito (grifos meus).
Essa mesma teoria serve de justificativa para a criminalização da "simulação" da "pornografia infantil", ou seja, de imagens que, apesar de representarem uma cena de sexo explícito ou pornográfica com crianças ou adolescentes, não envolveram a participação de uma pessoa menor de 18 anos real, "de carne e osso", na sua produção. Para os policiais e parlamentares integrantes da CPI da Pedofilia, esse material deveria ser criminalizado porque "alimenta a tara do pedófilo utilizando-se de uma coisa semelhante". Ao defender a criminalização da "pornografia infantil simulada", o delegado Felipe, da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal, enfatiza a distinção entre as noções jurídicas de "crime de dano" e "crime de perigo":
Se a gente considerar que a pedofilia na internet é um crime de dano, a gente teria que exigir que, de fato, antes da divulgação houvesse uma produção e uma violação de uma criança real. Agora, se a gente considera que o crime é de perigo, [outras] imagens também vão entrar (3ª reunião da CPI da Pedofilia, 27.03.2008).
É importante destacar que a ideia de "pornografia infantil simulada" é um conceito jurídico amplo que não se apresenta da mesma maneira nos códigos legais de diferentes países. No Brasil, o art. 241-C do ECA tipificou apenas a adulteração ou a montagem de fotos e vídeos, não incluindo outras formas de simulação que configuram crimes em algumas legislações estrangeiras e que estão elencadas na Convenção de Cibercrimes do Conselho de Europa – como desenhos, imagens realísticas produzidas digitalmente por técnicas de computação gráfica e o uso de jovens maiores de idade que aparentam e são caracterizados como menores.
Outro motivo pelo qual os integrantes da CPI da Pedofilia defendiam a tipificação da "pornografia infantil simulada" está baseado na dificuldade de localizar as vítimas dos crimes de "pornografia infantil" e verificar a sua idade. Como argumentou Thiago Tavares, da ONG SaferNet, "existem casos, principalmente os casos situados na zona cinzenta entre os 14 e 18 anos, que ficam irremediavelmente impunes porque a única forma de caracterizar o crime seria localizar a vítima e comprovar a sua menoridade".
Ele explica que uma fotografia ou um vídeo de uma criança de 10 anos é inequívoco, ou seja, "você olha a foto e, claramente, você percebe que se trata de uma criança". O mesmo não ocorre quando a imagem envolve meninas e meninos situados nessa zona cinzenta da adolescência. "Como o processo de identificação dessas vítimas ainda é muito incipiente, o que acontece é que esses inquéritos são arquivados", lamenta o presidente da ONG. Se a lei criminalizasse as imagens que parecem "pornografia infantil", não seria mais necessário comprovar ou ter certeza sobre a menoridade dos atores que participam da cena para configurar amaterialidade do delito. Vale notar que a proposta original apresentada pela SaferNet à CPI da Pedofilia era muito mais ampla do que as condutas e os conteúdos tipificados na versão final do PLS 250/2008. A ideia era tipificar também desenhos, pseudofotografias, imagens pornográficas com a participação de indivíduos fingindo ser menores, e até mesmo sons e textos envolvendo crianças e adolescentes em atividades sexuais ou que fazem apologia ao crime.
Em uma conversa durante minha pesquisa de campo na CPI da Pedofilia, no Senado Federal, Thiago Tavares, presidente da SaferNet, falou sobre o que o levou a abrir mão dessa definição mais abrangente de "pornografia infantil", que incluía representações envolvendo "crianças fictícias", na versão final do projeto de lei. Ele disse que o Grupo de Trabalho da CPI da Pedofilia considerou que essa proposta de regulação de representações ficcionais poderia gerar uma tensão com o art. 5º, inciso IX da CF (1988) – que garante a liberdade de expressão intelectual, artística, científica, de comunicação – e atrapalhar o processo de tramitação do projeto, que foi rapidamente aprovado no Congresso Nacional, como já foi dito. Já a tipificação de foto ou videomontagem foi incorporada ao projeto por ser possível justificá-la com base na proteção do "bem jurídico", uma vez que a sua produção envolve a apropriação indébita da imagem de uma criança ou um adolescente real, "de carne e osso", em uma cena fictícia, levando o espectador a imaginar que ela ou ele de fato participou de uma interação sexual ou performance pornográfica, o que atentaria contra a imagem e a honra de um indivíduo real.
Essa decisão do grupo revela como – ainda que nas alterações legislativas realizadas pela CPI da Pedofilia possa ser reconhecido um desejo de controlar a disseminação de representações visuais repudiadas como "obscenas" e apetites sexuais considerados "imorais" e "perigosos" – os atores dessa cruzada precisaram de razões mais substanciais do que censurar uma fantasia inapropriada para garantir que o consumo de "pornografia infantil" pudesse ser legalmente condenado. Era preciso encontrar alguma maneira efetiva de conectar o ato de possuir "pornografia infantil" à "agressão sexual de crianças".
No argumento psicológico ("alimenta a tara"), o culpado e sua vítima estão conectados de maneira mais direta, por meio da noção de periculosidade. Defende-se que a "pornografia infantil" funciona como combustível para "fantasias sexuais" e, com isso, intensifica e/ou normaliza a "tara" do "pedófilo" que a consome para fins de excitação sexual. Portanto, o usuário dessas imagens deve ser punido por ser virtualmente um "abusador sexual de crianças" que mais cedo ou mais tarde vai passar da fantasia à realidade.
Já no modelo argumentativo econômico ("lei da oferta e da demanda"), o acusado e sua vítima estão conectados por longas cadeias de causalidade, uma vez que não se supõe que os atos de agressão sejam necessariamente perpetrados pelo mesmo indivíduo que consome as imagens. A "tara" é convertida antes em uma demanda (voyeurista) por novos registros visuais de "abusos sexuais de crianças", tratados comomercadoria erótica. Desse modo, o polo da demanda é responsabilizado por estar ligado a um processo mais amplo de "abuso" e "exploração sexual comercial de crianças" e, principalmente, por oferecer um mercado consumidor para esse tipo de material, alimentando os anseios de lucro da "máfia" de aliciadores e vendedores de crianças e produtores comerciais e negociantes de "pornografia infantil".
Se, por um lado, estes dois modelos de entendimento podem ser separados para fins analíticos ou como maneira de delimitar fronteiras entre posições políticas, por outro, é possível reconhecer que tanto o argumento que condena o colecionador de "pornografia infantil" porque esta alimenta a sua "tara" quanto aquele que responsabiliza o consumidor dessas imagens por sua "demanda" buscam controlar e punir não apenas condutas– já que "taras" e "demandas" são da ordem do desejo. Na medida em que esses sujeitos são de certa maneiracondenados pelo desejo, nos termos de Laura Moutinho (2004), sugiro que a "pedofilia" constitui justamente o elo que permite compreender como a distribuição e a posse da "pornografia infantil" são articuladas ao fenômeno da "violência sexual contra crianças".
"GOSTOZO PORRAR CRIANÇA"
Denúncia encaminhada pelo Disque Denúncia em abril de 2004.
FATO: Informa que o indivíduo identificado apenas por "Leo" (não soube dizer se este nome é verdadeiro), estudante da Faculdade Gama Filho, cursando o 4º período de economia, no turno da noite, mantém relações sexuais com um filho (não identificado) de 4 anos de idade. Cita que o mesmo possui o email gostozo@hotmail.com, o qual utiliza em salas de bate-papo com a finalidade de conhecer outras pessoas que se relacionam sexualmente com crianças. Cita que na última sexta-feira (05.03.04), às 13h, o mesmo entrou na sala de bate-papo da UOL com o codinome "GOSTOZO PORRAR CRIANÇA",7 dizendo que tinha um filho de 4 anos, o qual é espancado e violentado sexualmente constantemente por ele. Relatando que durante a semana a criança fica na casa da avó (não identificada) e finais de semana com ele, pai do menor de idade, e a mãe da criança (nãoidentificada) reside em outro estado (não mencionado). Informa que durante a conversa na citada sala de bate-papo, "Leo" confessa que bate na criança, xinga e mantém relações sexuais com o mesmo que grita muito e chora, mencionando ainda que um amigo (não identificado), também violenta a criança dizendo que "encaixa a cabecinha e jorra, dentro da criança"; acrescentando que já estuprou 3 crianças (não identificadas) que foram "quebradas" por ele e o amigo, que sentem atração somente por crianças, sem mais, solicita uma investigação, pois trata-se de uma pessoa desequilibrada, que põe em risco a vida de outras crianças.
No verso da denúncia há uma anotação do Ministério Público, determinando a instauração de Inquérito Policial "URGENTE" e solicitando encaminhamento à Delegacia de Proteção a Crianças e Adolescentes para investigação. Ao receber a "notícia crime", a delegada da Polícia Civil do Rio de Janeiro escreve: "FATO GRAVÍSSIMO". A seguir, instaura o procedimento para apuração do antigo delito de "atentado violento ao pudor" (art. 214 do CP), definido como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal". A escolha do enquadramento dos eventos narrados neste único tipo penal revela uma aparente hierarquia de gravidade ou preponderância da violência sexual sobre a física (espancamento), ao menos segundo os critérios de sensibilidade desta policial.
Vale lembrar que o crime de "estupro" e o delito de "atentado violento ao pudor" (atualmente revogado) são de competência da Justiça Estadual e não da Justiça Federal e, por isso, é atribuição da Polícia Civil investigá-los. Ao longo da exposição dos desdobramentos desta investigação ficarão claros os motivos pelos quais neste "caso" houve declínio de competência para a Justiça Federal e a consequente remessa do inquérito à Polícia Federal, onde tive acesso aos autos. No entanto, o aspecto mais interessante a ser observado ao longo da análise deste procedimento é o borramento da fronteira entre fantasias sexuais e atos de violência.
É importante notar, contudo, que a denúncia pública e a intervenção policial neste "caso" não foram movidas pelo desejo de censurar fantasias sexuais inapropriadas, mas pela crença de que a narrativa fosse real e pela urgência de interromper os "abusos", garantindo a imediata proteção da criança através do afastamento e da punição do "agressor". Entretanto, será possível observar que o caráter monstruoso8 das descrições e a vontade de punir não se desfazem automaticamente quando é revelado que tanto os atos de "abuso" físico e sexual quanto a criança eram fictícios.
O primeiro a desestabilizar a fronteira entre fantasia e realidade foi o usuá-rio responsável pela denúncia anônima, pois ele anuncia publicamente como um "fato" aquilo que é dito por seu interlocutor em um diálogo privado na internet, lócus privilegiado de falseamento das identidades e outras fabulações. O mais curioso é que o próprio usuário que denuncia como se fosse realidade aquilo que é relatado pelo outro também descreve durante a interação online condutas violentas que supostamente jamais realizou. Anexada ao breve relatório dos "fatos" do Disque-Denúncia, segue a cópia da denúncia pública feita inicialmente na sala de bate-papo online e da conversa reservada entre o denunciante e o perfil "GOSTOZO PORRAR CRIANÇA".
Atenção pessoal tem um cara aqui na sala com o nick GOSTOZO PORRAR CRIANÇA que tem um bebê de 4 anos e que o mesmo é espancado, leva socos, chutes, tapas e é estuprado diariamente por esse monstro. Ele confessou pra mim que a criança tem verdadeiro pavor dele. Quem tiver como achar esse monstro, por favor, o façam, eu apelo a vcs, pois tenho um bebê de 7 meses e tô chocado com tamanha crueldade. Leiam o papo que tive com ele no uol sexta-feira por volta das 13h. Tudo o que eu disse foi pra ele confessar tudo que faz com a criança. Peço, por favor, que se coloque a polícia nesse caso. Por favor!!! Só penso na minha filha e nas crianças que correm este risco [grifos meus].
LION (reservadamente) fala para GOSTOZO PORRAR CRIANÇAS: como eh isso? Como eh seu nick? como é essa parada?
GOSTOZO: tenho um filho de 4 anos e quebro ele sempre. Curte isso tb? Tem vontade de aleijar uma criança?
LION: aleijar como? GOSTOZO: quebrar ela. LION: quebrar como?
GOSTOZO: Na porrada quase matar.
LION: já fez isso com ele? Tenho sim. adoro maltratar muito. GOSTOZO: já fez com alguém bem novinha, na maldade?
LION: só espancar e estuprar. Fiz com 3 crianças. Desde quando vc faz isso com ele? Vc fica com pena dele?
GOSTOZO: desde bebê e qual a idade delas?
LION: entre 3 e 5. quanto tempo ele tinha na primeira? GOSTOZO: era o que teu?
LION: primos e vizinhos.
GOSTOZO: tenho vontade de matar e vc? LION: tb tenho.
GOSTOZO: matar como? LION: na porrada e vc?
GOSTOZO: tb até com tiro no cu.
LION: e ele morre o q vc vai falar pra sua família?

GOSTOZO: sei lá cara. Vc mataria ela na minha frente? LION: sim mas o que vc faria depois?
LION: não tem pena dele quando ele chora? GOSTOZO: sei la;
LION: não o ama?
GOSTOZO: amo mas sinto tesão.
LION: já meteu ... vc? Ele grita mto?
GOSTOZO PORRAR CRIANÇA sai da sala
Bem, esse foi o papo que tive com ele. Peço encarecidamente que vcs façam alguma coisa.
É interessante notar que, ao exibir publicamente o registro dessa conversa privada, o denunciante precisa afastar o estigma que poderia recair sobre si caso alguém suspeitasse que ele também se excitava sexualmente com esse tipo de conversa. Para isso, foi preciso diferenciar-se do seu interlocutor e assumir a posição de denunciante "indignado", compartilhando com os espectadores seus sentimentos de "choque" e "horror" diante das atrocidades narradas – que são as principais respostas emocionais capazes de garantir a diferenciação em relação ao "monstro" e o reconhecimento enquanto "sujeito moral".
Para isso, foi preciso produzir eficazmente nos destinatários da denúncia a crença de que suas participações no diálogo eram apenas fabulações estratégicas para que o "monstro" saísse da toca, confessando as atrocidades que cometeu. Desse modo, ele pôde estabelecer uma espécie de "pacto ficcional" com o espectador e produzir a aceitação ou, ao menos, a desimportância dos seus próprios relatos de atos de "violência" e "crueldadade". Assim, o denunciante conseguiu garantir que suas declarações não fossem identificadas pelos policiais como "indícios" de monstruosidade e materialidade que justificassem a intervenção estatal, concentrando o sentimento de horror coletivo e a atenção investigativa na figura do seu interlocutor.
Com base nos "indícios" de materialidade apresentados no registro do bate-papo online e diante da "gravidade" dos fatos narrados, a delegada "representa" pela interceptação telefônica, quebra de sigilo do email, solicitação à faculdade dos dados completos de seu possível aluno, além de localização e oitiva de eventuais testemunhas do crime. O Ministério Público Estadual manifesta-se favoravelmente ao pedido policial, afirmando que foram verificados "indícios da prática de terríveis crimes contra criança de apenas 4 anos de idade". "Em face do perigo da veracidade das informações", o juiz decreta as quebras. A escuta telefônica corrobora os "indícios" de materialidade e autoria, levando à formulação de uma nova "Representação" policial pela "prisão temporária" do investigado e pela "busca e apreensão" de computadores, diante da qual o Ministério Público manifesta-se favoravelmente, argumentando que:
Durante todo o período de interceptação telefônica autorizada judicialmente [...] pouco teria sido colhido de material probatório. No entanto, no dia de hoje, houve êxito na escuta de uma ligação [...]. Nessa conversa, o investigado fala com pessoa do estado de São Paulo, que denomina "Juca", que parece ter conhecido na Internet, e trocado o número do celular. O investigado bem como seu interlocutor narram detalhes de seus atos criminosos com seu pequeno filho, que diz chamar "João". A crueldade das frases ditas por ambos é imensa, chegando mesmo a descrever atos de tortura com colheres aquecidas em fogo e colocada nas partes íntimas da criança que, segundo relata o investigado, corre assustada e se esconde quando o mesmo chega e chora muito! Realmente, há mais do que indícios da prática criminosa. A criança corre grave perigo até mesmo de vida e deve haver uma intervenção imediata para cessar tal tortura. Mesmo que ao final se verificasse que o indiciado somente anuncia a prática de coisas que na realidade não faz, mesmo assim já haveria motivos suficientes para verificação posterior de motivos para perda de pátrio poder, visto que a criança está em grave situação de risco, se é que ainda não se concretizou (grifos meus).
A "Promoção Ministerial" revela que a possibilidade de que os terríveis atos narrados pelo investigado sejam ficcionais, apesar de ser uma hipótese remota, não é completamente descartada pelas autoridades. Mesmo assim, segundo o promotor de Justiça, a "crueldade das frases" por si só justificaria algum tipo de sanção civil, como a perda do "pátrio poder". Como se pode verificar, não apenas os atos, mas também os discursos são vistos como "cruéis", sugerindo que o problema não consiste só em fazer tais coisas, mas em dizer que faz. Nesse sentido, discursos são interpretados como se fossem atos de "violência" e como "indícios" demonstruosidade e periculosidade, associados ao risco de passar da fantasia ao ato.
De acordo com esta lógica, qualquer discurso pornográfico que sugerisse a realização de práticas de "violência sexual contra crianças" poderia ser condenado. Mas, como vimos nas discussões sobre o PLS nº 250 de 2008 apresentadas anteriormente, na legislação brasileira foi estabelecida uma definição de "pornografia infantil" que inclui apenas "representações visuais" de cenas que envolvam a participação de crianças reais em interações ou performances sexuais, sejam estas "reais" ou "simuladas". Segundo esta definição legal, relatos escritos de práticas de "abuso infantil", como os narrados pelo investigado, não configuram crime de "pornografia infantil", sendo necessário comprovar a materialidade da criança e dos atos para caracterizar o suposto delito de "atentado violento ao pudor" (que hoje seria classificado como "estupro de vulnerável"). Entretanto, nem mesmo a existência do suposto filho de 4 anos pôde ser confirmada no "caso".
Interrogado pelos policiais civis que cumpriram o "Mandado de prisão temporária" expedido pelo juiz estadual, o investigado nega que tenha praticado sexo envolvendo crianças ou adolescentes, apesar de reconhecer que entrou diversas vezes na sala de bate-papo online do provedor UOL denominada "EM FAMÍLIA", na qual conversou sobre "incestos contra crianças" com várias pessoas não identificadas, que faziam relatos de atos sexuais com crianças que diziam ser seus próprios filhos. Solteiro e com 29 anos, o declarante afirma ainda QUE:
entrou neste tipo de conversa, fantasiando e contando aberrações sexuais contra crianças fictícias, apenas para alimentar as estórias dos supostos pais que relatavam as práticas sexuais com os próprios filhos, QUE a partir deste momento o declarante sentia-se muito excitado, QUE o declarante quer esclarecer também que quando o papo era favorável, ele pedia para o suposto pai ligar para o seu telefone celular, pois neste momento, ouvindo a voz do mesmo, era quando se sentia excitado e neste momento se masturbava. QUE o declarante esclarece que não possui filhos. E nada mais (grifos meus).
Como se pode verificar a partir das declarações do investigado, apesar de esclarecer que as crianças "abusadas" eram "fictícias" e negar que tenha praticado tais atos, o declarante confessa e exibe ostensivamente aos policiais suas fantasias sexuais – que, como vimos, também são objeto de escrutínio, pois supostamente revelam a "verdade" (e, no caso, a monstruosidade) mais profunda do sujeito. As declarações do interrogado sugerem, contudo, que ele acreditava que não poderia ser condenado por suas fantasias, ao menos do ponto de vista criminal. Mas, como o "Mandado de prisão temporária" havia sido previamente expedido, o investigado teve que ser levado pelos policais para a carceragem da Polinter, onde ficou preso por cinco dias.
Seu advogado encaminhou uma petição à Justiça Estadual bucando neutralizar, na medida do possível, os efeitos poluidores das acusações imputadas ao seu cliente, destacando elementos de status social e da sua biografia burocrática-criminal que pudessem ajudá-lo a construir uma melhor reputação para o acusado. Afirmou que ele não estava separado dos demais presos de "alta periculosidade", correndo risco de vida, embora tenha "curso superior", "bons antecedentes criminais" e "residência fixa". Argumentou ainda que, "em se tratando de prática na rede mundial de computadores, o recolhimento do indiciado à prisão é irrelevante para investigação policial". Por fim, pede "revogação da prisão temporária".
Apesar das evidências de que a criança "de carne e osso" não existia, pois não pôde ser identificada durante a operação policial, o pedido foi denegado por unanimidade pela 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), mantendo-se a "prisão temporária". Esta decisão judicial sugere que a proteção da suposta criança, embora seja condição necessária para legitimar a intervenção penal neste "caso", não é o único motivo de condenação moral do investigado diante das autoridades responsáveis por julgá-lo.
Em face da decisão do TJRJ, o advogado impetra "habeas corpus" junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor de seu cliente e pede o arquivamento do inquérito policial. Ele argumenta que "falta justa causa do inquérito que é investigado, em tese, pelo delito de 'atentado violento ao pudor', já que a pessoa de 4 anos não existe e, portanto, inexiste o crime". Afirma também que a investigação já acarretou sérios constrangimentos ao "indiciado", "que não só lhe atingem a saúde, o convívio social com amigos e parentes, como provocaram o desemprego em três cursos", sugerindo que esses prejuízos são "irremediáveis" e ferem a "integridade física e moral" do seu cliente.
Apesar de terem sido afastadas as suspeitas de "atentado violento ao pudor" que haviam justificado a "prisão temporária" do investigado, no "exame pericial" de seu computador foram encontradas imagens pornográficas envolvendo menores. Se a expressão textual e oral de suas fantasias sexuais via internet e por telefone não eram suficientes para configurar a materialidade do crime, os novos "indícios" poderiam incriminá-lo. Ao analisar algumas das imagens impressas no "Laudo pericial", verifica-se que elas retratam rapazes – alguns com aparência de adolescentes em torno de 12 anos – mantendo relações sexuais (em geral, sexo oral) entre si ou com homens mais velhos. Diante dos novos "indícios", a promotoria considerou que os "fatos" poderiam ser enquadrados no tipo penal de divulgação de "pornografia infantil", o que levou ao declínio de competência para a Justiça Federal e à remessa dos autos à Polícia Federal.
Até o final de 2010, quando consultei os autos pela última vez, faltava ainda concluir um novo "exame pericial" que buscava verificar se as imagens haviam sido divulgadas na internet, já que a simples "posse" de "pornografia infantil" ainda não era crime à época dos fatos. Desse modo, não foi possível saber o desfecho deste "caso". Isto significa, entretanto, que depois de mais de seis anos desde a operação policial, o investigado ainda não tinha conseguido livrar-se plenamente das possíveis consequências jurídicas da exposição de suas fantasias sexuais na internet – que foi o que inicialmente atraiu a intervenção estatal. Mas independentemente deste "alvo" ser ou não acusado como "criminoso" ao final do processo investigativo, é provável que tenha dificuldade de afastar o estigma (Goffman, 1978) ainda mais assustador e monstruoso de "pedófilo" que recaiu sobre ele desde que foi identificado (e até mesmo preso) pela polícia.
O curioso é que mesmo depois de ter sido revelado que a suposta criança cruelmente espancada e sexualmente abusada não existia e que os "fatos" relatados na sala de bate-papo na internet e no telefone não passavam de narrativas ficcionais de suas fantasias sexuais, não se verificou por parte dos juízes do caso – e tampouco de minha parte, ao ler o inquérito – uma descontrução imediata do horror e do caráter monstruoso do autor de tais relatos. A persistência do incômodo após o desvelamento do caráter fantasioso e ficcional dos "abusos infantis" narrados evidencia a dimensão simbólica (e não apenas corporal) da "violência", obliterada pela ideologia individualista que orientou a construção do atual regime de regulação jurídica da sexualidade, segundo o qual a intervenção estatal sobre as "liberdades sexuais" precisa ser justificada com base na proteção de uma suposta "vítima" (e não de costumes moralmente estabelecidos, por exemplo).
Se nas imagens de "pornografia infantil" o argumento da proteção a uma "vítima" individual pode ser acionado para embasar o repúdio e a criminalização dessas representações visuais a partir de suas conexões com o "abuso sexual" de crianças de "carne osso", o mesmo não parece ser eficaz para condenar narrativas textuais sobre "violências" cometidas contra crianças "fictícias". Todavia, se levarmos a sério a ideia de que a pornografia não deve ser entendida apenas enquanto um registro de práticas sexuais ou um discurso sobre a sexualidade, mas também enquanto uma representação dotada de agência (sexual, emotiva e política),9 é possível compreender porque, ainda que um corpo individual não tenha sido efetivamente atingido, a "pornografia infantil" costuma ser vista simultaneamente como "imagem de violência" e "imagem violenta".
A noção de que representações podem ser entendidas como um ato de ofensa não é nova, tendo sido sugerida pela corrente feminista que criticava a "pornografia". Entretanto, as chamadas "feministas radicais" defendiam que representações pornográficas constituíam atos de injúrias contra os sujeitos representados enquanto subordinados/objetificados nas cenas (as "mulheres"). Já a declaração de que "frases são cruéis" – nos termos do promotor deste "caso", ao se referir aos relatos de "abusos infantis" – não sugere que crianças sejam entendidas como as únicas ou as principais "vítimas" daquilo que pode ser definido como violência representacional. Assim, proponho que, dentre outros efeitos possíveis (excitação, indiferença, choque, horror, pena, ódio, indignação etc), cenas de "violência sexual contra crianças" ("reais" ou "fictícias"), ao representarem o inimaginável e o indizível, são capazes de violentar simbolicamente o espectador, especialmente quando são apresentadas como se fossem realidade.
As reações emocionais socialmente inscritas e prescritas que nos definem enquanto "sujeitos morais" em face das representações de atos de "violência sexual contra crianças" permitem ressaltar alguns aspectos importantes da construção da "pedofilia" como "problema social" que ficam particularmente nítidos no "caso" narrado: a centralidade do escrutínio das fantasias sexuais e das respostas emocionais do espectador das cenas de "abuso sexual infantil" não apenas para o diagnóstico clínico, mas também para a construção da "pedofilia" enquanto categoria criminal e "problema social"; as diferentes justificativas para a regulação desse gênero pornográfico, seja porque evidenciam e alimentam a "tara" ou porque constituem e incitam atos de "violência"; e a importância do borramento das fronteiras entre fantasia e realidade ou entre doença e crime para a conexão entre "pedofilia", "pornografia infantil" e "violência sexual contra crianças".

A "cruzada antipedofilia" e seus efeitos
A "violência sexual infanto-juvenil" tem sido construída como problema de diferentes maneiras por grupos específicos ao longo da história, atribuída a razões diversas e denominada de maneiras variadas (Lowenkron, 2010; 2012). A partir da noção de "abuso sexual infantil", tal qual formulada pelo movimento feminista nos Estados Unidos em meados da década de 1970 (Hacking, 1992), a violência sexual contra crianças foi denunciada como segredo da sociedade e da família patriarcais, associada às desigualdades de poder (entre homens e mulheres e adultos e crianças). Esse modelo de entendimento sobre o "abuso sexual infantil" foi apropriado e reformulado pelos movimentos sociais de defesa dos direitos das crianças nos anos 1990, que complementaram a crítica feminista à dominação masculina com a ideia de dominação "adultocêntrica".
Embora tenha sido desencadeada pelas feministas e seguida pela militância dos direitos das crianças, que foi a principal responsável por introduzir essa agenda política no Brasil, a preocupação com a dimensão sexual dos "abusos infantis" atraiu em diversas partes do mundo grupos tradicionais e conservadores, que em outras agendas (como na questão do aborto, dos castigos corporais de crianças e da maioridade penal) entram em confronto com as reivindicações desses movimentos, particularmente no que se refere à crítica ao modelo autoritário da família tradicional. Entre esses grupos, destacam-se políticos religiosos que, preocupados com a crescente expansão da onda de liberalização sexual desde os anos 1970, viram na luta contra a "pedofilia" a chance de reatualizar os temores sobre crimes e perigos sexuais, conforme mostra Jenkins (1998) no contexto norte-americano, e como se verificou também, mais recentemente, na arena política brasileira (Lowenkron, 2012).
Para concluir este artigo, retomo o argumento apresentado no início do texto de que as categorias utilizadas para definir um "problema social" influenciam na forma de sua compreensão e gestão, apontando alguns efeitos da cruzada antipedofilia. Meu argumento é que a noção de "pedofilia" desvia o foco de atenção política da crítica às desigualdades de poder, que estavam no centro da problemática das discussões sobre violência sexual contra crianças no Brasil até então, para a ameaça das "perversões", como se a causa do "abuso sexual infantil" e da "exploração sexual comercial" de crianças e adolescentes pudesse ser atribuída predominantemente a uma "tara" ou "perversão sexual".
É importante lembrar que tanto na CPI da Pedofilia quanto nas investigações da Polícia Federal a categoria "pedofilia" aparece primordialmente associada à "pornografia infantil na internet" que, por sua vez, é condenada por estar relacionada ao "abuso sexual de crianças". Entretanto, como já foi dito, as "vítimas" e os "abusadores" que aparecem nas cenas pornográficas raramente são identificados. Apesar de os principais empreendedores morais10 dessa cruzada afirmarem que o "alvo" ideal é aquele criminoso que "abusa" de crianças e registra e divulga as cenas na rede mundial de computadores (o monstro exemplar), os principais antigidos são os consumidores e os difusores dessas imagens. Ainda que raramente seja identificado entre esses alvos o produtor do material divulgado na rede e/ou o abusador sexual da(s) criança(s) retratada(s) nas cenas pornográficas, de modo geral, esses criminosos são identificados e condenados por armazenarem e/ou divulgarem imagens, e não por terem tido contato sexual direto com as vítimas.
A partir dos debates políticos e do caso policial analisados, sugiro que esses criminosos sejam responsabilizados não apenas pelo que fazem (divulgar, trocar, distribuir, adquirir, possuir e armazenar imagens), mas também pelo que suas ações revelam sobre seus desejos e pelos perigos que estes representam – associados tanto à lógica da "oferta e da demanda" quanto ao risco de passagem da fantasia ao ato ou, ainda, de pedofilização de crianças e adultos pela difusão de cenas de pornografia infantil que contaminam os nossos ideais de infância – seja a noção de criança pura e inocente fabricada no século XVIII (Ariès, 1981), ou a de criança como sujeito de direitos especiais, do final século XX, que deve ter sua sexualidade protegida e tutelada por sua condição peculiar de "pessoa em desenvolvimento" (art. 6º, ECA, 1990).
Assim, aponto para o fato de que a "cruzada antipedofilia" protege menos as crianças que aparecem nas cenas pornográficas e que raramente são localizadas, e mais as nossas representações idealizadas de infância, que podem ser ameaçadas mesmo por cenas e relatos fictícios. Não pretendo com este argumento fazer uma crítica à legislação em si, mas sim mostrar como as discussões políticas centradas no problema da "pedofilia na internet" desviaram o foco de atenção política do abuso de poder para a ameaça das perversões. Assim, essa cruzada antipedofilia acabou por promover o enfraquecimento da crítica feminista à estrutura social e familiar hierárquica e da preocupação com o inimigo interno que ataca de dentro da família (o "pai", o "padrasto", o "marido"), com um redirecionamento do temor para o Outro desconhecido e irreconhecível ("o lobo em pele de cordeiro"), o "estranho perigoso" que vaga por diferentes localidades, insinuando-se nos quartos da criança por meio do computador conectado à internet, e o "mal" que prolifera na rede através da circulação de imagens.
Não pretendo sugerir com isso a descriminalização da pornografia infantil e nem propor que a mera substituição de palavras seja suficiente para garantir, de maneira mágica e imediata, um novo olhar sobre o problema. Meu argumento é que a produção de categorias classificatórias é parte crucial do processo de construção e gestão de "problemas sociais", na medida em que as classificações são, ao mesmo tempo, produzidas por e produtoras de representações e práticas administrativas que, por sua vez, deslocam sensibilidades, impõem modelos de inteligibilidade, fabricam sujeitos, reorganizam coletividades, difundem e fixam prazeres.
Por isso, acredito que seja relevante discutir os efeitos de nomear, entender, regular e combater o "problema" da "violência sexual contra crianças" enquanto "pedofilia" e com foco no controle da "pornografia infantil" na internet, mostrando como essa cruzada tem sido menos efetiva na garantia dos direitos de proteção de crianças "de carne e osso" contra as várias formas de dominação e violência do que tem levado à disseminação do horror e do sentimento de perigo, à fabricação de figuras estereotipadas, à sobreposição e ao embaralhamento entre fantasias e atos sexuais, ao fortalecimento de uma forma específica de regulação do "problema" (a criminal) e à ênfase na monstruosidade moral.

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Recebido: 06/05/2013
Aceito para publicação: 25/11/2013


1 Este artigo foi apresentado nos Colóquios CLAM em 13 de setembro de 2012. O texto é baseado em pesquisa de doutorado desenvolvida com o apoio da bolsa do CNPq e junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (Lowenkron, 2012). O objetivo do trabalho era analisar a construção da "pedofilia" como problema social e fabricação do "pedófilo" no novo monstro contemporâneo.
2 Como aponta Howard Becker (1967), é importante perceber não apenas que os "problemas sociais" surgem ao serem definidos enquanto tais, mas também que o mesmo conjunto de condições objetivas pode ser definido como "problema" de diversas maneiras diferentes. Segundo o autor, devemos considerar as várias definições do "problema" por diferentes grupos de interesse, uma vez que estas trazem, implícita ou explicitamente, sugestões sobre como ele pode ser resolvido (Becker, 1967:10). Para uma discussão teórica sobre a perspectiva construcionista em relação a "problemas sociais", ver também Jenkins (1998) e Hacking (2008).
3 Quase todos os membros do grupo de trabalho da CPI da Pedofilia que participaram desse debate eram representantes de órgãos de persecução penal, como Polícia Federal e Ministério Público, com exceção do representante da ONG SaferNet, entidade especializada no combate a crimes contra os direitos humanos cometidos via internet.
4 Todos os dados identificatórios do investigado (nome, codinome, email, local de moradia, faculdade onde estuda etc.) foram substituídos por informações fictícias que não prejudicam a caracterização e a análise do "caso".
5 Nos termos do relatório produzido pela ECPAT (End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes), rede internacional que combate a exploração sexual de crianças e adolescentes, "the harms done to children and young people within and via virtual settings constitute acts of very real violence and have physical world consequences" (ECPAT, 2005:78). Além do argumento relacionado à objetificação da criança, o texto aponta ainda outros perigos associados à circulação de imagens de "pornografia infantil", que também foram destacados por especialistas e serão discutidos adiante.
6 Segundo Taylor e Quayle (2003), muitas teorias psicológicas foram propostas para elaborar a relação possível entre pornografia e agressão sexual. Algumas sugerem que a masturbação diante da pornografia infantil substituiria o abuso, e outras, ao contrário, que reforçaria fantasias existentes. No entanto, segundo os autores, a segunda é mais influente. Baseadas numa perspectiva cognitivo-comportamental, elas sugerem que a pornografia é usada como ajuda para a masturbação e que, quando o observador se masturba até ejacular, isto reforça sua resposta sexual ao conteúdo da pornografia e aumenta a tendência de que o comportamento seja repetido. Taylor e Quayle, por sua vez, criticam esta visão, afirmando que parece haver pouco fundamento para a alegação de relação causal direta entre ver pornografia e depois cometer um crime sexual, sendo mais provável, na opinião deles, que ter um apetite por pornografia infantil seja apenas outra manifestação do interesse sexual por crianças. Acrescentam ainda que a maioria dos estudos foi realizada no contexto da pornografia adulta e não no da pornografia infantil (Taylor & Quayle, 2003:72).
7 Substituí o codinome efetivamente citado no inquérito por algum que sugerisse uma ideia semelhante, inclusive com um erro de ortografia análogo.
8 Vale notar que a noção de monstruosidade não se restringe ao domínio do proibido ou do contra a lei, mas do ininteligível ou do contra a natureza, combinando, portanto, o impossível, o proibido e o inimaginável (Foucaut, 2002).
9 A agência sexual dessas imagens é definida por sua capacidade de despertar excitação erótica em alguns espectadores definidos como "pedófilos". Já a capacidade de agenciamento emotivo e político das cenas de "pornografia infantil" ganha prominência na arena pública da CPI da Pedofilia, visto que o presidente desta comissão descrevia publicamente e exibia reservadamente as imagens de horror para mobilizar seguidores em torno da "causa" política do "combate à pedofilia" (Lowenkron, no prelo). Essa estratégia vai ao encontro da afirmação de Susan Sontag (2003), segundo a qual as fotos funcionam como totens privilegiados de causas, afirmando que "um sentimento tem mais chance de se cristalizar em torno de uma foto do que de um lema verbal" (2003:72).
10 Segundo Becker (1973), para a criação de um grupo desviante, é preciso haver uma cruzada ou um empreendimento moral que começa pela denúncia de um comportamento como problemático visando à sensibilização e ao apoio de grupos e instituições poderosos (como imprensa, comunidade científica, líderes políticos e autoridades judiciais), a seguir são formuladas novas regras e estratégias de controle e, por fim, as regras são aplicadas a comportamentos e sujeitos específicos que passam a ser identificados/rotulados como desviantes. O autor define aqueles que produzem e impõem essas regras como empreendedores morais(Becker, 1973:147).

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