segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Corrupção e judiciário: a (in)eficácia do sistema judicial no combate à corrupção



Corruption and judicial system: the (in)effectiveness of the judicial system against corruption


Carlos Higino Ribeiro de AlencarI; Ivo Gico Jr.II
IAuditor-fiscal da receita federal. Secretário de transparência e controle do distrito federal
IIProfessor de análise econômica do direito na universidade católica de brasília (ucb). Pesquisador associado ao grupo de pesquisa em direito & economia (gpde/ucb)



RESUMO
Há uma percepção generalizada no brasil de que funcionários públicos corruptos não são punidos. Não obstante, até o momento, não há evidências empíricas que apóiem essa afirmação e muitos argumentam que se trata de uma percepção equivocada decorrente do aumento de medidas anticorrupção. Uma das principais razões para essa notável ausência é a grande dificuldade de se identificar casos comprovados de corrupção para, então, se averiguar se eles foram ou não punidos pelo sistema judicial. Este artigo usa o sistema brasileiro de responsabilidade tríplice como um experimento natural para medir o desempenho do sistema judicial contra corrupção. Nossos resultados mostram que o sistema judicial brasileiro é altamente ineficaz no combate à corrupção, sendo a probabilidade de ser punido menor do que 5%.
Palavras-chave: corrupção; administração pública; processo legal; judiciário; eficácia.

ABSTRACT
There is a widespread perception in Brazil that civil servants caught in corrupt practices are not punished. Yet, until now, there was no hard evidence that would support such claim and some argued that this was just a misleading perception due to the recent increase in anti-corruption measures. One of the main reasons for this notable absence is the difficulty of identifying atual cases of corruption to evalute whether the agents are actully being punished by the judicial system or not. This article uses the brazilian triple responsibility system as a natural experiment to assess juducial system is highly ineffective agaist corruption with a lower than 5% probability of conviction.
Keywords: corruption; public administration; legal procedure; judiciary; enforcement.



INTRODUÇÃO
A corrupção é um fenômeno ubíquo na história da humanidade. Sua presença tem sido relatada em tempos ancestrais e em todas as sociedades através dos tempos, mesmo hoje. Algumas sociedades foram capa es de restringir o nível de corrupção próximo ao nível eficiente, apesar de não eliminá-la, enquanto em outras ela permanece endêmica. Ainda não est claro como cada sociedade alcançou o seu atual equilíbrio e como se transmuta de um tipo de sociedade para outro. De qualquer forma, há um relativo consenso entre pesquisadores de que à corrupção pode ser um obst culo importante á cooperação social e, portanto, ao desenvolvimento. Nesse sentido, a corrupção é um fenômeno social que merece ser combatido.
Há uma percepção generalizada no Brasil de que os servidores públicos identificados em práticas corruptas não são punidos. Todavia, até agora, não havia evidência que desse suporte a essa afirmação e alguns argumentavam que tais afirmações eram o resultado de uma percepção equivocada decorrente do aumento recente de medidas anticorrupção. Uma das razões mais óbvias para a ausência de evidência da alegada impunibilidade decorre da dificuldade de identificarem-se casos reais de corrupção para, então, mensurar se tais casos são ou não punidos pelo Judiciário. Este artigo utiliza o sistema de responsabilidade tríplice (Administrativo, Penal e Cível) como um experimento natural para averiguar o desempenho do sistema judicial em casos de corrupção.
O sistema de combate à corrupção no Brasil permite que agentes corruptos sejam processados, tanto por comissões administrativas, quanto por Tribunais de Justiça. Tais processos são completamente independentes, mas grosso modo seguem a mesma infraestrutura jurídica e toda prova coletada em um procedimento pode ser emprestada noutro. Assim, é razoável supor que quando um desses sistemas identifica um agente corrupto, este deveria ser processado e punido pelos demais sistemas. Caso tal suposição se mostrasse real, então, o sistema de responsabilidade redundante realmente imporia uma punição maior aos servidores públicos corruptos.
Neste artigo, exploramos esse sistema de punição redundante para estimar o desempenho judicial no combate à corrupção. Supondo que os servidores públicos punidos administrativamente são realmente corruptos, utilizamos essa amostra como uma proxy para todos os casos de corrupção, e averiguamos se o sistema judicial é capaz ou não de identificar tais casos e efetivamente punir o agente corrupto. Aqui, sistema judicial é definido de forma ampla de modo a incluir não apenas os magistrados, mas também promotores públicos, os advogados, os policiais, etc. Nossos resultados mostram que, de fato, o sistema judicial brasileiro é altamente ineficaz no combate à corrupção.

1. A TEORIA ECONÔMICA DO CRIME
1.1 APLICAÇÃO DA LEI, PENALIDADES E COMPORTAMENTO RACIONAL
Inicialmente empregada por economistas para explicar o consumo e a produção, a Teoria da Escolha Racional tornou-se um difundido arcabouço teórico para compreender o comportamento humano em várias ciências sociais nos últimos sessenta anos, incluindo a Sociologia, as Ciências Políticas e o Direito. A aplicação dessa abordagem a questões jurídicas relacionadas à criminalidade começou no século XX com o artigo seminal de Gary Becker, “Crime and Punishment: an Economic Approach”, escrito em 1968, e tornou-se conhecida como Teoria Econômica do Crime.
De acordo com essa teoria, a chave para a compreensão do comportamento criminoso está em assumir que a maioria das pessoas cometeria um ilícito apenas se a utilidade esperada percebida pelo agente excedesse a utilidade esperada do emprego de seu tempo e recursos em outras atividades, como um trabalho tradicional. Nessa linha, algumas pessoas tornam-se criminosas não porque suas motivações básicas diferem das motivações das demais pessoas, mas por seus benefícios e custos diferirem.
Essa abordagem faz ressurgir o debate entre os efeitos retributivos e dissuasivos das penalidades1 e pode ser resumido da seguinte forma:
Nessa equação, “E[U]” é a utilidade esperada individual decorrente do cometimento do ilícito; “p” é a probabilidade de punição, logo, (1 - p) é a probabilidade esperada de não ser punido. “U” é a função utilidade individual do agente; “R” é o ganho ou renda obtida com a atividade ilícita; e “c” é o custo de ser punido. Por um lado, o primeiro termo da equação (1 - p) U(R) indica a possibilidade de não ser punido. Note que (1 - p) é a probabilidade que pondera a utilidade individual considerando apenas os ganhos potenciais da ofensa U(R). Por outro lado, o segundo termo p x U(R - c) pondera a probabilidade de ser punido “p” com a “desutilidade” decorrente acrescida dos custos incorridos.
De acordo com esse modelo, quando a expectativa “E[U]” é positiva, o agente tem incentivos para cometer o ilícito, do contrário, ele não tem incentivos. Aqui a probabilidade e a magnitude da punição são os elementos-chave para a análise juseconômica do comportamento criminoso. A essa altura deve estar bem claro que, de acordo com a teoria, a atividade criminosa é altamente dependente dos fatores que influenciam a alocação de tempo entre atividades legais e ilegais (custo de oportunidade).
Essa teoria foi testada em pesquisas empíricas, como a de Ehrlich, de 1974, que encontram evidências que a apóiam indicando que há uma relação estatisticamente relevante entre probabilidade de punição e ocorrência de todos os tipos de crime. O mais interessante é que o mesmo estudo encontrou uma relação semelhante entre a magnitude da punição e a taxa de criminalidade, mas com significância estatística apenas para metade dos casos. Essa evidência empírica pode indicar que a maior probabilidade de ser pego pode produzir um efeito dissuasivo maior que a magnitude da punição.
1.2 TEORIA ECONÔMICA DA CORRUPÇÃO
Ao aplicarmos a Teoria Econômica do Crime a casos de corrupção, o leitor deve ter em mente que nossa pesquisa se limita a servidores públicos. Ergo, o custo de oportunidade mais relevante envolvido em corromper-se não é representado pelas demais atividades permitidas que o servidor público poderia desenvolver, mas pela perda potencial de salário, de aposentadoria e outros benefícios que perderia caso fosse apanhado sendo corrupto. Assim, alguns ajustes ao modelo podem ser necessários e o fazemos à la Bowles.
Suponha que um indivíduo deseje obter uma renda ilegal “R”, que pode resultar de sonegação fiscal, venda de bens superfaturados ao governo ou outros esquemas semelhantes. Para obter essa renda, normalmente, é necessário colusão, logo, uma propina será paga. Chamemos essa propina de “B”. Há uma probabilidade “p” de essa colusão ser descoberta e denunciada por um terceiro, por exemplo, um auditor externo, o superior hierárquico do agente, um colega de trabalho ou um competidor prejudicado. Se o esquema é descoberto, o corruptor provavelmente será punido com a penalidade “J”, aplicada pelo Judiciário. Essa penalidade pode envolver tanto sanções criminais (tempo de carceragem e multa) quanto cíveis (indenizações). Como resultado, a corrupção só valerá a pena para o agente corruptor se:
(1 - P) (R - B) – P (J + B) ≥ 0
O primeiro termo da equação representa a situação na qual a corrupção não é detectada, isto é, a renda ilegal obtida pelo indivíduo (R) menos o custo da obtenção dessa renda (propina B) ponderada pela chance de não ser descoberto (1 - p). Se a ofensa é descoberta, o indivíduo será sujeito a uma penalidade “J”, além de ter incorrido nos custos a propina “B” de qualquer forma. Como “p” é a probabilidade de ser punido, p (J + B) representa o ônus esperado de ser pego.
Se rearranjarmos os termos de forma a isolarmos B e denominarmos BS o limite superior que o indivíduo está disposto a pagar (valor máximo da propina), o modelo nos informa que:
Já o servidor público é vulnerável não apenas à penalidade “J”, resultante das sanções penais e cíveis, mas também a uma penalidade adicional denominada “A”, que representa seu custo de oportunidade enquanto servidor público. Nesse caso, o custo de oportunidade envolve a perda potencial de qualquer benefício resultante de sanção administrativa como a perda de salários futuros, benefícios previdenciários e planos de saúde, que são inaplicáveis ao agente corruptor. Portanto, para o servidor, a corrupção (propina) é interessante apenas se:
(1 – P) B – P (A + J) ≥ 0
Aqui, (1 - p) representa a probabilidade de não ser punido, que ponderada pela propina “B” deve ser maior que a chance de ser punido “p”, ponderada pelo ônus judicial e administrativo potencialmente suportado pelo servidor. Se rearranjarmos esses termos de forma a isolarmos o B e chamarmos BI o limite inferior que um servidor público estaria disposto a receber (valor mínimo da propina), o modelo nos informa que:
Das equações 2 e 3 podemos demonstrar que a corrupção é provável de ocorrer apenas quando o limite superior da disposição a pagar propina do corruptor for maior que o limite inferior da propina de reserva do servidor, ou seja, BS ≥ BI, o que implica:
Esse modelo sugere algumas conclusões interessantes. Primeiro, o nível de corrupção é contínuo e não discreto. Em outras palavras, o grau de corrupção é ligado à estrutura de incentivos dos agentes envolvidos de forma a ser possível haver vários níveis diferentes de corrupção. Podemos, inclusive, falar em um nível eficiente de corrupção (Mookherjee e PNG, 1995), 2 da mesma forma que falamos em níveis eficientes de poluição ou de qualquer outra atividade humana.
Segundo, um incremento da sanção judicial ao indivíduo, “J”, tende a reduzir a corrupção, uma vez que aumenta os custos do indivíduo caso seja pego (pJ na equação 2), o que – por sua vez – reduz BS, já que pJ possui um sinal negativo, ainda que BI permanecesse constante. De forma análoga, se a penalidade para o servidor fosse aumentada (A + J na equação 3), BI aumentaria, ainda que BS permanecesse constante, o que tende a reduzir o nível de corrupção. É possível argumentar, também, que um incremento na penalidade judicial de ambos os agentes (J) tende a reduzir a corrupção ainda mais, pois afeta negativamente a ambos.
Outra conclusão possível é que o incremento na probabilidade de punição (p) também tende a reduzir a corrupção, já que tende a simultaneamente aumentar BI e reduzir BS, aumentando o hiato BS - BI do qual a racionalidade da corrupção depende em última instância.
Além disso, estamos dispostos a argumentar que um aumento na probabilidade de punição (p) é a variável mais importante no estabelecimento do nível de equilíbrio atual de corrupção, pois decresce exponencialmente o numerador e exponencialmente incrementa o denominador na equação 4. Em consequência, o efeito de um aumento na probabilidade de punição é um aumento maior da renda “R” necessária para que a corrupção seja realmente interessante para o agente corruptor. Essa conclusão é consistente com vários estudos em análise econômica do direito que indicam que os melhores resultados na luta contra o crime são alcançados por meio de um aumento na probabilidade de ser preso e condenado.
A importância da probabilidade de punição é objeto de inúmeros estudos que comparam a probabilidade de ser preso vis-à-vis à ocorrência de todos os tipos de delitos (p.ex., Ehrlich, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976, 1982; Ehrlich e Posner, 1974; Ehrlich e Gibbons, 1977; Ehrlich e Mark, 1977; Ehrlich e Liu, 1999), ainda que exista algum debate sobre tais estudos (Brier e Fienberg, 1980). Sobre esse debate Eide, Rubin e Shepherd (2006) comentam que:
A grande maioria dos estudos e análises de regressão cross-section mostra uma clara associação negativa entre variáveis de punição e a taxa de crimes. Quase sem exceção o coeficiente das variáveis de punição (que normalmente são as elasticidades das taxas de crime em relação às variáveis de punição) são negativas e, na maioria dos casos, de forma significante.3
Em linha com esses estudos, dado nosso modelo teórico e as evidências empíricas disponíveis, consideramos que a aplicação da lei (law enforcement) tem um efeito dissuasivo substancial. Em suma, parece razoável assumir da teoria que a variável mais importante para reduzir a corrupção é a probabilidade de punição (p), seguida da magnitude das sanções judiciais (J) para ambos os agentes, corruptor e servidor corrupto, e, por fim, a magnitude das sanções administrativas (A) aplicáveis apenas ao servidor corrupto.
Considerando-se que o custo associado ao aumento da probabilidade de punição (p.ex., melhores instrumentos de monitoração, promotores e juízes especializados) é normalmente muito superior ao custo associado apenas ao aumento da magnitude da punição (basicamente o processo legislativo), é de se esperar que essa última estratégia seja mais comumente empregada do que a primeira. De qualquer forma, a teoria nos informa que a probabilidade de punição é a variável chave na luta contra a corrupção. De uma perspectiva empírica, então, a questão é como alguém mede a probabilidade de punição em casos de corrupção para subsidiar futuras políticas públicas?

2 MEDINDO O DESEMPENHO JUDICIAL EM CASOS DE CORRUPÇÃO
2.1 MEDINDO A CORRUPÇÃO E A PROBABILIDADE DE PUNIÇÃO
Para medirmos a probabilidade de punição, seria necessário que fôssemos capazes de identificar todos os episódios de corrupção que ocorreram em um dado período de tempo, nosso espaço amostral. Lamentavelmente, episódios de corrupção são altamente caracterizados por problemas de risco moral (moral hazard) ou de ação oculta. Apesar de toda a forma de conduta delitiva ser caracterizada por algum grau de não denunciação, o problema é especialmente sério em contextos de corrupção. O principal em nosso caso (o Estado) não apenas é uma entidade jurídica, mas tambémé um ente cuja propriedade é altamente dispersa.
Em contextos de delitos tradicionais, como furto ou roubo, a vítima é individualizada e, muitas vezes, uma testemunha da ocorrência. Esse fato torna a mensuração da intensidade de ocorrência mais simples. Mesmo a falta de denúncia por falta de confiança no sistema, medo de retaliação ou trauma pode ser mitigada por algumas técnicas de taxa de vitimização (Pyle, 2000).
Todavia, quando se lida com casos de corrupção, na maioria das vezes, os agentes envolvidos no crime estão efetivamente cientes de sua ocorrência (assimetria de informação), o que nos leva ao segundo problema: colusão. Combater a corrupção é, em larga medida, similar ao combate aos cartéis (Gico, 2007), pois, em ambos os cenários, os agentes envolvidos conluiem para alcançar o resultado ilegal sem revelar a colusão para o mundo exterior. Assim, é possível se analisar a corrupção burocrática como sendo um problema de risco moral, isto é, um contrato entre um principal e um agente com informação privada.4
Dado o problema de assimetria de informação, a maioria das estimativas de corrupção é baseada em percepção, como em Lambsdorff (2006), Kaufmann, Kraay e Mastruzzi (2006), e Woodruf (2006), mas não em corrupção propriamente dita. Esse tipo de pesquisa é realizada com base na premissa de que estimativas de corrupção derivadas de percepções subjetivas e expertise são correlacionadas com os níveis reais de corrupção subjacentes.
Tal método tem recebido críticas de especialistas, não apenas porque a percepção é enganosa (pode, inclusive, ser histórica e culturalmente determinada), mas também por desencorajar a transparência, devido ao viés de disponibilidade gerado nas percepções quando há efetivo combate à corrupção (CGU, 2009).5 De um jeito ou de outro, a percepção de corrupção não é útil se nosso objetivo for medir o desempenho judicial.
Nesse contexto, medir o desempenho judicial contra a corrupção apresenta o desafio de, primeiro, descobrir-se o número de casos de corrupção que ocorreram durante um dado período de tempo ou obter-se uma aproximação (proxy) disso. Apenas então é possível comparar esse resultado com o número de casos em que alguma punição é efetivamente imposta pelos Tribunais (desempenho judicial). Como a observação direta dos casos de corrupção é difícil, buscamos um experimento natural que servisse de aproximação a esses dados. Na seção seguinte, explicaremos por que o sistema brasileiro de tripla punição da corrupção é um experimento natural adequado.
2.2 O SISTEMA BRASILEIRO ANTICORRUPÇÃO: UM EXPERIMENTO NATURAL
Ao contrário de muitos países, os servidores públicos no Brasil gozam de várias prerrogativas – em tese – estabelecidas para garantir que sejam capazes de desempenhar suas funções de forma adequada e relativamente imunes às pressões dos eternamente cambiantes grupos políticos no poder. Mais importante, eles gozam de estabilidade (só podem ser demitidos por falta e depois do devido processo legal), recebem benefícios previdenciários superiores aos de seus pares na iniciativa privada, e estão entre os trabalhadores mais bem pagos em qualquer setor (apesar de isso poder variar com os anos).
No entanto, a teoria e a experiência nos informam que tais prerrogativas não são suficientes para combater a corrupção. A corrupção é um fenômeno comum a todas as sociedades, em todos os tempos. Cientes dessa possibilidade e das perdas sociais associadas à prática, os legisladores optaram por criar um sistema de tripla responsabilidade no qual o agente corrupto pode enfrentar cumulativa e independentemente sanções criminais, cíveis e administrativas por suas ações.
Sanções criminais, cíveis e administrativas por corrupção são completamente independentes umas das outras e são impostas por parcelas diversas da burocracia pública. Sanções penais são impostas por varas criminais, enquanto sanções cíveis são impostas por varas cíveis, e sanções administrativas, por comissões administrativas formadas por pares, não necessariamente com formação jurídica. Logo, a mesma conduta pode ser investigada, independente e simultaneamente, ou não, por três diferentes entes. Essa redundância pode ser utilizada como um experimento natural para mensurar-se quão eficaz é o sistema judicial brasileiro no combate à corrupção.
Se formos capazes de combinar todos os casos identificados por comissões administrativas em um dado período de tempo e comparar esses resultados com as punições impostas pelo sistema judicial, seja ele cível ou criminal, para as mesmas condutas, poderemos estimar razoavelmente o desempenho judicial no combate à corrupção para esse período.
Uma objeção que poderia ser levantada contra essa abordagem é que a discrepância entre as conclusões administrativas e judiciais resultariam não de uma ineficácia do sistema judicial, mas de restrições legais a que cada sistema está sujeito. Em outras palavras, poderia haver uma discrepância entre os servidores públicos considerados corruptos por comissões administrativas e aqueles não penalizados pelos Tribunais, pois cada corpo adjudicatório trabalharia dentro de leis ou regras e padrões de prova diversos.
Acreditamos que essa objeção não se aplica ao nosso caso por três razões. Primeiro, na prática, os sistemas judiciais e administrativos são largamente similares, sem diferenças materiais em padrões de prova ou legislação aplicável; apenas o procedimento é realmente diverso (apesar de o devido processo legal ser um requisito para ambos). Segundo, de acordo com a Constituição (5º, XXXV), todos os atos administrativos estão sujeitos à revisão judicial de forma tal que uma eventual discrepância de avaliação pode ser resolvida recorrendo-se ao Judiciário para reverter a decisão administrativa. Terceiro e último, apesar de os sistemas serem independentes, as provas coletadas em uma instância podem ser utilizadas pelas demais, o que tenderia a tornar os fatos apurados em cada uma muito semelhantes.
É importante notar que o compartilhamento de provas funciona em mão dupla. Provas judiciais, como grampos telefônicos e quebras de sigilo fiscal e bancário, estão disponíveis para comissões administrativas, bem como instrumentos administrativos, como relatórios de auditoria e investigações, podem servir de base para ações cíveis e criminais. Essas trocas comuns servem, em larga medida, para uma convergência entre critérios judiciais e administrativos e uma prova considerada imprestável em uma instância provavelmente seria considerada imprestável em outra.
Como resultado, a taxa real de reversões judiciais de decisões administrativas pode servir como um indicativo do grau de divergência entre padrões judiciais e administrativos. Se a taxa for muito alta, é possível inferir que as esferas administrativas e judiciais tratam os casos de forma diferente, mas se a taxa de reversão for muito baixa, é possível assumir que a esfera judicial considera adequadas as conclusões de fato da esfera administrativa, logo, seus padrões convergem. Essa questão será abordada na seção Análise das reintegrações.
Dessa forma, nossa abordagem para medir o desempenho do sistema judicial no combate à corrupção assume que, se um agente é considerado culpado na esfera administrativa, na qual ele é julgado de acordo com o devido processo legal, mas por pares, que são historicamente protetivos (quiçá, corporativistas), e os padrões de prova não são substancialmente diversos dos judiciais, então, o grupo de demitidos pode ser usado como uma aproximação do universo de agentes corruptos. Uma vez identificado esse subconjunto, podemos estimar o desempenho judicial comparando esse subconjunto com a taxa de punição judicial imposta aos mesmos casos.
O desempenho judicial, então, pode ser representado pela seguinte razão, na qual QP é a quantidade de casos efetivamente punidos pelo sistema judicial, enquanto Qo é a quantidade estimada de casos de corrupção (punidos pelo sistema administrativo):
Também é importante notar que, tomando Qo como uma proxy dos casos em que realmente houve corrupção, não significa assumir que o processo administrativo é infalível ou que não há caso no qual os agentes corruptos não são punidos. Tal pressuposto significa apenas que aqueles casos que foram efetivamente investigados são associados a uma alta probabilidade de ocorrência de corrupção, de acordo com os padrões legais vigentes.
Ao empregarmos essa simples abordagem, podemos averiguar o desempenho do sistema judicial como um todo e, também, dos sistemas cível e criminal separadamente. Tudo que temos de fazer é identificar o QP para cada área.
Por fim, antes de avançarmos para os dados coletados, é relevante destacar que todas as sanções administrativas são devidamente publicadas no Diário Oficial e os promotores públicos devem ser notificados, razão pela qual se pode argumentar que eventuais discrepâncias não são explicáveis por eventual problema de fluxo de informação.
2.3 METODOLOGIA DE COLETA DE DADOS
2.3.1 Identificando casos de corrupção – Restrição da amostra
Inicialmente, é importante chamar atenção para o fato de as informações mais relevantes para o presente artigo não estarem disponíveis em bancos de dados, pois o governo brasileiro não mantém registros unificados de casos de corrupção, demissões ou informações similares. Dessa forma, tivemos que manualmente coletar as informações pela leitura do Diário Oficial para cada dia do período analisado. Como esse esforço de levantamento de dados envolve uma quantidade considerável de trabalho, e nossos recursos eram limitados, decidimos por restringir nosso conjunto de dados no tempo e no espaço.
Nossa amostra de casos de corrupção é composta de todos os servidores públicos federais demitidos por corrupção (corrupção burocrática) dos principais Ministérios (Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Relações Exteriores, Desenvolvimento Agrário) durante o período de 1993-2005. Esses Ministérios foram escolhidos por suas características gerais, quais sejam: (a) cobertura nacional; (b) presença de estrutura organizacional de combate à corrupção; (c) papel relevante no desenvolvimento de políticas públicas; (d) características diferenciadas do corpo permanente de funcionários; (e) cultura organizacional e níveis de profissionalismo diversos; (f) atividades potencialmente mais vulneráveis à corrupção (poder de polícia e compras públicas); e (g) papel relevante na alocação de recursos públicos.
A cobertura nacional foi privilegiada para prover um conjunto mais representativo do Brasil e para evitar potenciais disparidades regionais (p.ex., uma região ser mais corrupta que a outra) que poderiam distorcer nossos resultados. A presença de estruturas organizacionais especializadas em combater a corrupção foi privilegiada para reforçar nossa assertiva de que os servidores demitidos são associados a uma alta probabilidade de realmente serem corruptos. O Governo Federal mantém uma estrutura administrativa profissional para combater a corrupção com um sistema integrado que inclui auditorias internas em vários órgãos estratégicos, como a Polícia Federal, a Receita Federal, o INSS e as agências reguladoras.
Também privilegiamos entes que possuem papel relevante no estabelecimento de políticas públicas importantes como a exterior, a monetária, a fiscal, a orçamentária e a de produção e desenvolvimento, pois, como informa a teoria, quanto maior o prêmio, maior o retorno esperado da corrupção.
Além disso, privilegiamos entes com perfis diferentes de servidores considerando-se os anos de escolaridade e salários. A diferença no perfil educacional dos servidores por Ministério pode ser verificada na Tabela 1, onde é possível perceber que entes com alto (p.ex., Ministério da Fazenda com 71,8% e Ministério das Relações Exteriores com 63,6%) e baixo (p.ex., Turismo com 16,5%) níveis educacionais foram incluídos. Há também uma desejável variabilidade salarial, como pode ser conferido na Tabela 2, confirmando a diversidade das carreiras que compõem a amostra.




Consideramos, ainda, que os entes escolhidos possuem culturas organizacionais diversas. Em alguns, como o Ministério da Fazenda e das Relações Exteriores, a maioria dos cargos de confiança é ocupada por servidores de carreira, um sinal de administração profissional, enquanto noutros essas posições são ocupadas preponderantemente por comissionados. Essas tendências podem ser averiguadas na Tabela 3.


O tipo de atividade desenvolvida pelo ente e sua relação com terceiros também foi considerada. Não é desejável que se levantem os dados com base apenas em servidores com os mesmos níveis educacionais e salariais; é importante checar a atividade desenvolvida e sua potencialidade para gerar rendas ilícitas. Dois fatores foram considerados para determinar a potencialidade de geração de renda ilícita: (1) atividades envolvendo compras públicas; e (2) poder de polícia (o poder de impor restrições de direitos). Muitos estudos consideram essas carreiras quando lidam com corrupção, como Roemer (2007), que faz referência aos policiais, e Klitgaard (1994), que menciona os funcionários da Receita.
A capacidade de gerar benefícios ou de impor restrições a terceiros é uma variável relevante ao lidar com corrupção e pode explicar por que, por exemplo, é possível encontrar níveis de corrupção diversos em burocracias com níveis educacionais e salariais semelhantes. Nesse sentido, nossa amostra também se revela adequada, pois contém várias carreiras com poder de polícia, como auditores (Receita Federal), servidores do sistema financeiro (Banco Central), do mercado de capitais (CVM), de seguros (Susep) e do controle de pragas (Ministério da Agricultura).
Ao mesmo tempo, deve-se enfatizar que alguns desses entes desempenham importante papel no controle e liberação de alocações orçamentárias, especialmente os Ministérios do Planejamento e da Fazenda. Por todas essas razões, acreditamos que nossa amostra de servidores públicos demitidos por corrupção é representativa do total de agentes corruptos.
Uma vez estabelecidas as restrições qualitativas de nossa amostra, nosso próximo passo foi determinar as restrições temporais. Decidimos limitar nossa pesquisa ao período de 1993 a 2005 considerando:
(i) a publicação e a aplicação do então novo Estatuto do Servidor Público, a Lei n. 8.112 de 1990, que governa sanções disciplinares desde dezembro de 1990, assumindo que seus efeitos podem ser mais bem sentidos após um período de adaptação de 2 anos; e
(ii) um período de 4 anos como um prazo razoável para que varas sentenciem alguém já demitido administrativamente por corrupção. Esse hiato permitiu-nos avaliar razoavelmente a progressão dos procedimentos. A inclusão das últimas demissões poderia artificialmente afetar o desempenho judicial ao não dar tempo suficiente para a revisão judicial.
2.3.2 Levantamento dos dados
Uma vez selecionada nossa amostra, revisamos cada Diário Oficial do período em busca de servidores públicos demitidos nesse intervalo. Nossa busca preliminar incluiu todos os servidores sancionados com punições associadas a práticas de corrupção, como demissão, perda de aposentadoria e remoção de cargos de confiança. Depois do levantamento dessa primeira amostra mais ampla, processamos os casos de acordo com o fundamento jurídico para a sanção e excluímos da amostra os casos não relacionados com corrupção.6
Listados todos os casos de corrupção, vasculhamos as bases de dados judiciais para cada um dos servidores em busca de processos cíveis ou penais, independentemente de terem sido concluídos ou não. Essa busca levou em consideração, também, os casos em que foi pedida a anulação da decisão administrativa e a reintegração. Nossa busca incluiu todas as varas federais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Os resultados de nossa pesquisa são apresentados na seção seguinte.

3 RESULTADOS
3.1 ANÁLISE DAS REINTEGRAÇÕES
Como mencionado anteriormente, no Brasil, nenhum ato administrativo é imune à revisão judicial. Assim, para fortalecer nossa posição, podemos utilizar a taxa de reversão das demissões administrativas como um teste da solidez jurídica dessas decisões. Se encontrarmos uma alta taxa de reversão, é possível se arguir que eventual discrepância entre condenações judiciais e administrativas decorre, não de um desempenho ruim do sistema judicial, mas ao contrário, de um sistema administrativo que pode ser arbitrário.
A presença de uma taxa significante de reintegrações também poderia ser interpretada como uma evidência de que há uma divergência substancial de critérios de prova utilizados pelo sistema judicial e administrativo, o que resultaria em uma indeterminação. De qualquer forma, a comparação empregada em nosso trabalho seria muito menos sólida. No entanto, nossos dados não apóiam essa posição.
Em nosso trabalho, as reintegrações foram definidas como os casos em que o servidor demitido conseguiu uma ordem judicial para que retornasse ao seu órgão de origem. Essa possibilidade é expressamente prevista no art. 28 da Lei n. 8.112/90, o Estatuto dos Servidores Públicos. Quando analisamos os dados de reintegração apresentados na Tabela 4, a primeira conclusão importante a que chegamos é que ações de reintegração são relativamente comuns. Mais da metade dos servidores demitidos entra com uma ou mais ações para ser reintegrado (224 servidores).


Dos servidores que ajuizaram ações visando a reintegração, apenas 29 conseguiram a ordem, apesar de um terço dessas decisões (9) ainda estarem pendentes de revisão em sede de apelação. Como resultado, apenas 4,5% dos servidores demitidos foram judicialmente reintegrados, de um total de 441, e, mesmo se reduzirmos nossa análise aos casos em que realmente houve contestação judicial da demissão (224), as reintegrações resultantes são de apenas 8,93% dos casos.
É relevante ressaltar que 104 das ações de reintegração já foram rejeitadas definitivamente e 77 foram rejeitadas em primeira instância, pendentes de apelação. Em outras palavras, 46,04% das ações já foram rejeitadas definitivamente (trânsito em julgado). Esses dados indicam que é um mito a afirmativa de que a maioria dos servidores públicos demitida retorna à Administração Pública. Ergo, é razoável usar os casos de demissões administrativas como aproximações para os casos reais de corrupção a fim de estimar-se a efetividade judicial dos sistemas cível e criminal.
3.2 MEDINDO O DESEMPENHO – RESULTADOS
De 1993 a 2005 conseguimos identificar 687 servidores públicos demitidos (ver Tabela 5), dos quais 246 (35,81%) foram demitidos por razões não relacionadas com corrupção e 441 (64,19%) estavam realmente envolvidos em práticas corruptas.


Esses resultados são compatíveis com um estudo recente (Rocha e Alencar, 2009) que investigou as causas, sejam elas ligadas ou não à corrupção, da demissão dos servidores públicos federais em outro período (julho de 2001 a junho de 2009). Esse estudo envolve todos os servidores públicos federais (ver Tabela 6). Ambos os estudos indicam que aproximadamente dois terços das demissões de servidores públicos federais estão relacionadas a práticas de corrupção. A causa mais comum para a demissão de servidores, depois de corrupção, é a ausência injustificada ao trabalho, seja por abandono de cargo (ausência por mais de 30 dias consecutivos), ou por inassiduidade habitual (60 dias de ausência ou mais interpolados em um período de 12 meses).


Uma exposição mais detalhada com os resultados gerais e do sistema criminal é apresentada na Tabela 7. Uma primeira conclusão interessante que podemos extrair dos dados é que apenas um terço dos servidores públicos demitidos administrativamente (34,01%) são processados criminalmente. Como esses números referem-se a casos já amplamente documentados e, mesmo assim, o número de ações é muito baixo, é razoável supor que a probabilidade de se enfrentar ações judiciais na esfera penal pela prática de corrupção é bem abaixo de 30%.


É importante notar que esses dados se referem apenas a ações penais e não implicam necessariamente no fato da lei ser aplicada, isto é, ser imposta sanção. Realmente, o cenário fica ainda mais desalentador quando analisamos o número efetivo de condenações, pois apenas 14 servidores foram definitivamente condenados. Com base em nosso pressuposto de que as condenações administrativas são um forte indicativo de corrupção real, podemos estimar a eficácia do sistema criminal em cerca de 3%:
Convém lembrar que mesmo esse baixíssimo desempenho na aplicação da lei não representa necessariamente tempo de carceragem, pois o regime prisional pode ser convertido em outros tipos de punição dependendo do tempo de prisão imposto. Em resumo, o resultado que encontramos é que a chance de alguém ser efetivamente preso, no Brasil, por corrupção, é próxima de zero. E as coisas não diferem muito quando analisamos as sanções cíveis.
De início, seria razoável se esperar um desempenho melhor do sistema judicial cível, uma vez que a legislação aplicável emprega padrões de sanção mais maleáveis que os penais. Na prática, todos os fundamentos jurídicos para a demissão de um servidor público também constituem fundamento jurídico para a responsabilização cível, logo esperávamos um grau de convergência muito maior entre os sistemas administrativos e cíveis, mas os dados não corroboram essa expectativa.
Analisando os dados coletados (ver Tabela 8), encontramos apenas 107 servidores demitidos administrativamente que foram judicialmente acionados. Desses, alguns foram acionados mais de uma vez (encontramos 122 ações cíveis). Esse resultado significa que menos de um quarto dos servidores demitidos administrativamente (24,26%) realmente enfrenta processos judiciais cíveis.


Além disso, do grupo geral de ações cíveis, até 2009, só foram encontradas 13 condenações. Apesar de haver um número absoluto maior de ações cíveis contra servidores corruptos, os resultados efetivos são ainda mais desapontadores do que os do sistema penal: apenas 7 condenações definitivas foram encontradas, isto é, casos não mais pendentes de qualquer tipo de recurso (trânsito em julgado).
Com esses resultados e aplicando-se a mesma metodologia, podemos estimar o desempenho judicial do sistema cível em menos de 2%:
Mesmo se combinássemos os resultados penais e cíveis, desprezando-se a possibilidade de haver contagem em dobro, o desempenho do sistema judicial não melhoraria muito, pois sua taxa de sucesso ainda seria inferior a 5%:
Como podemos ver dos dados levantados, a percepção generalizada de que pessoas corruptas nunca respondem à Justiça no Brasil não é exagerada. Basta mudarmos o “nunca” para quase nunca que a afirmação se torna precisa. Do ponto de vista da teoria, é razoável inferir que o desempenho judicial no combate à corrupção é tão baixo que atividades ligadas à corrupção devem ser altamente lucrativas e, portanto, ubíquas em nossa sociedade.

4 CONCLUSÃO
Este artigo propôs-se a averiguar se o sistema judicial brasileiro, incluindo os subsistemas cível e penal, é efetivo na luta contra a corrupção. De um lado, os dados revelam que, dos servidores demitidos administrativamente por corrupção que questionaram judicialmente tal decisão, apenas 29 conseguiram uma ordem de reintegração. Um pouco menos de um terço dessas ordens (9), até 2009, ainda eram passíveis de reversão em sede de apelação, isto é, não eram definitivas. Assim, apenas 4,5% dos servidores demitidos (441) foram judicialmente reintegrados, de onde se pode concluir que é um mito a impressão de que os processos administrativos de demissão são majoritariamente anulados pelo Poder Judiciário.
Por outro lado, nossos resultados demonstram que a chance de um servidor público corrupto ser criminalmente processado é muito menor que 34,01%, e as chances de ser civilmente processado são ainda menores, apenas 24,26%. Além disso, a chance de ser efetivamente condenado criminalmente é de meros 3,17%, enquanto a chance de ser responsabilizado civilmente é – novamente – ainda menor, apenas 1,59%.
Diante desses resultados, é possível afirmar-se que a eficácia do sistema judicial no combate à corrupção no Brasil é desprezível, o que apenas torna o controle administrativo ainda mais relevante.
Como um agente racional está normalmente preocupado com “p”, isto é, a probabilidade de ser punido, e não com a probabilidade de ser meramente processado, decorre diretamente da teoria e dos dados levantados que, atualmente, há no Brasil enormes incentivos à realização de práticas de corrupção, pois o servidor provavelmente sairá impune. Nesse caso, a percepção popular está amparada por evidências empíricas.
Há décadas tem sido anunciada a passagem do Brasil de uma sociedade fechada para uma sociedade aberta. Nossos resultados demonstram que essa passagem pode estar comprometida ou, ao menos, seriamente adiada pelos níveis atuais de corrupção burocrática, sem mencionarmos a corrupção política, que não foi objeto de nosso trabalho.
Como a probabilidade de punição é uma das variáveis mais relevantes na determinação do nível de atividade criminosa, é de se esperar que o nível de corrupção no Brasil ainda seja muito elevado. Um alto nível de corrupção certamente diminui a cooperação social e enfraquece a capacidade de o Estado implementar boas políticas públicas (se tentar). Além disso, a presença de altos níveis de corrupção representa um alto nível de comportamentos “rentistas” (rent seeking), cujo efeito é simplesmente destruir riqueza na busca por redistribuição de recursos, o que empobrece a sociedade.
É importante ressaltar que não foi feito um esforço, nem para se explicar esses resultados pífios, nem para se identificar as prováveis causas associadas. Essas são questões importantes deixadas como uma agenda de pesquisa. Esperamos que outros pesquisadores se interessem pelo trabalho e se esforcem para estendê-lo, explicá-lo ou contestá-lo. De um jeito ou de outro, por mais desagradável que seja, demonstramos que, ao menos por enquanto, no Brasil, o crime compensa.

NOTAS
1 Ao final do século 18 e primeira metade do século 19 era possível se identificar duas grandes abordagens filosóficas à punição criminal: uma seguida por Kant e Hegel e outra defendida por Beccaria e Bentham. A primeira propunha, essencialmente, que a punição deveria ter um caráter retributivo, isto é, uma espécie de Lei do Talião aplicada por um Judiciário profissional que imporia ao prisioneiro a penalidade que lhe causasse uma perda similar àquela resultante de sua conduta delituosa. A segunda abordagem arguia que a penalidade deveria ser calculada de forma a ser suficiente para prevenir a ocorrência do crime. Gary Becker retoma a linha de argumentação dessa última linha de pensamento.
2 Essa opinião não deve ser interpretada como sugestão de que nem toda corrupção deva ser combatida, mas apenas que, de uma perspectiva da eficiência (análise custo-benefício), alcançar um nível zero de corrupção pode ter um custo social tão alto (incluindo custos de burocratização) que seria socialmente indesejável.
3 The great majority of correlation studies and cross-section regression analyses show a clear negative association between punishment variables and the crime rate. Almost without exception the coefficients of the punishment variables (which usually are the elasticities of the crime rates with respect to the punishment variables) are negative, and in most of the cases significantly so.
4 Há vários modelos que consideram corrupção como um problema de seleção adversa, como Tirole (1986), Laffont e Tirole (1993) e Kofman e Lawaree (1993), enquanto outros abordam o problema de uma perspectiva de risco moral, como Mookherjee e PNG (1995).
5 Quanto mais se combate a corrupção, mais corrupção é descoberta e exposta. No entanto, quanto mais disponíveis os casos de corrupção (ainda que seu número absoluto caia), maior a percepção de corrupção no governo, o que gera desincentivos à investigação de casos de corrupção para que o governo não pareça corrupto.
6 Um servidor público pode ser punido com qualquer uma dessas penalidades em outros casos, como desídia.

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