domingo, 27 de julho de 2014

O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet



The Chilean intelligence service in the Pinochet government


Priscila Antunes
Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,Doutora em Ciência Política pela UNICAMP.priscila_antunes@terra.com.br



RESUMO 
Este artigo estabelece uma discussão acerca da criação das comunidades de inteligência no mundo ocidental e analisa como a formação da comunidade de informações no Chile pode ser enquadrada dentro deste padrão. O artigo destaca o papel da comunidade no processo de repressão durante a ditadura militar chilena (1973-1989) e o seu fracasso no que diz respeito ao cumprimento das funções típicas de um serviço de inteligência.
Palavras-chave serviços secretos, Pinochet, ditadura chilena

ABSTRACT 
This article discusses the creation of the intelligence communities in the occidental world and analyze how the Chilean information community can be understood according to this pattern. It also focuses on the role of the intelligence communities during the repression processes in the Chilean military dictatorship (1973-1989) and its failure related to fulfilling the typical functions of an intelligence service.
Key words Secret services, Pinochet, Chilean dictatorship



Introdução
Análises sobre os "serviços secretos” ou "sistemas de inteligência/informações” nos países latino-americanos ainda são muito escassas na produção historiográfica brasileira e das Ciências Humanas de um modo geral, demandando o tipo de discussão que ora passamos a apresentar.
Por sistemas de inteligência podemos entender as organizações que atendem à função de inteligência dentro de um determinado governo. A atividade de inteligência é uma componente atual e significativa do poder de Estado, enquadrando-se no núcleo coercitivo que provê a prestação de serviços públicos de defesa externa e da manutenção da ordem institucional, as duas funções constituindo características do monopólio legítimo do uso da força.1 Seu conceito exige esclarecimentos sobre o uso restrito que se deve fazer do termo inteligência, atividade vinculada a certos tipos de informações relacionadas a essas esferas, às atividades desempenhadas no sentido de obtê-las ou impedir que outros as obtenham, e às organizações responsáveis pela realização e coordenação da atividade na esfera estatal. Fala-se em sistemas/comunidades de inteligência, ao invés de organização de inteligência, devido ao fato de as mesmas terem surgido em etapas distintas, que historicamente foram se especializando.
A atividade de inteligência existe há muito tempo e sua importância é reconhecida desde as guerras napoleônicas. Entretanto, a atividade de inteligência separada organizacionalmente, surgiu apenas a partir da complexificação das guerras no final do século XIX. A partir deste período, a guerra começou a envolver grandes exércitos e grandes territórios, cujas oportunidades de vitória passaram a depender cada vez mais de um rápido comando e de uma grande capacidade de concentração. Para atender a estas novas necessidades, foram criados staffspermanentes nos exércitos e, posteriormente, nas marinhas, responsáveis pelo planejamento e suporte de informações que pudessem auxiliar os comandos nas tomadas de decisão e de controle.2
Paralelamente ao seu desenvolvimento dentro do campo militar, a atividade de inteligência passou também a se especializar como função policial e repressiva. As polícias secretas surgiram no princípio do século XIX e tinham como objetivo evitar revoluções populares, a exemplo da Revolução Francesa. Cada vez mais foram se aperfeiçoando os mecanismos de vigilância, de informação e de interceptação de correspondências.
No século XX, após o fim da 2ª Guerra, o medo de uma nova revolução popular já havia declinado no mundo ocidental, mas o comunismo permaneceu como uma forte ameaça. Em decorrência, emergiram os departamentos criminais de investigação, que começaram a recorrer ao uso das técnicas científicas para os problemas de detecção, apreensão, vigilância e armazenamento de informações sobre "populações criminosas”. O crescimento internacional das organizações de segurança e o medo da espionagem estrangeira ainda levaram os países a desenvolverem suas agências de contra-espionagem.3
Houve, neste processo, uma mudança no status da atividade de inteligência, que passou a se organizar e se institucionalizar, tornando constante o processo de coleta e análise de informações. A partir de meados dos anos 40 firmou-se a crença de que a inteligência seria uma atividade fundamental para o processo de tomada de decisões governamentais. A autonomização da atividade acompanhou, de alguma forma, o processo de racionalização e complexificação estatal ocorrido nas formas de governo do século XX, vinculado à expectativa liberal e ao otimismo cognitivo das Ciências Sociais. A organização do sistema de inteligência passou a fazer parte do planejamento governamental como mais um mecanismo capaz de atribuir racionalidade ao funcionamento do Estado, pois sua organização, enquanto instituição permanente, permitiria uma maior racionalização da ação governamental, afastando-a da conduta ideológica. Segundo Sherman Kent,
(…) intelligence represented rationality, and the statesman who rejected it should recognize that he is turning his back on the two instruments by which western man has, since Aristotle, steadily enlarged his horizons of knowledge – the instruments of reason and scientific method.4
A própria concepção de sistema ou comunidade de inteligência apenas pode ser pensada a partir de meados do século XX, uma vez que até o período entre-guerras, as agências de inteligência ainda pressupunham que o conhecimento sobre as nações estrangeiras deveria ser organizado em segmentos, não como uma totalidade. Faltava ainda a habilidade para tratar de assuntos que escapavam à alçada militar, além de um mecanismo central de avaliação sobre a segurança, efetividade e o potencial das agências de inteligência. Novas estruturas emergiram no decorrer da 2ª Guerra que permitiram a análise integrada de assuntos tais como economia, política, assuntos militares, navais etc. Eram as agências centrais de análise, que procuravam analisar o inimigo como um todo. A introdução da coleta e análise nacional de informações implicou a percepção de que a atividade de inteligência era algo mais do que um conjunto de organizações independentes.
No início da Guerra Fria foram introduzidas duas grandes novidades na atividade de inteligência. Em primeiro lugar, surge a função sistemática de avaliação, com a entrada dos acadêmicos nos assuntos de inteligência. Até então essa atividade era considerada um assunto restrito aos militares ou à polícia. Neste contexto, um tipo diferente de problema foi posto pela URSS. Informações que em outros países eram ostensivamente publicadas, passaram a ser tidas como secretas pelos soviéticos, como era o caso, por exemplo, de sua densidade demográfica e de seu PIB. Na extinta URSS, ou não se publicavam estas informações ou elas eram publicadas de forma distorcida. Os EUA foram um dos países que montaram o extraordinário aparato de análise, envolvendo os melhores experts do país.
Em segundo lugar, o crescimento da atividade de inteligência acompanhou a explosão tecnológica ocorrida no período pós-guerra. Para auxiliar a coleta de informação, surgiram as agências especializadas em sinais, imagens, criptografia, entre outros, que começaram a produzir informações em grande escala e adotaram uma lógica completamente diferente da lógica adotada durante o século XIX.5 Vale ressaltar que este exemplo se aplica muito mais às grandes potências envolvidas no contexto de Guerra Fria e difere-se substancialmente de países menos desenvolvidos.
Quando estas organizações surgiram, com o processo de racionalização e de crescimento dos governos no pós-Segunda Guerra, foram sendo retiradas de dentro da área militar e muitas foram subordinadas ao controle civil. Entretanto, as estruturas de inteligência das Forças Armadas não foram desmanteladas. Havia outros interesses em jogo que diziam respeito principalmente à transferência de técnicas e de recursos envolvidos na manutenção destes órgãos. Concomitantemente à existência das atividades de inteligência dentro da Marinha, Aeronáutica e Exército, a atividade também se inseriu nos ministérios de Defesa, houve uma verticalização dentro do sistema.6 E é justamente devido a essa verticalização que se pode pensar em sistemas/comunidades de inteligência, ao invés de, simplesmente, organizações. Sendo assim, tenham ou não o nome de sistemas de inteligência, quase todos os países têm mais de um órgão envolvido neste tipo de atividade.
Uma vez expostas as estruturas e as especificidades de um sistema de inteligência considerado padrão para o mundo ocidental, buscaremos perceber a construção do Sistema Chileno de Inteligência, atendo, fundamentalmente, às particularidades inerentes à sua construção.

O sistema de informações chileno
A existência de serviços de inteligência civis no Chile é algo relativamente recente, apenas em 1973, logo após a concretização do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, teve início a elaboração do sistema que seria responsável por assegurar a permanência do novo regime e reprimir/exterminar os grupos que poderiam apresentar qualquer tipo de resistência ao regime.7 Para o desempenho de tal tarefa foi criada a Secretaria Nacional de Detenidos/SENDET, que possuía um Departamento de Inteligencia responsável por
(…) fijar las normas por las cuales se realizan los interrogatorios de los detenidos, determinar el grado de peligrosidad de éstos y mantener una coordinación permanente con los servicios de inteligencia de las Fuerzas Armadas, de Carabineros e Investigaciones, con el fin de intercambiar y mantener al día las informaciones de que disponen.8
Com base no argumento de ser esse departamento insuficiente para a tarefa a que se propunha, o general Augusto Pinochet teria estimulado a transformação do Departamento de Inteligencia da SENDET em um organismo autônomo, centralizado, com recursos próprios, com maiores faculdades, e subordinado diretamente ao governo, órgão que se responsabilizaria exclusivamente por organizar e desenvolver a tarefa repressiva naquele país.9
A proposta de criação desse órgão foi relativamente debatida entre os principais condutores do levante, uma vez que carecia de uma entidade jurídica e que poderia acarretar a perda de parcela de poder dos serviços de inteligência militares.10 Embora já atuasse em fins de 1973, a Dirección de Inteligencia Nacional/DINA foi inicialmente implementada sem qualquer norma jurídica que respaldasse sua atuação. O Departamento de Inteligencia seria oficialmente transformado em DINA em janeiro de 1974, sendo que sua constituição formal se produziria apenas em 11 de junho daquele ano.11 O Decreto 521 responsabilizava a DINA por colaborar com o governo chileno de forma imediata e permanente, por proporcionar de forma sistemática e devidamente processada, toda informação requerida, no sentido de adequar suas resoluções no campo da segurança e do desenvolvimento nacional, e por adotar as medidas necessárias ao resguardo da "segurança nacional” e ao desenvolvimento do país.
Dessa forma a DINA, organismo técnico-profissional dependente direto da Junta de Gobierno, tornou-se responsável por coletar e reunir informações provenientes "de los diferentes campos de acción” para auxiliar na produção de toda inteligência requerida para a formulação de políticas destinadas a proteger a segurança do país. Na prática, esse órgão dependeu diretamente do general Augusto Pinochet, pois de acordo com o general Gustavo Leigh, um dos principais articuladores do golpe militar, "nadie de la Junta podía meterse en la DINA”.12 A DINA seria conduzida por Manuel Contreras desde sua criação não oficial em 1973, até sua extinção em 1977. Esse cargo permitiria ao então coronel Contreras solicitar informes e documentos a quaisquer serviços públicos ou empresas e sociedades em que o Estado possuísse representação ou participação.
O Decreto 521 continha três artigos secretos, publicados em um anexo de circulação restrita, cuja divulgação foi promovida posteriormente no exterior. 13 O primeiro deles, o artigo 9º, de acordo com essa versão, autorizaria o seu chefe e os chefes dos Serviços de Inteligência militares a participarem das operações da DINA. O artigo 10 autorizava à agência a realização de buscas, de prisão e transporte de pessoas, assim como a manutenção em cárcere, direito concedido em função "de la declaración de estado de sitio o que pueden otorgarse en las circunstancias de excepción previstas en la Constitución política.” O décimo primeiro artigo, também secreto, assinalava que a DINA seria a sucessora da comissão denominada por essa mesma sigla, Comisión DINA, organizada em novembro de 1973, validando, de fato, todas as ações empreendidas anteriormente pela agência.
Ainda que o conjunto de suas funções supusesse a participação de pessoal civil, a DINA foi organizada sob um regime disciplinar castrense, sendo formada em sua maioria por pessoal das Forças Armadas e de segurança. 14Os altos cargos do órgão sempre se concentraram nas mãos do Exército, com alguma participação de oficiais da Marinha e da Força Aérea. Estima-se que no começo contava com um plantel de cerca de 500 pessoas, tendo atingido a casa dos 9 mil nos momentos de maior atuação.15
Não obstante as funções definidas na legislação, na prática, a DINA se arrogou várias outras. Uma vez instalada, assumiu a responsabilidade pela repressão, até então desenvolvida por vários ramos das Forças Armadas e pelos policiais carabineros (que inclusive continuaram suas operações como a principal força policial do país), e passou a "interrogar”, classificar e separar as pessoas recolhidas nos principais centros de detenção existentes naquele momento.16
Para o cumprimento de suas funções, desenvolveu inúmeras tarefas e programas de apoio, incluindo o controle de registros públicos, o estabelecimento de uma rede de colaboradores dentro dos setores públicos e dos meios de comunicação. Também arrogou-se no direito de aprovar ou vetar a nomeação e a autorização de benefícios estatais, além de se associar com outros serviços de inteligência e segurança no exterior, tais como dos EUA. A DINA possuía um forte vínculo com a CIA - responsável pelo treinamento de muitos de seus membros e por um grande suporte financeiro -, com a Coréia do Sul, Irã, Alemanha, Israel etc.17
Subordinada à DINA funcionava uma série de agrupamentos, unidades, brigadas e departamentos, além de equipes de assessores. Tratava-se de unidades responsáveis por operações ligadas aos serviços de governo; pelo "grampeamento” dos serviços telefônicos e de intervenção em outras formas de comunicação; pelo setor financeiro; pela propaganda ou "guerra psicológica”; além daquelas responsáveis pela repressão propriamente dita. A DINA também possuiria uma Escuela Nacional de Inteligencia, e equipes de assessores compostas por advogados e médicos, além de um sem número de colaboradores, entre eles, pessoas que sob tortura ou outros meios de coerção passaram a colaborar com a agência.18
Algumas ações desencadeadas pela DINA no exterior tiveram uma imensa repercussão internacional. Entre elas, o assassinato do general Carlos Prats e sua esposa, em setembro de 1974 em Buenos Aires,19 a tentativa de assassinato do ex-vice-presidente chileno Bernardo Leighton em outubro de 1975 em Roma20 e, por fim, talvez o de maior impacto entre eles, o assassinato de Orlando Letelier e sua secretária Ronnie Moffit em Washington em 1976.21
O auge das inter-relações entre serviços de inteligência/segurança latino-americanos se concretizaria com a criação do grupo Condor - uma formação multinacional dedicada a operar nos países limítrofes, nos quais assassinavam ou detinham dissidentes que fugiam da repressão em seus países de origem22 -, nome dado também à operação operativo Condor, idealizada para assassinar na capital francesa, no mesmo dia e na mesma hora, opositores das ditaduras instaladas não apenas na Argentina, mas também no Chile e no Uruguai.23 O grupo, cuja primeira reunião realizouse entre os dias 25 de novembro e 01 de dezembro de 1975, contava com representantes da Argentina, do Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, e teria sido planejado pelo coronel Contreras, quem se tornaria o responsável por sua condução.24 Mais do que um conjunto de operações repressivas desencadeadas por esses países, Condor seria uma unidade concreta do Departamento Exterior da DINA.25
A DINA desenvolveu um padrão típico de comportamento que incluía o uso de agentes descaracterizados, recrutados no âmbito das Forças Armadas, mas agindo de forma institucionalizada por fora da estrutura de mando oficial. Mantinha secretamente vários centros de reclusão onde a prática de tortura era a regra e várias medidas eram tomadas para manter o caráter secreto e clandestino desses lugares. Também desenvolveria ações ilícitas no âmbito financeiro, o que incluiria variadas formas de associação com pessoas civis ou jurídicas, o estabelecimento de empresas próprias, a apropriação de veículos e de bens de pessoas detidas, além de contas bancárias espalhadas por vários países.26
Amparada ideologicamente pela Doutrina de Seguridad Nacional (DSN) e "legalmente” pelo Decreto Lei 1.009 de 08 de maio de 1975, que explicitamente lhe facultou capacidades para realizar apreensões, a DINA desencadeou, juntamente com os serviços de inteligência militares, uma guerra dentro do país, que conduziu à repressão e eliminação de determinados setores considerados inimigos do Estado.27
Interessante destacar que, no trabalho A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet, Pablo Policzer constata uma redução dos níveis de violência após o início das operações de repressão pela DINA. De acordo com os estudos realizados, Policzer afirma que houve uma mudança no modus operandi do sistema repressivo que vinha sendo desencadeado pelos militares imediatamente após o golpe. Ao invés de deter uma grande quantidade de supostos "subversivos”, a DINA teria passado a selecionar criteriosamente seus oponentes. Como resultado, o número de pessoas mortas ainda em 1973, que foi em torno de 1800, teria caído para cerca de 400 em 1974, para cerca de 150 em 1975 e 1976, concentrando-se nos componentes do MIR e do Partido Comunista. Anteriormente, os altos níveis de violência impetrados pelos oficiais responsáveis pela repressão no país, seja através da tortura, das execuções sumárias e dos desaparecimentos, atingiram não apenas os "opositores” do regime, categoria que admite a presença de quaisquer representantes dos setores civil e militar do país, como também, membros das Forças Armadas que se recusassem a reproduzir o padrão de conduta estabelecido para a repressão.28
O assassinato do general Letelier em 1976 marcaria o ápice do poder desses "exterminadores”, mas também o início de sua queda.29 Ao confirmar a relação existente entre esse assassinato e a DINA, o governo norte-americano passou a pressionar o general Pinochet a extingui-la e a restaurar o Estado de Direito. Somada às críticas internas de importantes setores de dentro do governo e das Forças Armadas, já desconfortáveis com o poder assumido por Contreras, a pressão norte-americana produziu efeitos.
A atuação da DINA estaria ameaçando a legitimidade que vários setores que apoiaram o golpe procuravam construir, não apenas dentro do país, mas perante a comunidade internacional. O argumento para a extinção da DINA extrapolava a questão dos Direitos Humanos e atingia questões relacionadas à eficiência da agência de inteligência, incapaz de prever possibilidades de guerra entre o país e seus vizinhos, que ameaçariam o regime político vigente.30 Em maio de 1977, os chilenos foram pegos de surpresa pelo anúncio da Argentina, que declarou seu interesse em estabelecer soberania sobre o Canal de Beagle, o que quase conduziu esses países a deflagrarem uma guerra. Situação tensa também foi criada pela Bolívia que, em março de 1978, às vésperas do centenário da Guerra do Pacífico, cortou relações com o Chile, em função da ausência de preocupação desse país em encontrar uma solução para o problema na Bolívia, que havia ficado sem saída para o mar.
A partir do momento em que passou a significar um peso político para a administração de Pinochet, a DINA ficou ameaçada. Mediante o conjunto de pressões internas e externas, o presidente Pinochet cedeu e anunciou, em agosto de 1977, durante a visita do secretário assistente de Estado norte-americano Terence Todman a Santiago, a extinção da DINA e a sua substituição pela Central Nacional de Inteligência/CNI, quem daria prosseguimento às suas atividades, ainda que em escala menor.31
A criação da CNI ocorreu através do Decreto 1.878 de 13 de agosto de 1977. A DINA havia sido extinta pelo Decreto 1.876, de mesma data. Assim como sua predecessora, a CNI possuía faculdades para requerer informações que considerasse necessárias para a manutenção da segurança a "cualquiera servicio del Estado, municipalidades, personas jurídicas creadas por ley o de las empresas o sociedades en que el Estado o sus empresas tengan aportes de capital, representación o participación”.32
A agência foi criada enquanto um organismo militar, como parte integrante do Sistema de Defensa Nacional e, assim como a DINA, continuaria orientada a dar segurança ao governo e ao regime. Para o desempenho de suas funções, contaria com pessoal das Forças Armadas e com pessoal civil.
Ainda que os dois órgãos tenham sido criados com as mesmas funções e atribuições, duas importantes distinções devem ser destacadas: primeiro, como tentativa de demonstrar a preocupação do governo com a legitimidade das ações desenvolvidas pela agência, ficou estabelecido que a CNI, ao contrário da DINA, que agia com muito mais liberdade, apenas poderia deter pessoas a partir de uma ordem judicial. Segundo, a DINA havia funcionado como órgão autônomo, separado da hierarquia militar e diretamente subordinado à Junta de Gobierno. No caso da CNI, foi estabelecido algum tipo de controle, ao colocá-la sob a jurisdição do Ministerio de Defensa e ao determinar que o vínculo com o Comando Supremo dar-se-ia através do Ministerio del Interior.
Em princípio, a CNI foi conduzida pelo próprio Manuel Contreras, naquele momento já promovido a general, mas que pouco tempo depois seria substituído pelo general Odlanier Mena, quem permaneceria no cargo até 1980 e imprimiria uma maior presença pública da CNI junto à sociedade chilena. De acordo com dados da Vicaría de la Solidariedad, o número de pessoas mortas durante a administração de Mena foi drasticamente reduzido e os desaparecimentos ocorridos durante aquele período pouco provavelmente estariam vinculados à CNI.33
Entretanto, a reativação do Movimiento de Izquierda Revolucionária/MIR, propiciada pelo regresso de seus membros do exílio, e a criação do grupo paramilitar Frente Patriótico Manuel Rodríguez/FPMR, braço armado doPartido Comunista que renegou seus princípios pacifistas, decretando que todas as formas de resistência contra a ditadura seriam legítimas, "inclusive a violência”,34 causou uma reviravolta na condução da CNI.
Quando Pinochet condicionou a realização de prisões pela CNI ao uso de mandatos judiciais e vinculou-a diretamente ao Ministerio del Interior, isso realmente implicou um determinado grau de garantia aos cidadãos chilenos, que passaram a ter um maior conhecimento dos canais de informações, assim como inibiu o desenvolvimento de ações clandestinas. Entretanto, o governo reagiu rápido e implacavelmente às ações reiniciadas pelo MIR e pela FPMR.35 Sua primeira ação foi nomear o general "linha dura” Humberto Gordon em substituição ao general Mena, que havia conduzido a CNI de maneira menos drástica que Contreras. Os assassinatos realizados pelo MIR possibilitaram à CNI burlar o decreto de sua criação, ao recorrer ao artigo 1o do Decreto Lei 1.009, aquele de maio de 1975, que reconhecia publicamente, pela primeira vez, a faculdade da DINA de "detener preventivamente a las personas a quienes se presuma fundamentalmente culpables de poner en peligro la seguridad del Estado” em casos de emergência ou sob o regime de estado de sítio. A partir de então a CNI aumentou suas ações repressivas. Egressos da DINA reapareceram e a CNI realizou milhares de detenções, as quais resultavam, em sua maioria, em torturas. Assim como a DINA, também possuiu vários centros clandestinos de detenção, interrogatórios e tortura. Há quem afirme que em termos de infra-estrutura, a CNI ainda teria sido maior do que a DINA.36 Daí a afirmativa de que a CNI daria prosseguimento às ações desencadeadas pela DINA, ainda que os níveis de repressão fossem menores.
Sem dúvida, a CNI aprendeu com erros da DINA. Atuando em um contexto político diverso dessa, recorrendo amplamente ao recurso da "negação plausível”, ao devolver os corpos de prisioneiros mortos a seus familiares - que "coincidentemente” teriam sido mortos, em sua maioria, em função de "choques” ocorridos entre os próprios prisioneiros -, deixou um rastro de ódio menor que o de sua antecessora, se é que é possível graduar esse tipo de sentimento.
A discussão sobre a extinção da CNI iniciou-se ainda em 1989, o que ocorreu oficialmente em 22 de fevereiro de 1990, pouco antes da transferência da administração do governo militar para o governo civil. Os militares que trabalharam na Central foram enviados para a reserva, sendo que o Exército foi a única força a reincorporar seu pessoal. Inclusive, seria também o responsável por custodiar seus arquivos.
Em relação às forças singulares, além das seções responsáveis pela inteligência militar propriamente dita, existiam/existem órgãos de inteligência com capacidade operativa dentro dos três ramos das Forças Armadas, doMinisterio de Defensa e dos Carabineros.
Os primeiros indícios da elaboração de um órgão de inteligência militar chileno são encontrados no Exército, a partir da criação, em 1901, do Departamento de Reconocimiento e Informaciones, transformado em 1964 naDirección de Inteligencia del Ejército /DINE. Seria composto basicamente por militares da ativa, com algumas exceções para oficiais da reserva e civis.37 O Exército também contou com o Servicio de Inteligencia Militar/SIM, que desempenhou um importante papel na perseguição dos militantes e simpatizantes dos partidos vinculados àUnidad Popular (UP) e seus mais importantes dirigentes, imediatamente após o golpe de 1973. Aliás, afirmase que esse órgão teria tipo um papel destacado na própria elaboração do golpe.38 De acordo com o Informe del Experto sobre la cuestión de la suerte de las personas desaparecidas o cuyo paradero se desconoce en Chile, naquele momento o SIM seria o serviço de inteligência mais desenvolvido das Forças Armadas.39 O SIM teria sua ação reduzida após a criação da DINA, para quem seria transferida boa parte de seus efetivos. Até meados de 1974 seguiu como o principal serviço de inteligência chileno a atuar nas províncias, e após esse período passaria a atuar em estreita cooperação com a DINA. Responsável pela repressão no interior do país, detinha pessoas, as interrogava e posteriormente as enviava para Santiago, para que ficassem a cargo da DINA.40
Em relação à Armada, o Departamento de Inteligencia Naval/DIN foi criado em 1965, através de seu Estado Mayor General.41 Em 1968 se transformaria em Serviço de Inteligencia Naval/SIN, nome pelo qual se tornaria extremamente famoso durante o governo Pinochet, mesmo tendo seu nome novamente alterado para Dirección de Inteligencia de la Armada/DIRINTA, em 1986.
Servicio de Inteligencia de la Fuerza Aérea/SIFA foi criado em 1976. Distribuído em todo o país, seria responsável por processar toda informação sensível à sua área de competência.42 Subordinado à Dirección de Operaciones del Estado Mayor de la Fuerza Aérea, o SIFA receberia freqüentemente instruções diretas do comando em chefe. Além de desenvolver as tarefas profissionais vinculadas tradicionalmente à inteligência militar, também possuiria um grupo de operações responsável pela repressão política. Teve como principal QG a Academia de Fuerza Aérea e seria integrado inicialmente por oficiais, suboficiais, soldados e conscritos da Fuerza Aérea Chilena (FACH) e por membros da Policia de Investigaciones. Para auxiliálo no desenvolvimento de suas funções, a FACH ainda contrataria civis, a maioria deles membros de grupos nacionalistas ou de extrema direita, tais comoMovimiento Patria y Liberdad, que passariam a atuar como agentes do SIFA.43
Em meados de 1974 o SIFA se destacaria, paralelamente à DINA, como um dos serviços de informações de maior atuação dentro do sistema repressivo. Paralelamente, porque naquele momento prevalecia uma extrema rivalidade entre esses órgãos, resultado principalmente do acordo que o SIFA tentou estabelecer com líderes do MIR em julho daquele ano. O SIFA, utilizando-se de intermediários, havia proposto ao MIR libertar os membros do organismo detidos em seu poder e, em troca, seus líderes teriam que abandonar o país e garantir que não desencadeariam outras ações no prazo de três anos, além de entregar suas armas.44
A não aceitação do acordo por parte do MIR teve como consequência uma perseguição desenfreada a seus membros, os quais se tornariam as principais vítimas do SIFA. Entretanto, após o fracasso das negociações entre o SIFA e o MIR, a DINA teria se proposto a realizar, com exclusividade, o desmantelamento da organização, colidindo de frente com os interesses do SIFA. Teriam sido freqüentes as disputas dos dois órgãos pela detenção de importantes membros desse movimento, acarretando, várias vezes, buscas simultâneas ou sucessivas na casa de uma mesma pessoa.45
Posteriormente transformada em Dirección de Inteligencia de la Fuerza Aérea/DIFA, teria desenvolvido uma atuação repressiva ainda maior. Aliás, a transformação de SIFA em DIFA no ano de 1975 visava justamente ampliar a capacidade da FACH em relação ao seu sistema de informações, à sua capacidade de detectar possíveis infiltrações, além de atuar com mais eficácia na neutralização do inimigo interno, dessa vez enfatizando a repressão aos membros do Partido Comunista.46
Além desses órgãos diretamente vinculados aos três ramos das Forças Armadas, para assimilar de uma maneira mais completa a atuação da comunidade de inteligência chilena durante o regime militar, também devemos conhecer os órgãos de informações criados por Carabineros durante o regime militar, que atuariam em estreita parceria com a DINA.
Imediatamente após o golpe de 1973, a força policial Carabineros foi declarada pela Junta de Gobierno como instituição militar de status equivalente ao das Forças Armadas e colocada sob a jurisdição do Ministerio de Defensa. Com poderes maiores do que quando se encontrava subordinado ao Ministerio del Interior, Carabineroscriou o Servicio de Inteligencia de Carabineros/SICAR, em substituição à Comisión Civil de Carabineros. Já em 1974 esse serviço seria substituído pela Dirección de Inteligencia de Carabineros/DICAR, mas várias de suas funções desenvolvidas no interior do país permaneceriam funcionando sob a chancela do SICAR, dificultando a delimitação temporal de atuação desse órgão.
Tanto no caso do SICAR como do DICAR, o diretor dependia diretamente da direção geral da instituição. Além de um diretor, contava com um subdiretor, sob os quais estariam subordinados cinco departamentos, responsáveis pelas funções de inteligência, contra-inteligência, análise de informações e proteção a determinados serviços públicos.47
No princípio, seguindo a linha estabelecida pelos militares, o órgão responsável pela tarefa de inteligência deveria identificar e reprimir os membros do próprio corpo da instituição que tivessem respaldado o governo anterior. Depois, a partir da implementação da DINA, esses órgãos passariam a atuar em estreita colaboração. Apesar da ausência de um vínculo explícito/ oficial, o DICAR destinou, em 1974, parte de seus membros para a DINA. Carabineros se tornaria o principal responsável pela vigilância dos locais de detenção e tortura sob responsabilidade da Dirección, além de realizar detenções, interrogatórios e torturas.48 Mesmo os policiaiscarabineros que não trabalhavam vinculados à DINA, a ela disponibilizavam todas as pessoas que haviam detido por razões políticas. Essa comunicação seria realizada através da Central de Radiopatrullas de Carabineros, que mantinha uma frequência de rádio secreta com a DINA. Dessa forma, não havia nenhum registro formal de que a pessoa teria sido presa e muito menos que teria sido transferida para as mãos da DINA.49
A ausência de legislação, seja secreta ou pública, ou talvez a ausência de acesso sobre informações oficiais relacionadas aos organismos chilenos não nos permite definir com precisão muitas datas de criação, extinção, funções e responsabilidades, importantes referências para o desenho institucional do sistema, deixando-nos como única alternativa confiar na veracidade das informações produzidas pelos principais organismos de Direitos Humanos chilenos, que desenvolveram um seríssimo e importante trabalho ainda durante o período ditatorial, e nos parcos trabalhos que abordam esses órgãos pela perspectiva institucional.
Entretanto, às vezes os dados encontrados sobre determinados órgãos não são coincidentes, obrigando-nos a trabalhar com um grau de incerteza ainda maior, como é o caso da criação da Dirección de Comunicações de Carabineros/DICOMCAR, órgão responsável pela inteligência dos Carabineros em substituição à DICAR.
DICOMCAR teria sido criada ou em 198150 ou 1983,51 com a responsabilidade de liderar ataques contra-insurgentes durante um período marcado pelo crescimento da resistência aberta ao regime. Responsável por vários crimes políticos que causaram grande comoção pública, foi substituída pelo Departamento de Asuntos Internos/DAI em 1985.
A DICOMCAR se tornaria tristemente conhecida em função do sequestro e degolamento de três membros do Partido Comunista em março de 1985, importantes colaboradores da Vicaría de la Solidaried. A deplorável atuação da DICOMCAR acarretaria graves prejuízos não apenas para a instituição Carabineros, mas para o próprio governo militar. A reação desencadeada pela sociedade e por vários setores políticos obrigou o governo a tomar uma postura decisiva em relação ao caso. Os oficiais suspeitos pelo crime foram levados a julgamento e a própria CNI auxiliou a justiça a condenar os policiais carabineros envolvidos. Nessa ocasião a DICOMCAR seria rebaixada a departamento, sendo transformada em Departamento de Asuntos Internos, vinculado à Dirección de Orden y Seguridad de Carabineros de Chile.
A relação que os carabineros tiveram com a CNI foram bem distintas das estabelecidas com a DINA, talvez em função das posturas assumidas pelo general Mena assim que se tornou o responsável por sua direção. Apesar dos indícios de colaboração, várias foram as vezes em que houve conflito sobre a forma com que deveriam ocorrer.52O relatório detalhadamente produzido pela CNI foi peça fundamental na identificação dos criminosos e condenação dos policiais carabineros. Tal condenação provocou a renúncia de todo o alto comando da instituição, forma de protesto ao resultado do julgamento encontrada pelos oficiais, que sustentavam que oscarabineros não estavam envolvidos e que a justiça e o CNI teriam se precipitado. Ocorrido em um momento completamente inoportuno para o governo, que vislumbrava a possibilidade de reforçar os graus de "legitimidade” de seu poder através do plebiscito imposto pela Constituição de 1980, que ocorreria dentro de três anos, o caso pode ter funcionado como o fiel da balança, quando o governo perdeu o plebiscito por uma mínima margem de diferença de votos.
Na área de inteligência/segurança militar, ainda haveria no Chile dois agrupamentos compostos por oficiais de diferentes ramos das Forças Armadas, um com atuação concentrada na província de Concepción e outro em Santiago.
Em Concepción, região na qual teve origem o MIR, o Servicio de Inteligencia Regional/SIRE assumiria o controle da região com a responsabilidade de perseguir membros do principal grupo guerrilheiro do país.53 Integrado por membros da Armada, do Exército, de Carabineros e do Servicio de Investigaciones, o SIRE provavelmente se encontraria organicamente vinculado à estrutura de mando da DINA e seria o responsável por manter prisioneiros em distintos lugares e pela tortura e morte de várias pessoas nessa região.54
No caso de Santiago, cremos que serão necessárias mais do que essas meras sete linhas para falar do segundo grupo que mesclava membros dos vários ramos castrenses. Tratava-se do Comando Conjunto/CC, uma coordenação de inteligência e repressão política que concentraria suas atividades em Santiago e que seria integrado por representantes de quase todo o sistema repressivo chileno, à exceção da DINA.
Não constatamos consenso em torno do tempo exato em que o CC teria funcionado, mas podemos afirmar que teria atuado, pelo menos, entre os anos de 1975 e 1977. Por ainda existir pouca clareza em relação às operações desencadeadas por essa "entidade”, várias também foram as hipóteses elaboradas sobre sua criação e funcionamento, entre as quais destacamos pelo menos duas.
A raiz da criação do CC se localizaria, para alguns, na relação estabelecida entre o SIN e a SIFA/DIFA, na qual aFuerza Aérea solicitaria a ajuda da Armada para reprimir o MIR. Essa demanda se daria em função da existência de um banco de dados produzido pelo SIN, antes mesmo do golpe, para identificar grupos de apoio à UP [a existência desses arquivos é corroborada pelos dados anteriormente apresentados sobre a criação do SIN]. Essa cooperação teria criado um fluido intercâmbio de informações entre os militares, que resultaria na formação do CC, "grupo repressivo que salió a luz pública en 1975”.55
A explicação mais plausível para a articulação do CC, fornecida pelo Informe Retting,56 seria o receio em relação ao acúmulo de poder nas mãos do coronel Contreras e da DINA. Seu rápido crescimento, o amplo raio de ação que atingia, e a opacidade e impermeabilidade a qualquer tipo de controle teriam provocado temores entre oficiais e membros dos vários outros setores de inteligência. Temores que aumentariam após a ordem confidencial escrita pessoalmente por Pinochet e disseminada para os comandos-em-chefe através dos ministérios do Interior eDefensa, determinando que a detenção de todas as pessoas que atentassem contra a ordem política instaurada seria de exclusiva responsabilidade da DINA. A obrigação de conduzir membros de suas próprias fileiras, detidos por suspeita de colaboração ou pertencimento a movimentos de esquerda, significava uma intervenção direta da DINA dentro de cada uma das hierarquias. Nessa perspectiva, a manutenção das operações de busca, com uma evidente participação de membros civis nacionalistas de ultra-direita (Movimiento Patria y Liberdad), e a conseqüente recusa da Fuerza Aérea, através da DIFA, em obedecer essa ordem, implicaria a existência do CC, agrupamento que seria reforçado no fim de 1975 através da colaboração de membros das outras forças, mantendo-se a predominância da FACH.57
Organizado sem uma formalização institucional, o CC atuou de forma completamente clandestina. A sua existência apenas seria revelada em 1984, mediante a confissão de um de seus ex-agentes, o cabo da FACH, Andrés Valenzuela Morales.58
De acordo com os dados apresentados pelo GOBIERNO DE CHILE, o CC não teria sido organizado com o objetivo de eliminar o MIR, mas sim os membros do Partido e da Juventude Comunista. Para cumprir com seus objetivos, um de seus chefes, provavelmente oriundo da FACH, teria ordenado a obtenção de informações sobre o Partido Comunista na área sul de Santiago, a qual, militarmente, encontraria sob sua responsabilidade.
Direcionados para a repressão política, os serviços de informações/ inteligência militares chilenos foram igualmente acusados de serem incapazes de atender à função de dotar o Estado de informações capazes de preveni-lo diante de surpresas desagradáveis, mesmo no âmbito interno. Foram incapazes de prever o movimento guerrilheiroMontaña de Neltume [composto por uma frente de sobreviventes do MIR], ocorrido durante os anos 80; o atentado contra o general Pinochet en 1986; a derrota no plebiscito presidencial de 1988 e de identificar o esconderijo de armas da FPMR, em Carrizal Bajo [para onde estavam sendo destinadas 80 toneladas de armas e munições que vinham sendo enviadas pelo governo cubano via Nicarágua].

Conclusão
Considerando as questões acima expostas, podemos afirmar que, no caso chileno, a construção da chamada "comunidade de informações” reflete, fundamentalmente, apenas uma das duas etapas que acarretaram na composição dos sistemas de inteligência tipo ocidental, ou seja, reflete muito mais o desenvolvimento do aparato policial repressivo do que as funções dos chamados intelligence services propriamente ditos, que se emanciparam do fazer a guerra e são responsáveis pela coleta, processamento e disseminação de informações relevantes para a defesa estratégica do país.
De uma forma resumida podemos destacar cinco pontos que caracterizam esse processo inicial de construção do sistema de inteligência no Chile:
Primeiro, a ênfase na segurança interna. A formação do sistema, incluindo as agências civis, sucedeu o golpe militar de 1973 e respondeu à necessidade de assegurar a instalação e a manutenção do poder militar. No caso dos serviços civis de informações, foram criados juntamente com o regime militar e agiram com altíssimos graus de violência. Houve uma institucionalização das formas de repressão desenvolvidas de forma clandestina e que incluíam todo tipo de violação aos direitos civis e humanos.
Segundo: forte apoio de setores da sociedade civil no exercício da repressão, expresso nas colaborações dos vários grupos civis radicais de extrema direita.
Terceiro, uma rede de organismos dotados de meios próprios de coleta de informações, com altos graus de autonomia e que competiam, várias vezes, entre si. A rivalidade entre grupos de agências [DINA/Carabineros XArmada e Fuerza Aérea] ficaria explícita na formação do Comando Conjunto.
Quarto, total ausência de controle. Na agência "civil” houve grande concentração de poder nas mãos do coronel Contreras, quem respondia unicamente a Pinochet, excluindo a necessidade de se reportar aos outros membros da Junta.
Quinto, a limitada eficácia do sistema para servir às necessidades da defesa nacional e à segurança interna. Os serviços de inteligência militares, principais responsáveis pela inteligência externa, assim como os órgãos civis, estavam unicamente preocupados com a perseguição aos opositores políticos do regime.




* Autora convidada.
1 ANTUNES, Priscila. Argentina, Brasil e Chile e o desafio da reconstrução das agências nacionais civis de inteligência no contexto de democratização. Campinas: Universidade Estadual de Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005, p.17. (Tese. Doutorado)         [ Links ]
2 RICHELSON, Jeffrey T. A century of spies. Intelligence in the Twentieth Century. New York: New York Press, 1995, p.3-18.         [ Links ]
3 RICHELSON, Jeffrey T. A century of spies, p.47-64.         [ Links ]
4 KENT, Sherman. Strategic Intelligence for American World Policy. Princeton: Princeton Press, 1949, p.5.         [ Links ]
5 RICHELSON, Jeffrey T. A century of spies, p.103-214.         [ Links ]
6 RICHELSON, Jeffrey T. A century of spies, p.215-243.         [ Links ]
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9 GUZMÁN, Nancy. La CIA instruyó a la DINA.         [ Links ]
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11 Decreto N o 521 de 11 de junho de 1974.         [ Links ]
12 Declarações do general Gustavo Leigh Guzmán, ex-membro da Junta de Gobierno. Apud: AZOCAR, Pablo.Pinochet, epitafio para un tirano. Santiago: Ed. Cuarto Propio, 1999, p.26.         [ Links ]
13 HUMAN RIGHTS IN CHILE. DDHH bajo la dictadura. The legacy. 02 de agosto de 2006.www.chipsites.com/derechos/ dictadura_autores_2_esp.html (Acessado em 10 de julho de 2007).         [ Links ]
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16 POLICZER, Pablo. A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.12, n.22, p.10, 1998.         [ Links ]
17 GOBIERNO DE CHILE. Informe Retting; GUZMÁN, Nancy. La CIA instruyó a la DINA.         [ Links ]
18 GOBIERNO DE CHILE. Informe Retting.
19 O general Carlos Prats havia sido comandante-em-chefe do Exército chileno durante o governo de Salvador Allende e havia esboçado uma forte reação à possibilidade de um golpe militar.
20 Bernardo Leighton foi vice do presidente Eduardo Frei entre 1964 e 1970 e foi uma importante voz da oposição ao regime chileno.
21 Orlando Letelier, chanceler chileno, havia sido Ministro dos Negócios Exteriores na gestão do presidente Salvador Allende. Juntamente com sua secretária, foi vítima de um atentado à bomba, colocada em seu carro, a mando dos generais Manuel Contreras e Augusto Pinochet.
22 Interessante destacar que essa aliança político-militar realizada nestes países não se constituiu em um obstáculo para que as operações de espionagem entre esses países existissem. Em 1978, não fosse a intervenção do Cardeal Samoré, representante do Vaticano, a probabilidade de um conflito armado entre o Chile e a Argentina pela disputa do Canal de Beagle seria grande.
23 Essa operação fracassou. Tinha como objetivo assassinar Rodolfo Matarrollo, um dos ex-dirigentes do Partido Revolucionario de los Trabajadores/PRT, que havia conseguido escapar da Argentina e se exilar na França; por parte do Uruguai, o ex-senador Enrique Erros e, por parte do Chile, a filha de Salvador Allende, Isabel Allende.
24 Um dos convites enviados por Contreras para essa reunião foi encontrado no Departamento de Policía de Assunção, sendo descoberto em 1992.
25 GOBIERNO DE CHILE. Informe Retting. Maiores informações sobre o Condor ver: QUADRAT, Samantha Viz. O Brasil sob a asa sombria do Condor. In: MARTINS FILHO, João Roberto. (org.) O Golpe de 1964 e o Regime Militar. 1ª.ed. São Carlos: EdUFSCAR, 2006, p.161-181.         [ Links ]
26 GOBIERNO DE CHILE. Informe Retting.
27 Até 2005, o general da reserva, Manuel Contreras, já havia sido processado e condenado pelo desaparecimento de 200 pessoas e responsabilizado pela tortura de cerca de 7.000 chilenos [La Cia instruyó a la DINA, depoimento dado por Manuel Contreras à revista colombiana La Semana, s/d].
28 POLICZER, Pablo. A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet , p.7-10. A operação que acarretava o transporte de oficiais pelo país para impor a adequação aos padrões disseminados, responsável pela execução sumária de várias pessoas, seria posteriormente conhecida como Carabana de la Muerte.         [ Links ]
29 POLICZER, Pablo. A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet, p.11.         [ Links ]
30 POLICZER, Pablo. A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet, p.16.         [ Links ]
31 Decreto Lei 1.876, de 13 de agosto de 1977.         [ Links ]
32 Decreto 1.878 de 13 de agosto de 1977.         [ Links ]
33 A Vicaría de la Solidariedad foi a sucessora do Comité Ecuménico de Cooperación para la Paz en Chile/COPACHI, atuou inicialmente como um centro de amparo aos familiares das vítimas da repressão e, posteriormente, como o principal órgão a fornecer amparo legal e social aos prisioneiros políticos e trabalhadores desempregados em função de questões políticas. Responsável pela produção de inesgotável acervo de informações sobre detidos e desaparecidos no Chile, foi extinta em 31 de dezembro de 1992 por decisão do Episcopado chileno. Mais informações sobre a Vicaría ver: CRUZ, María Angélica. Iglesia, represión y memoria. El caso chileno. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 2004.         [ Links ]
34 POLICZER, Pablo. A Polícia e a Política de Informações no Chile durante o governo Pinochet, p.17.         [ Links ]
35 O assassinato do coronel Roger Vergara, diretor da Escuela de Inteligencia del Ejército, ocorrido em 15 de julho de 1980 e que marcaria o reinicio das ações do MIR, também teve como consequência a criação doComando de Vengadores de Martires/COVEMA, grupo formado pelo pessoal do "Servicio de Investigaciones” e pelos Carabineros.
36 GARCÍA, Julio Oliva. Comando Conjunto. el terrorismo desde la FACH. Memória y Justicia. Los procesos en contra de Augusto Pinochet en Chile. 2002. http://www.memoriayjusticia.cl/espanol/sp_redes-comando.html. (Acessado em 23 de abril de 2005).         [ Links ]
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