domingo, 27 de julho de 2014

1968: o curto ano de todos os desejos



1968: the short year of all desires


Daniel Aarão Reis Filho
Professor de História Contemporânea na UFF. Ex-combatente de 1968, mas não ainda de todo desativado



RESUMO
Como numa peça de teatro, o artigo apresenta os atores que estiveram em cena no ano de 1968, com suas propostas, ambições, ilusões e limites. Há, em primeiro lugar, uma interpretação polêmica do processo da ditadura militar no país, destacando-se a necessidade do estudo de seus nexos e laços com a sociedade brasileira, ao contrário das tendências correntes que insistem em mostrar seu isolamento, como se tivesse existido apenas graças à repressão. Em segundo lugar, discute-se a autonomia entre o movimento estudantil e as organizações revolucionárias que recorreram às ações armadas. Finalmente, em terceiro lugar, são apresentadas algumas referências críticas para o estudo da trajetória das esquerdas no Brasil. O texto sustenta que o ano de 1968, embora pleno de desejou, não só terminou, como foi curto.
Palavras-chave: movimento estudantil, revolução, esquerdas, ditadura.

ABSTRACT
As in a role play, this articles presents the actors who took part in the play in 1968 and their aims, ambitions, iluuions and limits as well. First of all, there is a polemic interpretation of the militar and dictatorial process in this country, in which is highlighted the necessity of a study of its conexions to the Brazilian society. This is a contrary study if compared to the contemporary trend which insist on showing its isolation as if it had only existed due to the political repression. Next, it is discussed the authonomy between the studant's movement and the revolutionary organizations who made use of weapons. Finally, some critical references are shown in order to provide information for a study of the left parties in Brazil. This text supports the idea that not only was short the year of 1968 but it is also finished, even though it was fullfilled with desire.
Keywords: student 's movement, revolution, left party, dictatorship.



Observemos o cenário, enquanto os atores se preparam para entrar em cena.
O país experimentava o quarto ano de ditadura, ainda na dúvida se tudo começara em 31 de março, data defendida pelas comemorações oficiais, ou se em 1° de abril, preferida pelos derrotados, que, sem armas, recorriam à arma da ironia para vexar a força então incontrastável dos vencedores.
Uma ditadura marcada por ambigüidades.
De um lado, a capacidade típica dos regimes ditatoriais: de prender e de arrebentar, como muito mais tarde, em arroubo antológico, diria um dos generais-presidentes. E também de fechar instituições - parlamentos e partidos -, ou de recriá-las - novos partidos. A fúria legislativa não se limitou a alterar leis e legislações - ampliando a duração de mandatos, definindo e redefinindo colégios eleitorais, elegibilidades e inelegibilidades. Chegou mesmo a plasmar uma nova Constituição, a de 1967, aprovada a toque de caixa e de clarins - com os tanques de prontidão, sempre ao sabor de acontecimentos e segundo interesses imediatos - o chamado casuísmo. E o poder de caçar e de cassar adversários e inimigos presumidos ou declarados. E de torturar, conforme denúncias que já começavam a espoucar desde 1965-1966.
A catadura feia das ditaduras.
De outro lado, a incapacidade de elaborar um discurso coerente alternativo à democracia, como souberam fazer com tanta consistência, no período entre as guerras mundiais, nazistas, fascistas e corporativistas, que não se constrangiam em desafiar abertamente os cânones estabelecidos e considerados sagrados pela tradições democráticas defendidas, cada qual, a seu modo, por socialistas e liberais.
Uma estranha fraqueza, a das ditaduras que não conseguem se assumir, que formalmente prestam reverência a valores que violentam na prática, e se curvam a princípios que desrespeitam, e se fazem conhecer por práticas que desconhecem.
Qual o significado desta sucessão de paradoxos? Distorções próprias de um país tipicamente tropical? Onde faz parte das tradições a inversão dos signos e dos conceitos criados em outras latitudes? Produzindo uma incompatibilidade esquizofrênica entre teoria e prática, entre discurso e ação?
Nada disso. Na verdade, ao contrário do que pensavam os antigos, aqui os elefantes decididamente não voam. As contradições da ditadura não residiam em nenhuma confusão mental, mas se radicavam nas realidades bem palpáveis do caráter heterogêneo da ampla frente de forças que derrubara o regime presidido por João Goulart.
Ali se reuniram a espada, a cruz, a propriedade e o dinheiro. E o medo, um medo muito grande, de que gentes indistintas pudessem cobrar força e virar o país e a sociedade de ponta-cabeça. Se a hipótese tinha base na realidade ou não, é uma outra questão. O fato é que o medo a tomava como provável, como iminente. Era preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa, para colocar aquelas gentes nos lugares que eram os seus, dos quais nunca deveriam ter saído e para os quais haveriam de voltar.
Em torno deste medo agruparam-se massas consideráveis que desfilaram cantando hinos patrióticos e religiosos, clamando pela proteção de Deus e da Família, e pela preservação da sua liberdade, que consideravam ameaçada.
Havia ali propostas de todo o tipo. Num extremo, os grupos duros e (im) puros, sinceros, porém radicais, como alguém, eufemisticamente, os chamaria mais tarde. Constituíram importante tropa de choque, mas como programa, desejavam apenas deter a história, em suma, reacionários, no sentido próprio da palavra. No outro pólo, grupos de estado-maior, comprometidos com políticas de modernização do país, cuja proposta era a de fazer o capitalismo brasileiro dar um salto para a frente, a ferro e fogo, se fosse o caso, mas dosando - o ferro e o fogo - na exata medida das necessidades. Propostas tão diferentes implicavam metodologias diferenciadas: uns só pensavam em reprimir a todos que se opusessem, outros inclinavam-se por propósitos mais seletivos, nem por isso menos impiedosos.
No miolo, entre os extremos, todo o tipo de nuanças: dos partidários de uma intervenção cirúrgica, mas rápida, com a volta, tão cedo quanto possível, ao status quo ante, desde que, naturalmente, a baderna houvesse sido controlada, e a canalha posta no seu lugar. Aos que sentiam prazer em não ver a luz no fim do túnel. Como os ratos, gostavam da escuridão e do terror, e do terror da escuridão. Para estes, de preferência, a exceção deveria tornar-se norma.
Assim formou-se uma frente, contraditória, heterogênea.
Foi o seu movimento, uma convergência objetiva de forças políticas e sociais - embora não faltassem, como é comum nestas situações, grupos e instituições com pretensões à superconsciência da história - e não um golpe,no estilo tradicional dos pronunciamientos latino-americanos, que derrubou Goulart. E o primeiro equívoco que os adversários cometeram foi não reconhecê-lo como tal. Imaginaram-no monolítico - quando era diverso - e simplesmente reacionário - gorila (nunca uma metáfora pudera ser tão infeliz) - quando tinha dentro de si perversas propostas de modernização acelerada - e conservadora.
Estas realidades contraditórias, embora não reconhecidas pelas forças de oposição, que, paradoxalmente, poderiam delas tirar o maior proveito, é que explicam as hesitações da ditadura. E constituem um cenário de brechas, por onde penetrarão as forças do questionamento, da reivindicação, da denúncia, da reforma e da revolução.
Montado o cenário, e já considerado o ator mais forte, a ditadura, que entrem os demais atores.
Em primeiro lugar, por uma razão que se tornará clara dentre em pouco, um ator secundário neste ano de 1968: os trabalhadores.
A ditadura foi, para eles, um desastre.
As organizações sindicais e políticas que lhes pertenciam ou/e que mereciam sua confiança, dissolvidas. As lideranças que respeitavam, em fuga, já no exílio, ou presas, em qualquer caso, neutralizadas. Um longo processo de aprendizado, subitamente negado. Não mais teriam direito àquelas lutas sindicais por reajustes salariais, ritmadas pelos dissídios coletivos, arbitradas pela Justiça do Trabalho. E às campanhas, às greves e às mobilizações, às vezes nem tão pacíficas, reprimidas, mas também freqüentemente toleradas ou mesmo, não raro, discretamente auxiliadas pelos governos. No futuro, não mais a corte dos políticos, as barganhas com os governos, as portas dos palácios e ministérios abertas, acolhedoras. O jogo familiar das concessões em troca de apoios, das verbas por votos.
Agora, prisões e perseguições. E uma nova legislação, restritiva, excludente: lei de greve (contra a greve), lei do arrocho salarial, revogação da estabilidade, anulação do poder normativo da Justiça do Trabalho, exclusão da gestão de verdadeiras cornucópias, como a Previdência Social.
O céu desabava na cabeça dos trabalhadores. O Estado, até então generoso e protetor, transformara-se em algoz. O pai, em carrasco. Embaralhamento e crise de referências.
Não foi possível resistir com eficiência. Os padrões de organização e luta, de lideranças e de discurso, não haviam preparado os trabalhadores para situações de enfrentamento. Reagiram à instauração da ditadura com a arma tradicional - a greve. O êxito dela foi um fracasso, pois esvaziou as cidades, paralisando as pessoas em casa e facilitando as manobras dos tanques.
A rearticulação foi difícil, penosa, molecular. Emergiu, afinal, tentando preservar as heranças tradicionais, o Movimento Inter-sindical Anti-arrocho, o MIA. Como se as lideranças não se dessem conta da eufonia da sigla - tristemente simbólica. Os trabalhadores apenas miavam sob o peso de uma derrota histórica.
Foi então que, de surpresa, em 1968, justamente, surgiu um movimento alternativo. Em Contagem e Osasco, protagonizou greves. No dia 1° de maio, em São Paulo, tomou e queimou o palanque das autoridades, onde se encontrava o governador Abreu Sodré, nomeado pela ditadura.
As forças mais radicais viram naquilo o anúncio de uma nova fase do movimento dos trabalhadores, sobretudo porque surgiam ali algumas características inovadoras: ao lado dos sindicatos, organizações por locais de trabalho. Uma coordenação clandestina. Lideranças jovens, sem nenhum vínculo com os partidos políticos tradicionais e com o Estado.
Para muitos, Osasco e Contagem tornaram-se palavras mágicas, anunciando enfrentamentos apocalípticos. Algumas assembléias estudantis chegaram a ouvir, eletrizadas, lideranças operárias solicitando apoio. Promoveram-se vendas de bônus, distribuição de panfletos em fábricas e pontos de ônibus, passeatas de solidariedade.
Mas a ditadura foi inflexível e destruiu com rapidez o movimento, no nascedouro. Criminalizou a luta sindical, decretou a ilegalidade das greves, anunciou o não pagamento dos dias parados, ameaçou com demissões maciças. E dissolveu os sindicatos, e prendeu as lideranças.
O ministro do trabalho de então, não gratuitamente um coronel, falou a voz das casernas - e das cavernas: Ou esta minoria (referia-se às lideranças sindicais) tem um dispositivo militar capaz de levar tudo de roldão, ou não tem. Se não o tem, espere para ver o que vai dar. Não o tinha, e quem levou tudo de roldão foi o governo. A prática da ditadura coerente com a fala do ministro.
Contagem e Osasco não foram signos precursores de uma nova colheita, não se desdobraram em novos movimentos, embora durante muitos anos tenham alimentado a polêmica, hoje resolvida, a respeito do que ali estava em jogo: se a última vaga dos anos 60 ou a primeira de um novo tempo. A rigor, não passaram de oásis em meio a um deserto. E como na natureza os oásis não fazem regredir o deserto, foram engolidos por este.
Por terem sido atores secundários, ou quase ausentes, um pouco parte do cenário, mais do que atores, a não importância dos trabalhadores se torna uma importante chave para a compreensão dos limites do que virá a seguir. Na verdade, a sua (não) participação conforma, juntamente com as ambigüidades e as contradições de uma ditadura que não ousava dizer o seu nome, e não tolerava ser chamada pelo nome, aspectos decisivos para compreensão da ação do ator principal, agora convidado a ocupar o seu lugar no ano de 1968 - o centro do palco.
Os estudantes e, pelo menos nos centros principais, os universitários. Pouco mais de 200 mil jovens, cerca de 0,5% da população do país, quase todos filhos da classe média.
Entretanto, para evitar equívocos e combater preconceitos, a respeito deste ator, principalmente porque se trata de nosso mais importante ator, é preciso formular algumas ressalvas antes de prosseguirmos.
O movimento não se limitou ao Rio de Janeiro e a São Paulo, nem foi conduzido apenas por universitários. No próprio Rio, aliás, a mobilização dos estudantes do Calabouço, tradicional restaurante aberto para estudantes pobres, basicamente secundaristas, foi, desde 1966, essencial para a compreensão da dinâmica - e da agressividade - dos estudantes cariocas. Em função, aliás, das lutas destes estudantes é que se deu o assassinato de Edson Luís de Lima Souto, um dos principais estopins que abriram a sucessão de manifestações e passeatas que agitaram o país em 1968.
Esta dimensão, a da participação dos estudantes secundaristas, é duplamente importante. Em si mesma, porque se trata de um setor específico, para o qual não se podem estender, sem mediações, as reflexões elaboradas a respeito dos universitários. E também porque os secundaristas desempenharam um papel decisivo em importantes capitais estaduais, como, por exemplo, Belo Horizonte, Goiânia, Fortaleza, Vitória, Salvador, Maceió etc. A rigor, a história destes centros ainda está muito mal contada - e compreendida. E foi a ação deles, no entanto, que conferiu ao movimento um caráter nacional.
Três outras ressalvas, para despojar nosso ator de outros falsos atributos:
Primo, os estudantes em geral, os estudantes universitários, em particular, não constituem um todo monolítico, infensos a divisões políticas. São atravessados pelas questões que agitam a sociedade, e que não podem ser reduzidas à problemática da origem de classe. Pode parecer banal, mas contraria boa parte dos estudos sobre o assunto que não se privam de se referir ao movimento estudantil como se fosse um todo, sem fraturas e contradições internas, com sua ação rigidamente limitada pelas condições sociais.
Secundo, os estudantes nem sempre desempenharam, e nem estão destinados a desempenhar, por um decreto insondável da Providência Divina, ou por uma misteriosa lei da História, um papel questionador, ou reformista, e muito menos revolucionário, na história do país, ou de qualquer lugar do mundo. Ao contrário, de acordo com as circunstâncias, têm assumido papéis conservadores e mesmo reacionários. Aliás, pouco antes da instauração da ditadura, em 1964, a direita liberal ganhara, no voto, o controle da União Metropolitana de Estudantes, entidade de coordenação estadual do movimento estudantil, o que se refletiria na agressiva ação de muitos estudantes que participaram ativamente da frente social e política que instaurou a ditadura.
Tertio, e finalmente, mas não menos importante, o movimento estudantil de 1968 não pode ser confundido com os partidos revolucionários e, particularmente, com as ações armadas então desfechadas, e que receberam, aliás, uma projeção nem um pouco desinteressada. O que não quer dizer que óbvias relações não tenham sido estabelecidas entre estudantes e partidos revolucionários. Mas é preciso evitar as interpretações simplistas que envolvem os movimentos sociais e as ações de vanguarda num todo único, negando a autonomia relativa de cada um, o que também, como sempre, não constitui exercício desinteressado.
Veremos se estas questões serão esclarecidas na seqüência do texto, onde se pretenderá analisar a trajetória do ator principal - os universitários - e seus coadjuvantes, embora, não raro, alimentando a pretensão de mentores: os intelectuais e os partidos revolucionários
Depois da vitória da ditadura, a direita liberal estudantil, forte em vários estados, como, por exemplo, entre outros, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, sobretudo nas universidades particulares, diante da truculência do novo regime e de seu ministro da Educação, Suplicy de Lacerda, entrou em refluxo, encolheu-se, até quase desaparecer como força política. Foi o único resultado eficaz da política da ditadura no meio universitário: paralisar e anular o potencial de ação dos aliados. À direita, só restou a ação mais radical, agrupada no Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e grupos afins. Tinham como programa, coerentes com a sigla, a caça aos adversários, o uso da força e a intimidação pura e simples.
Criou-se, assim, um horizonte favorável à emergência de orientações políticas de crítica e denúncia da ditadura.
Mas não foi um processo fácil nem rápido. Havia muitas feridas a lamber, e balanços críticos, e infindáveis autocríticas.
A rigor, a resistência dos universitários à instauração da ditadura fora débil. Poucos núcleos a ela se opuseram de forma decidida. Sem armas, foram rapidamente dispersados. Não adiantou, na ocasião, cantar o hino nacional, forma de luta tradicional utilizada para conter a repressão.
Restou a derrota. E os inquéritos policial-militares, dirigidos por oficiais estúpidos que faziam a delícia de estudantes e intelectuais, com a exposição de sua profunda ignorância sobre temas corriqueiros das ciências humanas, das artes e da cultura geral. Os derrotados, sem força, cobriam com a força do ridículo os vitoriosos. E o exercício os fez mais confiantes e atrevidos.
Iniciou-se uma resistência molecular.
Em público, vaias e protestos, pequenas passeatas. Em vários pontos do país, grupos destemidos faziam uma primeira semeadura de ousadia. Embora neutralizados e presos, ou tendo as manifestações dissolvidas a balas e a bombas de efeito moral, aquela gente, espetando espinhos no bicho, oferecia uma crítica e um exemplo.
A repercussão mediática era desproporcional aos acontecimentos. É que parte dos grandes jornais, que haviam participado intensa e ativamente da derrubada do regime constitucional anterior, voltava agora as costas à ditadura e aos projetos modernizantes, sobretudo à decisão de durar no tempo, atribuindo o comando direto do processo aos militares. Brechas e mais brechas na frente heterogênea, favorecendo o desenvolvimento das oposições. Ao ecoar grandiosamente na mídia, uma pequena ação puxava outras, estimulando tendências, despertando coragens.
O papel dos meios de comunicação nunca poderá ser subestimado na análise de 1968. Jornais ainda, mas já, e sobretudo, a televisão. Com as imagens, nacionais e internacionais, informando, sensibilizando, despertando. O planeta tornava-se uma aldeia global: os tiros dos soldados norte-americanos nas selvas do Vietnã ecoavam nas salas de jantar das cidades brasileiras, assim como as mulheres norte-americanas queimando sutiãs, e os negros queimando cidades, e os protestos dos estudantes franceses contra a repressão sexual, e as pernas das garotas londrinas com suas ousadas mini-saias, e os Beatles cabeludos com sua irreverência (hoje, face ao hard rock,como parecem tão bem comportados!) e os guardinhas vermelhos, no outro lado do mundo, agitando o livrinho vermelho do grande timoneiro. Eram barricadas por toda a parte: de tijolos e idéias, de sonhos, e propostas de aventuras, exprimindo um mal-estar difuso, mas palpável como a utopia quando ela parece ao alcance da mão.
Sob todos estes influxos, os universitários se reorganizaram. Na fronteira da legalidade com a ilegalidade, reconstituiu-se a rede de organizações estudantis de base, os diretórios acadêmicos, em cada escola ou faculdade, e os diretórios centrais, em cada universidade. No plano estadual e nacional, as Uniões Estaduais e a União Nacional dos Estudantes. Seus dirigentes, embora perseguidos, apareciam aqui e ali, em meio a comícios e passeatas, simbolizando a resistência e a luta. Por imposição da censura, os jornais, ignorando o ridículo, as chamavam de ex-UEEs e de ex-UNE, mas os estudantes as consideravam legítimas, e, aos gritos, quando podiam fazê-lo, afirmavam que, embora silenciadas, eram a nossa voz.
Mais embaixo, nos subterrâneos, processava-se a luta interna aos partidos revolucionários, as autonomeadasvanguardas. Antigas concepções desabaram, comprometendo lideranças consolidadas, agora presas ou em fuga.
Mas os debates teriam dificuldade em analisar, em profundidade, as bases sociais e históricas da derrota. Prevaleceu a caça aos bodes expiatórios e a crucificação dos culpados. As grandes vítimas foram o PCB e o PTB, responsabilizados, entre outros erros, por alianças demasiadamente amplas e por não terem preparado o enfrentamento. O resultado foi a desagregação. Comunistas e trabalhistas desfizeram-se em tendências e frações mutuamente hostis, estilhaçaram-se, projetando uma miríade de grupos, organizações, siglas. O que, de certo modo, reproduzia, entre as alternativas partidárias, a atomização presente na sociedade.
Tomaram então força concepções que primavam pela clareza - e pela simplicidade. O novo regime seria incapaz de abrir perspectivas para o país, estando condenado a uma só política - a repressão. Assim, e tendo em vista a desmoralização dos partidos tradicionais - reformistas populistas - o povo não tardaria a abrir os olhos, despertando das tradicionais ilusões. O Brasil estava num impasse - palavra então recorrente nos textos das esquerdas -, um barril de pólvora, prestes a explodir. Caberia aos novos partidos que surgiam mostrar o caminho, a fagulha que atearia fogo na seca pradaria (Mao Tsé-tung), o foco guerrilheiro que se espalharia como uma mancha de óleo (Régis Debray). Metáforas de luta armada, que se insinuava, sob o influxo da vitoriosa revolução cubana e da guerra popular no Vietnã, como a grande alternativa - a solução, para os problemas que atormentavam o país, o povo - e as esquerdas.
No quadro destas concepções, o movimento social dos estudantes era um peão num jogo mais complicado - o da revolução. Como, no entanto, era o mais ativo e articulado, era ali que se recrutavam militantes e dirigentes para os partidos revolucionários. E não era incomum ver estes últimos, apesar das pretensões a tudo vanguardear, serem arrastados pela dinâmica do movimento que muitos viam como pequeno-burguês. Mas nem por isso perdiam a ambição de reger e instrumentalizar os movimentos sociais. Neste sentido os partidos de vanguarda obedeciam à sua lógica intrínseca.
Entre estudantes e revolucionários, entre movimentos e partidos, simbiose e autonomia. Muitos analistas, e inclusive participantes da época, perderiam a capacidade de distinguir as nuanças entre o movimento social e os partidos revolucionários, num jogo sutil em que nem sempre os candidatos a mentores - os partidos - conseguiam impor seus pontos de vista iluminados às massas - o movimento social.
Num outro plano, penetrando pelas mesmas brechas, um outro ator também coadjuvante, mas igualmente ambicionando a função de mentor: os intelectuais - jornalistas, escritores, artistas, religiosos -, tomariam a primeira linha no protesto e na denúncia das ações da ditadura.
Os shows, os festivais de música popular, os manifestos de protesto, divulgariam temas e propostas que colocavam em questão o Brasil oficial, incentivando a crítica e a rebeldia, desenhando o perfil de uma intelectualidade inassimilada pelo discurso oficial. Um deles chegou a afirmar que era preciso abrir uma série de Vietnãs no campo de cultura (José Celso Martinez Correa). Entre estudantes e artistas - de todas as tendências - se criou uma comunidade de inclinações, de interesses e de gostos, onde se esboçou a formulação de novos valores, envolvendo não apenas a política e o poder, mas os costumes, as práticas cotidianas, as relações entre as pessoas - uma revolução que apenas se iniciava, e que prosseguiria para além, muito além, de 68.
Nos púlpitos, uma reviravolta. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que abençoara a instauração da ditadura, denunciava cada vez mais seus excessos. Inspirando-se no processo de atualização da Igreja (Concílio Vaticano II, Encíclicas de João XXIII e de Paulo VI, Conferência do Episcopado Latino-Americano/CELAM), uma corrente progressista destacou-se, apoiando e dando abrigo a estudantes e intelectuais.
Do centro do palco, onde se ativavam estudantes e intelectuais, aos subterrâneos, onde se discutiam os rumos da revolução brasileira, um intercâmbio permanente de energias, estimulando autônoma e reciprocamente, buscas, indagações e caminhos.
Semeando o ano de 1968.
O ano, a rigor, foi curto, durou um semestre. Fechado pelas grandes manifestações ocorridas no Rio de Janeiro, a dos Cem Mil e dos Cinqüenta Mil, em fins de junho e começos de julho. Passeatas, ocupações, protestos, comícios, lutas de rua, em todo o país, e sobretudo nas capitais dos Estados, mas não apenas nelas, também em cidades médias e pequenas, uma explosão de inconformismo e ousadia, apoiadas por uma imensa corrente de simpatia e solidariedade nas cidades, amplificada pela mídia descontente com o governo. Ao mesmo tempo, e paralelamente, o início das ações armadas: expropriações, bombas, o fantasma de uma guerrilha rural anunciada, embora nunca realizada.
A popularidade da rebeldia. Solta no ar, a frase de uma criança sintetiza a admiração sentida, num certo e breve momento, pelos estudantes: Depois das cenas bacanas que vi, acho os bang-bangs da TV muito chatos. Não quero mais ser mocinho, quero ser estudante. E contraria uma interpretação corrente - e simplória - que pretendeu - e pretende até hoje - reduzir aquele jogo de luzes à mera expressão de um arroubo, uma porra-louquice.
Na verdade, o movimento de 1968 ganhou consistência social porque soube aliar a crítica da ditadura à formulação de um programa de reivindicações que era a expressão da grande maioria. Tratava-se de uma abordagem nova, elaborada e afirmada ao longo do segundo semestre de 1967, sob liderança da União Estadual de Estudantes do Rio de Janeiro, a então UME, presidida por Vladimir Palmeira. Foi assim construído um amplo programa de reivindicações: mais verbas para a universidade, para os laboratórios e bibliotecas, para modernizar o equipamento de ensino e pesquisa e ampliar o acesso da população ao ensino universitário. Manutenção de uma política de assistência aos estudantes carentes - a luta do Calabouço seria aí um símbolo. Os estudantes também reivindicavam reformas nos currículos e uma pesquisa aberta às especificidades do país e de seus problemas.
As propostas surgiam, ou eram confirmadas, a partir de inúmeras assembléias, realizadas por baixo, em cada turma, em cada faculdade e universidade, até ser sintetizada pelos diretórios centrais e uniões estaduais e nacional.
Sem perder a perspectiva política mais geral, ancorava-se a mobilização no cotidiano. Daí a força do movimento: não se lutava apenas contra, mas por interesses tangíveis, concretos.
Contudo, as autoridades foram intransigentes. Temiam a contaminação daquele vírus. E recusaram o diálogo, porque os planos para o país previam uma brutal elevação do arbítrio - a manutenção e o aprofundamento do Estado de exceção. Nestas condições, do ponto de vista da ditadura, seria uma insensatez ceder e conceder.
Aconteceu o enfrentamento. O inventário das armas de cada contendor fala por si mesmo. Os estudantes apresentavam-se no campo de combate com sacos plásticos cheios d'água, pedras, paus, gelo, garrafas, vasos de flores, tampas de latrina, carimbos, cinzeiros, cadeiras, tijolos, bolas de gude, cortiça e umas pobres barricadas. Já a polícia usava fuzis, revólveres, baionetas, sabres, pistolas 45, cargas de cavalaria, bombas e granadas de gás lacrimogêneo.
Desigualdades deste tipo até podem ser vencidas, desde que se mobilize a inteira sociedade. Que pode aí levar à desagregação do aparelho repressivo. Mas não foi o caso. A sociedade não acompanhou. E as lideranças estudantis ficaram na contracorrente. Na contramão da história.
E, assim, encurtou-se o ano.
No segundo semestre ainda houve movimento. Mas já dominado pela espiral de repressão-protesto-mais repressão-ainda protestos. Sobressaltos, como as unhas nos dedos dos mortos: insistem em crescer, mas o corpo a que pertencem já não se pertence mais. A curva descendente de um movimento colhido pelo impasse. A curva ascendente de uma repressão que já não provoca indignação e ira, mas intimidação e medo.
Como numa corrida de revezamento, os partidos revolucionários, ator coadjuvante, fariam uma breve passagem pelo centro do palco. Mas era então um outro ano. Totalmente isolados, foram não menos rapidamente liquidados.
Desceu o pano. A derrota. Mais uma. A última daquele ciclo, iniciado em 1964.
Mas nas dobras da derrota, cintilações, que nos chegam até hoje.
A maior delas: aquelas pessoas tinham uma estranha autoconfiança. Acreditavam na própria capacidade de transformar a si mesmas e as suas condições de vida. Por contraste, por estranhamento, talvez advenha daí o interesse - e o fascínio - que a sociedade atual, dopada pelo conformismo, ainda sente por aquele ano e por aquela gente. Neste fascínio, latejará ainda o vírus de 1968? Ou se tratará de mera observação externa, como num zoológico, do outro lado das grades, sem risco de contaminação?
The answer, my friend, is blowing in the wind, the answer is blowing in de wind (Bob Dylan).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Debord, G. (1997) A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto.         [ Links ]
Cohn-Bendit, D. (1987) Nós, que amávamos tanto a revolução. São Paulo, Brasiliense.         [ Links ]
Gorender, J. (1987) Combate nas trevas. São Paulo, Ática.         [ Links ]
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Reis Filho, D. A. & Moraes, P. (1998) 1968, a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro, Ed. Fund. Getulio Vargas.         [ Links ]
Ridenti, M. (1993) O fantasma da revolução brasileira. São Paulo, Unesp.         [ Links ]


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