quinta-feira, 10 de abril de 2014

A culpabilidade no Direito Penal brasileiro



A culpabilidade é um dos institutos mais polêmicos da teoria do delito, que já passou por transformações significativas e continuará evoluindo concomitantemente à evolução da vida em sociedade.
Resumo: O presente estudo tem por objetivo realizar uma breve análise da culpabilidade penal para possibilitar uma melhor compreensão do instituto e das controvérsias doutrinárias existentes. Abordar-se-ão, de forma concisa, as questões básicas em matéria de culpabilidade, como conceito, posição sistemática, evolução histórica e funções, para que melhor se entendam os contornos do instituto e os momentos de sua aplicação.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito e Posição Sistemática. 3. Evolução Histórica. 4. As Funções da Culpabilidade. 5. Conclusão

1. INTRODUÇÃO.

A culpabilidade é um dos institutos mais polêmicos da teoria do delito. Muito embora apareça em variados dispositivos, não foi conceituada no Código Penal, gerando discussões acerca de sua posição sistemática, ou seja, como integrante do conceito de crime ou não, e de suas funções.
A ausência de uniformidade no tratamento da culpabilidade termina por dificultar o cotidiano do operador do direito e sua conclusão acerca da responsabilização do agente.
No presente trabalho, com o escopo de possibilitar uma maior compreensão da teoria do fato punível e de demonstrar quais são os pontos de debate entre os doutrinadores, partir-se-á da conceituação da culpabilidade penal, para que sejam mais bem elucidadas as teorias acerca da posição sistemática do instituto, passando-se à sua evolução histórica, com a consagração do conceito normativo puro da culpabilidade e, por fim, ao ponto central deste estudo, qual seja, explicar o instituto enquanto pressuposto para a aplicação da pena, enquanto limitador do jus puniendi e enquanto fator de gradação da punição ao agente.  

2. CONCEITO E POSIÇÃO SISTEMÁTICA

A culpabilidade deriva da noção de censura pessoal. A palavra “culpado” carrega uma carga axiológica negativa, por referir-se a um juízo de reprovação que se faz ao autor de um fato.
De acordo com conceituação de Luiz Regis Prado:
A culpabilidade é a reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita. Assim, não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude, embora possa existir ação típica e ilícita inculpável. Devem ser levados em consideração, além de todos os elementos objetivos e subjetivos da conduta típica e ilícita realizada, também, suas circunstâncias e aspectos relativos à autoria.[1]
Do mesmo modo, consoante preceituam Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, “esse conceito é um conceito de caráter normativo, que se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse”.[2]
Cumpre observar, destarte, que a culpabilidade refere-se a um fato praticado, que necessita ser típico e antijurídico, e não a um modo de ser ou agir, afastando-se, de logo, o chamado Direito Penal do Autor e a criação aristotélica da “culpabilidade pela conduta de vida”, segundo a qual tanto o vício quanto a virtude são voluntários, devendo ser censurado o indivíduo que se afasta da primeira.
O Código Penal Brasileiro não traz definição para a culpabilidade, elevando-a a um dos conceitos mais debatidos na teoria do delito. A discussão repousa, sobretudo, na sua posição sistemática, se integrante do conceito de crime ou se considerada à parte, como pressuposto da pena.
Atualmente, a doutrina majoritária conceitua o crime como fato típico, antijurídico e culpável, adotando a teoria tripartida do delito. O crime, para Guilherme de Souza Nucci, partidário dessa teoria:
trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito.[3]
Semelhantemente, para Heleno Cláudio Fragoso:
crime é, assim, o conjunto de todos os requisitos gerais indispensáveis para que possa ser aplicável a sanção penal. A análise revela que tais requisitos são a conduta típica, antijurídica e culpável.[4]
Não obstante, parcela considerável da doutrina[5] defende que o crime, do ponto de vista analítico, comporta apenas dois elementos, a tipicidade e a antijuridicidade, sendo a culpabilidade somente um pressuposto de aplicação da pena.
Defensor da teoria bipartida explicitada supra, Damásio de Jesus justifica sua posição afirmando que o Código Penal Brasileiro, em diversas passagens, considerou o crime como fato típico e antijurídico, porquanto ao tratar das causas de exclusão da culpabilidade referiu-se apenas à isenção da pena, como por exemplo, os artigos 26, caput, e 28, parágrafo primeiro:
Quando o CP trata de causa excludente da antijuridicidade, emprega expressões como 'não há crime' (art. 23, caput), 'não se pune o aborto' (art. 128, caput), 'não constituem injúria ou difamação punível' (art. 142, caput), 'não constitui crime' (art. 150, §3) etc. Quando, porém, cuida de causa excludente da culpabilidade, emprega expressões diferentes: 'é isento de pena' (26 caput, e 28 §1º), 'só é punível o autor da coação ou da ordem' (art. 22, pelo que se entende que 'não é punível o autor do fato'). Qual a razão da diferença?[6]
Adiante responde:
Para a existência do crime, segundo a lei penal brasileira, é suficiente que o sujeito haja praticado um fato típico e antijurídico. Objetivamente, para a existência do crime, é prescindível a culpabilidade. O crime existe por si mesmo com os requisitos "fato típico" e "ilicitude". Mas o crime só será ligado ao agente se este for culpável. É por isso que o CP, no art. 23, emprega a expressão 'não ha crime' (as causas de excludente da antijuridicidade excluem o crime); nos arts. 26, caput e 28 §1º, emprega a expressão "é isento de pena" (corresponde a "não culpável"). Se a expressão "é isento de pena" significa "não é culpável", subentende-se que o código considera o crime mesmo quando não existe a culpabilidade em face do erro de proibição (art. 21 caput, 2ª parte).[7]
Luiz Flávio Gomes, contudo, adota posição intermediária entre as duas teorias, sustentando que a culpabilidade não faz parte do conceito de crime, nem tampouco é “só” pressuposto da pena, pois pressuposto da pena é tudo, incluindo-se a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Desse modo, para ele:
mais que um pressuposto, a culpabilidade é um dos fundamentos da pena. Para nós, em síntese, a culpabilidade é juízo de valor (de reprovação) que recai sobre o agente do crime que podia se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso (conforme o Direito). Como juízo de valor ou de reprovação (que recai sobre o agente do crime) não pode evidentemente pertencer nem à teoria do delito nem à teoria da pena. Ela cumpre exatamente o papel de ligação ou de união entre o crime e a pena, justamente porque sua primeira e distinguida função é a de constituir um dos fundamentos indeclináveis da pena.[8]
A polêmica sobre o acerto e a conveniência da adoção de determinada teoria para a idéia jurídico-penal de delito subsiste e ainda se encontra longe de uma solução. O entendimento do autor Luiz Flávio Gomes, exposto acima, concilia as diversas correntes e mostra-se de adequada aplicação prática, afinal, é de se ter em mente que, elemento do crime ou não, só haverá aplicação da pena se houver culpabilidade.
Ademais, para a evolução do presente estudo, necessário se faz enfatizar o conceito normativo de culpabilidade, como um juízo de reprovação que está na cabeça de quem julga, mas que tem por objeto o agente do crime e sua ação criminosa.[9]

3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Adotado hodiernamente, o conceito normativo de culpabilidade é o resultado de uma longa evolução, que pode ser destacada em várias fases.
A primeira fase remonta ao causalismo naturalista de Liszt e Beling, e nela a culpabilidade era tida como o vínculo psicológico entre o agente e o fato. Nesse momento, com a influência do positivismo científico do final do século XIX, houve uma redução do pensamento, pois o Direito passou a ser explicado a partir da causa e do efeito.
De acordo com Luiz Greco “o sistema naturalista, também chamado sistema clássico do delito, foi construído sobre a influência do positivismo, para o qual ciência é somente aquilo que se pode apreender através dos sentidos, o mensurável. Valores são emoções, meramente subjetivos, inexistindo conhecimento científico de valores”.[10]
A teoria psicológica da culpabilidade, adotada durante esse período, dividia o crime em aspectos objetivos e aspectos subjetivos. Estes últimos ficavam fora da conduta, que era uma mera relação de causa e efeito, e tratam-se do dolo e da culpa, as duas espécies de culpabilidade.
Sintetizando essa fase, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:
Para a teoria psicológica, a culpabilidade seria o vínculo do agente com seu fato, que ocorre pelo dolo ou pela culpa. Dolo e culpa, como se vê, eram a culpabilidade (constituíam as essência da culpabilidade), que já tinha como pressuposto a imputabilidade. Nesse tempo, portanto, a culpabilidade contava com dois requisitos: 1) imputabilidade e 2) dolo ou culpa. A imputabilidade, de outro lado, era enfocada como algo pertencente à cabeça do agente (em outras palavras: era concebida como requisito subjetivo). O crime, aliás, de acordo com essa construção causalista (ou natural causalista ou naturalista), possuía duas partes: uma objetiva e outra subjetiva. Integravam a primeira a tipicidade e a antijuridicidade; a culpabilidade pertencia à segunda.[11]
Prosseguindo, afirmam:
Para a teoria psicológica da culpabilidade esta é o liame, o vínculo ou o nexo psicológico que liga o agente ou pelo dolo ou pela culpa ao seu fato típico e antijurídico. Ela é vista num plano puramente naturalístico ou psicológico, desprovido de qualquer valoração e esgota-se na simples constatação da posição do agente perante sua própria conduta.[12]
Convém enfatizar que imperava, à época, a influência das idéias deterministas sobre a teoria do delito, com a conseqüente negação do livre-arbítrio do homem. Entendia-se que o crime era determinado por fatores biológicos e sociais. Em decorrência disto é que não se analisava a reprovação ou a valoração da conduta do agente, já que certos homens eram predeterminados a comportamentos delinqüentes. A questão se resumia ao atuar com dolo ou culpa.
Sobre a teoria psicológica, critica o alemão Hans-Heinrich Jescheck:
A concepção psicológica da culpabilidade logo se mostrou, sem dúvida, como insuficiente porque não dava respostas às questões de quais relações psíquicas deviam considerar-se relevantes jurídico-penalmente e porque sua presença fundamenta a culpabilidade e sua ausência a exclui. Assim, não poder-se-ia explicar porque ainda quando o autor atuasse dolosamente e, portanto, tenha produzido uma relação psíquica com o resultado, deve negar-se sua culpabilidade se ele é um doente mental ou se agiu em estado de necessidade (§ 35). Tampouco poder-se-ia fundar o conteúdo da culpabilidade da culpa inconsciente com fundamento na concepção psicológica da culpabilidade, já que nela falta precisamente toda relação psíquica com o resultado.[13]
Críticas à parte, a teoria psicológica da culpabilidade representou um avanço na medida em que rompeu de vez com qualquer resquício de responsabilidade objetiva no Direito Penal, ao exigir o liame subjetivo entre o autor e o fato.
Em 1907 houve uma revolução no pensamento até então dominante sobre a culpabilidade, quando Reinhardt Frank acrescentou novo elemento a esta, intitulado por ele de normalidade das circunstâncias, transformando-a em um juízo de valor apoiado em uma situação psíquica.
Sintetizando a nova fase, Cezar Roberto Bitencourt aduz que:
A elaboração normativa da culpabilidade produziu-se no contexto cultural da superação do positivismo-naturalista e sua substituição pela metodologia neokantiana do chamado conceito neoclássico de delito. Sintetizando, em toda a evolução da teoria normativa da culpabilidade ocorre algo semelhante ao que aconteceu com a teoria do injusto. No injusto, naquela base natural-causalista, acrescentou-se a teoria dos valores; ao positivismo do século XIX, somou-se simplesmente o neokantismo da primeira metade do século XX. Na culpabilidade, a uma base naturalista-psicológica acrescenta-se também a teoria dos valores, primeiro com Frank, de forma vaga e difusa, posteriormente com maior clareza, com os autores já citados. Com isso, se superpõe na culpabilidade um critério de caráter eticizante e de nítido cunho retributivo.[14]
Partindo do critério da normalidade das circunstâncias elaborado por Frank, que levaria à reprovação do agente, outros autores neokantistas[15] chegaram ao que hoje em dia é conhecido por exigibilidade de conduta diversa. Assim, o agente autor de um injusto penal só pode ser reprovado se, nas circunstâncias em que praticou a conduta, lhe era possível exigir comportamento diverso, conforme o Direito. [16]
A culpabilidade, então, passou a ser ao mesmo tempo psicológica e normativa, dando origem a uma nova teoria, a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, cujos elementos são a imputabilidade, a exigibilidade de conduta diversa e o dolo e a culpa.
Observa-se que a imputabilidade deixou de ser pressuposto, como era na teoria psicológica, para figurar como um dos elementos da culpabilidade. Outrossim, o dolo passou a abrigar também o conhecimento do Direito, conceituando-se como dolus malus.
Sobre o dolus malus, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:
Já desde o Direito romano distinguia-se o dolus bonus do dolus malus, segundo a maliciosa intenção do agente dirigida “para enganar” ou “para cometer crime”. Mas é sobretudo depois da concepção teleológica do delito e da culpabilidade normativa que, divorciando-se do posicionamento de Von Liszt, passa-se a aceitar a consciência da ilicitude como requisito da culpabilidade, mais precisamente como dado que se agrega ao dolo e assim acolhe-se o denominado dolus malus (dolo normativo ou dolo jurídico), isto é, dolo mais consciência da ilicitude. Exige-se que o agente, no momento da conduta, além de representar a realidade fática (requisito intelectual do dolo) e de desejar realizar a conduta (requisito volitivo do dolo), tenha consciência real e inequívoca (ainda que num juízo leigo) de que sua conduta contraria o ordenamento jurídico (é a consciência real da ilicitude ou da antijuridicidade do fato).[17]
Com o finalismo de Hans Welzel, na metade do século XX, retiraram-se todos os elementos psicológicos da culpabilidade e ela se tornou, enfim, puramente normativa, como puro juízo de valor, de reprovação. O dolo passou para o âmbito da tipicidade, contudo, sem a consciência de ilicitude, que continuou como elemento normativo da culpabilidade, passando a ser concebido como dolo natural.
Têm-se como elementos da culpabilidade na teoria normativa pura: a) a imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude; c) exigibilidade de conduta diversa.
Explicando a teoria, ensina Welzel:
A teoria da culpabilidade elimina os elementos subjetivo-psíquicos e retém somente o elemento normativo da reprovabilidade. Neste processo, nenhum dos elementos anteriores se perdeu, cada um passa a ocupar seu lugar mais adequado sobre a base de compreensão da estrutura finalista da ação, com a qual nos capacitamos para as soluções mais corretas, nos problemas de participação, da culpabilidade, do injusto, da lesão de diligência, do erro de proibição etc. portanto, as objeções repetidas contra a teoria da ação finalista da ‘subjetivação do injusto’ ou do ‘esvaziamento do conceito de culpabilidade’ são completamente infundadas.[18]
Impende destacar que, no finalismo, a conduta, ao receber o dolo e a culpa, deixou de ser tratada como mero impulso mecânico e a vontade passou a constituir a sua “espinha dorsal”. Sob a ótica do finalismo, a conduta é uma movimentação corpórea, voluntária e consciente, com uma finalidade. Logo, ao agir, o ser humano possui uma finalidade, que é analisada, desde logo, sob o prisma doloso ou culposo.[19]
Além disso, a consciência da ilicitude passou a ser potencial, porquanto basta que o agente tenha a possibilidade de ter essa consciência, ainda que, no momento do fato, não houvesse realizado o conhecimento.
Após a teoria normativa pura da culpabilidade, que é a teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro, surgiram diversas outras, entre as quais merecem breve análise a teoria da responsabilidade e a teoria complexa da culpabilidade.
A primeira teoria foi criada por Claus Roxin, preconizando que a culpabilidade se encontra inserida em um contexto mais amplo, chamado responsabilidade, formado por esta e pela necessidade preventiva da pena. Ou seja, Para Roxin:
a responsabilidade, como categoria político-criminal, é definida como uma valoração, posterior à ilicitude, para tornar penalmente responsável o agente (para atribuir-lhe responsabilidade). Para a imposição da pena, faz-se mister, além da culpabilidade, estar comprovada ainda sua necessidade”.[20]
A última teoria preconiza que o dolo e a culpa têm dupla função no Direito Penal, pois, apesar de situados na tipicidade, são valorados também no âmbito da culpabilidade, para majorá-la ou minorá-la, com reflexos na aplicação da pena.
Não obstante, a doutrina majoritária continua adotando a teoria normativa pura da culpabilidade, afirmando, em crítica à teoria complexa, que não são propriamente o dolo e a culpa que são valorados duplamente dentro do Direito Penal. O que ocorre é que, como se verá a seguir, do dolo e da culpa, como requisitos do fato típico, extrai-se a posição do agente frente ao bem jurídico e é esse fator que é valorado pelo juiz para efeitos de fixação da pena.[21], na utilização da culpabilidade como fator de graduação da penalidade.

4. AS FUNÇÕES DA CULPABILIDADE

Adotado nos dias de hoje, o conceito normativo da culpabilidade traduz um juízo de reprovação pessoal pela prática de um fato lesivo a um interesse penalmente protegido[22].
Não obstante, o Código Penal Brasileiro, em diversos dispositivos, menciona o termo “culpabilidade”, usando-o para significados diversos. Sendo assim, como bem observa Luiz Flávio Gomes[23], pode-se dizer que a culpabilidade cumpre três funções: a) um dos fundamentos da pena; b) limite da pena e c) fator de graduação.
No tocante à primeira função, como já bem exposto acima, considerada elemento do crime ou pressuposto da pena, a culpabilidade é fundamental para que haja aplicação da pena a um agente autor de um fato típico e antijurídico, já que se torna imprescindível a reprovação do ordenamento jurídico.
Nesse caso, tem-se a culpabilidade com a mais clara de suas funções, referindo-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico. Para isso, analisa-se a presença dos requisitos da culpabilidade – como a imputabilidade penal, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Além disso, serve ela também como limite da pena, nos termos do artigo 29, do Código Penal, segundo o qual “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Tal dispositivo reflete o princípio da individualização da pena, permitindo a mensuração da reprovabilidade que recai sobre o agente.
Ademais, a culpabilidade neste sentido aparece como uma limitação no jus puniendi do Estado, no sentido de se impedir um castigo mais severo do que o merecido e imposições de sanções desproporcionais, mais gravosas do que a própria conduta, ou seja, acima do limite da culpabilidade.
Assim, o juízo de reprovação ou a culpabilidade interfere diretamente na aplicação e fixação da sanção penal, pois visa submeter o acusado à pena mais consentânea com sua conduta, promovendo-se o equilíbrio entre a reprovação penal e o ato delituoso.
Do mesmo modo, também como reflexo do princípio da individualização da pena é que a culpabilidade é considerada como circunstância judicial, no artigo 59, do Código Penal, ou seja, na primeira fase da dosimetria penal. Nesta, o juiz deverá levar em conta o grau de reprovabilidade da conduta ou aquilo que se entende por posição do agente frente ao bem jurídico ofendido.
Em uma síntese explicativa, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:
A palavra culpabilidade, contida no CP, art. 59, expressa a posição do agente frente ao bem jurídico violado. Essa posição do agente pode ser: a)  de total menosprezo (que deriva do dolo direto de primeiro grau); b) de indiferença (decorre do dolo direto de segundo grau ou dolo eventual) e c) de descuido (emana do crime culposo). As duas primeiras retratam o que a doutrina ou teoria complexa da culpabilidade chama de “culpabilidade dolosa”; a terceira espelha a “culpabilidade culposa”.[24]
Ainda, há quem sustente, como o faz Guilherme de Souza Nucci, que a culpabilidade prevista no artigo 59 é o conjunto de todos os demais fatores unidos: antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos do crime, circunstâncias do delito, conseqüências do crime e comportamento da vítima, que será maior ou menor, conforme o caso.[25]
Vale registrar, por fim, que atualmente muitos autores vêm mencionando a chamada co-culpabilidade, consubstanciada na reprovação conjunta que deve ser exercida sobre o Estado tanto quanto se faz em relação ao autor de infração penal, quando se verifica não ter sido proporcionada a todos igualdade de oportunidades na vida.[26]
Para Zaffaroni e Pierangeli:
Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em conseqüência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento de reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar.[27]
O conceito de co-culpabilidade vem sendo considerado em países que adotam o Estado Social de Direito e reconhecem direitos econômicos e sociais. No Brasil, consoante propõe a doutrina, o juiz poderá analisar a culpabilidade concorrente da sociedade, diminuindo a reprovação que recai sobre o agente, se for o caso, nas circunstâncias judiciais do artigo 59 ou na atenuação genérica do artigo 66, do Código Penal.

5.   CONCLUSÃO:

A culpabilidade é um dos conceitos mais tormentosos em matéria de Direito Penal. É certo que o instituto, que já passou por transformações significativas, continuará evoluindo concomitantemente à evolução da vida em sociedade.
Como já dito, o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar as discussões sobre o debatido tema, trata-se de uma contribuição ao estudo, com o objetivo de esclarecer os seus contornos para o operador do direito.
Em síntese, sobre o instituto da culpabilidade pode-se estabelecer que, primeiro, prevalece o conceito normativo da culpabilidade, vista como um juízo de reprovação que recai sobre o agente de um fato ilícito, o qual, consciente da ilicitude, podia agir conforme o direito e não o faz. Como desdobramento de tal conceito, emergem suas três funções: a culpabilidade como fundamento da pena, como limite da punição Estatal e como fator de mensuração da penalidade aplicada.

REFERÊNCIAS:

BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. II. Tradução por PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR e ALBERTO SILVA FRANCO, notas por EVERARDO DA CUNHA LUNA. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971.
BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 166.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – parte geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito: em comemoração aos trinta anos de Política criminal e sistema jurídico-penal de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 32, out./dez. 2000.
JESCHECK, Hans-Henrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General, vol. I. Barcelona: Bosch, 1981.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Volume 1 – parte geral. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1:parte geral. 1. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

NOTAS

[1] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1:parte geral. 1. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 408.
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 517.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 160.
[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – parte geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.198.
[5] René Ariel Dotti, Damásio de Jesus, Celso Delmanto, Júlio Fabbrini Mirabete, entre outros.
[6] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Volume 1 – parte geral. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 455,
[7] Ibidem, p. 455.
[8] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral, v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 545.
[9] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 229-230.
[10] GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito: em comemoração aos trinta anos de Política criminal e sistema jurídico-penal de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 32, out./dez. 2000, p. 122.
[11] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit., p. 546.
[12] Ibidem, p. 547.
[13] JESCHECK, Hans-Henrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General, vol. I. Barcelona: Bosch, 1981, p. 578.
[14] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 166.
[15] Mezger, Bettiol, Goldschimit.
[16] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit.,, p. 551.
[17] Ibidem, p. 555.
[18] WELZEL, Hans apud GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit.,, p. 555.
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 282.
[20] ROXIN, Claus apud PRADO, Luiz Regis. op. cit., p. 418.
[21] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit., p. 559.
[22] BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. II. Tradução por PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR e ALBERTO SILVA FRANCO, notas por EVERARDO DA CUNHA LUNA. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971, p. 13.
[22] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, op. cit., p. 570.
[24] Ibidem, p. 570.
[25] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 436.
[26] Ibidem, p. 286.
[27] ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. op, cit., p. 525.

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