domingo, 27 de abril de 2014

Um novo escore para dependência a nicotina e uma nova escala de conforto do paciente durante o tratamento do tabagismo



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Jaqueline Scholz Issa
Diretora. Programa de Tratamento do Tabagismo, Área de Cardiologia, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil



RESUMO
O tabagismo é considerado a maior causa evitável de morbidade e mortalidade. O manuseio farmacológico da síndrome de abstinência de nicotina possibilita melhores taxas de cessação. Desenvolvemos um sistema de coleta de dados em nosso programa de assistência ao fumante, que inclui dois instrumentos novos: um escore para dependência de nicotina em fumantes de < 10 cigarros/dia e uma escala de conforto do paciente durante o tratamento do tabagismo. Descrevemos aqui os dois instrumentos, que estão em processo de validação.
Descritores: Abandono do hábito de fumar; Nicotina; Resultado de tratamento; Síndrome de abstinência a substâncias; Transtorno por uso de tabaco.



O Ambulatório de Tratamento do Tabagismo do Serviço de Prevenção e Reabilitação, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo (SP), iniciou as atividades assistenciais em novembro de 1996. Desde a sua criação, o tratamento proposto baseou-se na relação médico-paciente e na prescrição de fármacos para o tratamento dos sintomas de abstinência a nicotina. Na época, o arsenal terapêutico era limitado à reposição de nicotina com uso de adesivos transdérmicos. No ano de 2001, iniciamos o uso da bupropiona e percebemos que houve uma contribuição para o sucesso terapêutico. Naquele período, constatamos que não existia nenhum instrumento (escala ou questionário) para avaliar o conforto do paciente frente ao tratamento proposto, pois todas as escalas existentes avaliavam somente os sintomas de abstinência. Desta forma, criamos um questionário para avaliar o conforto do paciente frente à estratégia terapêutica adotada. Em 2007, desenvolvemos nosso modelo de atendimento ao tabagista criando o Programa de Assistência ao Fumante (PAF), registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial em 2008 e atualizado em 2011 para a versão on-line. Até 2007, já contabilizávamos mais de 3.000 fumantes tratados.
O PAF é um sistema consolidado de informações médicas relativas ao tratamento do tabagismo disponibilizadas de forma sistematizada e organizada. Esse sistema possui questionários que avaliam sucintamente a história clínica, as doenças psiquiátricas pregressas e atuais, os medicamentos em uso e sua quantidade total, variáveis demográficas, como idade, sexo, escolaridade, condição socioeconômica, raça, orientação sexual, quantidade de diagnósticos, histórico de consumo tabágico, tentativas pregressas de cessação e experiência prévia com medicações antitabágicas, e outros dados, como peso, FC, pressão arterial e concentração de monóxido de carbono do ar expirado. Todas essas informações podem ser disponibilizadas através de relatórios a partir do banco de dados, mantendo sob sigilo a identidade do paciente. Durante a consulta, o paciente é questionado sobre a disponibilização de seus dados relativos ao tratamento do tabagismo para fins de pesquisa, e somente as informações dos pacientes que consentem são disponibilizadas para os relatórios.
A dependência a nicotina é avaliada através do teste de Fagerström.(1) No entanto, o PAF possui um escore de avaliação complementar para ser aplicado quando o consumo de tabaco for igual ou menor que 10 cigarros, identificado como Escore de Consumo Situacional Issa (Tabela 1). A criação desse instrumento foi necessária porque as diretrizes atuais de tratamento do tabagismo(2) recomendam o uso de medicamentos antitabágicos somente para fumantes de mais de 10 cigarros/dia. No entanto, o comportamento do fumante tem mudado em função das medidas de proteção ao fumante passivo, que restringem o uso de tabaco em ambientes sociais. Com isso, tornou-se cada vez mais frequente nos depararmos com fumantes que consomem menos de 10 cigarros/dia,(3) mas sem necessariamente indicar baixa dependência a nicotina. A existência de um instrumento que consiga identificar fumantes com baixo consumo, mas possivelmente com grau de dependência a nicotina moderada ou elevada, cria a possibilidade de considerar a prescrição de fármacos antitabágicos para facilitar o processo de cessação nesse subgrupo de pacientes.
O Escore de Consumo Situacional Issa (nome da autora) é composto por quatro perguntas, e a pontuação varia de 0 a 4 (Tabela 1). As perguntas foram elaboradas com base na descrição do mecanismo de ação da nicotina no sistema nervoso central, que envolve efeitos em receptores de neurotransmissores relacionados a cognição, atenção, concentração, humor, bem-estar e prazer. Os neurotransmissores que reconhecidamente atuam nesses receptores são acetilcolina, dopamina, noradrenalina e serotonina.(4) Como consequência da ação psicoativa da nicotina, os fumantes desenvolvem comportamentos que podem indicar a intensidade da dependência na medida em que a necessidade de fumar é deflagrada por situações relacionadas a melhora de desempenho, alívio de desconforto ou ampliação da sensação de prazer. Quanto mais o paciente percebe a necessidade de consumo relacionada a essas circunstâncias, consideramos sua dependência mais elevada, e julgamos oportuno o uso de medicamentos antitabágicos quando a pontuação é > 2 pontos. A adoção dessa prática foi restrita à população assistida em nosso serviço. Uma vez avaliada a dependência a nicotina, e considerando os demais dados do paciente, o médico pode então definir a estratégia terapêutica. No presente momento, a metodologia PAF introduz o conceito do uso de uma escala para avaliar o conforto em relação ao tratamento proposto.
Existem inúmeros instrumentos para o diagnóstico da síndrome de abstinência de nicotina, (5,6) assim como escalas que avaliam a presença e intensidade desses sintomas em pacientes que param de fumar.(7) No entanto, nenhuma escala foi desenvolvida para avaliar o desempenho dos fármacos antitabágicos durante o tratamento da síndrome de abstinência a nicotina. Nesse contexto, foi concebida a Escala de Conforto PAF, que avalia o conforto do paciente com o tratamento proposto através de 10 itens, com pontuação de 0 a 38, na qual os valores 0 e 38 indicam maior desconforto e maior conforto, respectivamente (Tabela 2). A justificativa para a aplicação da Escala de Conforto PAF é que o uso dos medicamentos antitabágicos pode aliviar e modificar a intensidade dos sintomas de abstinência a nicotina, além de poder produzir eventos adversos que possam diretamente influenciar no tratamento. Nenhuma escala anterior avaliou a interferência das drogas antitabágicas nos sintomas de abstinência a nicotina. A escala PAF, aplicada ao longo do tratamento, compara a condição de quando o paciente fumava com a situação atual, permitindo a avaliação contínua da condição de adaptação do paciente à abstinência e a influência das condutas adotadas, sempre buscando o melhor conforto do paciente ao longo do tratamento. O uso clínico dessa escala permitiu que observássemos a necessidade de rever a conduta terapêutica quando o paciente apresentava resultados abaixo de 20. Vale ressaltar que a pontuação 20 é obtida quando a intensidade dos 10 itens avaliados está alterada de maneira leve, ou seja, o paciente tem um leve desconforto, mas a intensidade não é limitante (moderada) ou incapacitante (intensa). Deste modo, o uso da escala PAF permitiu quantificar a intensidade do conforto com o tratamento executado, e isso pode repercutir diretamente no resultado obtido.
O sistema PAF foi concebido com base na experiência clínica ambulatorial de atendimento e tratamento do tabagista ao longo de 16 anos de assistência especializada, contabilizando antes da sua criação mais de 3.000 pacientes tratados, e aproximadamente 18.000 consultas realizadas. O uso do PAF como ferramenta para a assistência ambulatorial no tratamento do tabagismo já foi aplicado em mais de 2.000 pacientes na versãodesktop e aproximadamente 800 pacientes na versão web, e se apresenta como uma ferramenta para a implementação da convenção-quadro,(8) que é o tratado mundial para controle e combate ao tabagismo. O artigo 14 da referida convenção prevê o incentivo ao tratamento dos fumantes como estratégia para a diminuição rápida das consequências dessa pandemia global.(9) O sistema PAF possibilita a realização de consultas médicas objetivas e criteriosas, além de produzir informações sistematizadas que possibilitam o uso racional e crítico das estratégias terapêuticas disponíveis. Exemplos da sua aplicação clínica foram produzidos com a análise do banco de dados no período entre 2007 e 2009. Em uma avaliação específica, observou-se a efetividade do uso da vareniclina de forma isolada ou combinada a outros fármacos.(10) Em outra análise, estudaram-se as causas e os períodos das recaídas.(11) A análise do banco de dados do sistema PAF também permitiu avaliar a influência das drogas antitabágicas na pressão arterial, FC e concentração de monóxido de carbono do ar expirado.(12) Todas essas análises permitiram um melhor conhecimento da população tratada e das estratégias terapêuticas adotadas.
O uso dessa metodologia permitiu um melhor entendimento da dependência a nicotina e uma melhor assistência aos pacientes durante o processo de cessação, além de ter possibilitado a análise crítica da efetividade das estratégias terapêuticas adotadas no processo de cessação do tabagismo, processo esse dinâmico, considerando a aplicação da Escala de Conforto PAF durante o período de tratamento e acompanhamento dos pacientes.
O sistema PAF foi desenvolvido com o intuito de organizar e disciplinar a rotina de atendimento aos tabagistas e, dessa forma, melhorar as taxas de cessação na população atendida.
Finalmente, gostaríamos de reforçar que o escore Issa e a Escala de Conforto PAF estão em processo de validação psicométrica. O principal objetivo da presente comunicação foi possibilitar que outros autores também realizem testes de validação desses instrumentos, permitindo assim que seu uso na prática clínica seja validado e referendado.

Referências
1. Fagerstrom KO, Schneider NG. Measuring nicotine dependence: a review of the Fagerstrom Tolerance Questionnaire. J Behav Med. 1989;12(2):159-82. PMid:2668531.http://dx.doi.org/10.1007/BF00846549        [ Links ]
2. 2008 PHS Guideline Update Panel, Liaisons, and Staff. Treating tobacco use and dependence: 2008 update U.S. Public Health Service Clinical Practice Guideline executive summary. Respir Care. 2008;53(9):1217-22. PMid:18807274.         [ Links ]
3. Pierce JP, White MM, Messer K. Changing age-specific patterns of cigarette consumption in the United States, 1992-2002: association with smoke-free homes and state-level tobacco control activity. Nicotine Tob Res. 2009;11(2):171-7. http://dx.doi.org/10.1093/ntr/ntp014.         [ Links ]
4. Koob GF, Volkow ND. Neurocircuitry of addiction. Neuropsychopharmacology. 2010;35(1):217-38. Erratum in: Neuropsychopharmacology. 2010;35(4):1051. PMid:19710631. PMCid:2805560.http://dx.doi.org/10.1038/npp.2009.110.         [ Links ]
5. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-IV-TR. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2000.         [ Links ]
6. Organização Mundial da Saúde. CID - 10 - Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados a saúde. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 1997.         [ Links ]
7. Shiffman S, West R, Gilbert D; SRNT Work Group on the Assessment of Craving and Withdrawal in Clinical Trials. Recommendation for the assessment of tobacco craving and withdrawal in smoking cessation trials. Nicotine Tob Res. 2004;6(4):599-614. http://dx.doi.org/10.1080/14622200410001734067        [ Links ]
8. World Health Organization. WHO Framework Convention on Tobacco Control. Geneva: World Health Organization; 2005.         [ Links ]
9. World Health Organization. WHO Report on the Global Tobacco Epidemic 2008: The Mpower Package. Geneva: World Health Organization; 2008.         [ Links ]
10. Issa JS, Abe TO, Pereira AC, Moura SS. Effectiveness of varenicline combination therapy in real life setting: PAF database study. Proceedings and On-Site Program of the Joint Conference of the Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2011 Feb 16-19; Toronto, Canada. Madison: Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2011.         [ Links ]
11 . Issa. JS, Moura SS, Abe TO. Time and reason of smoking relapse in outpatients smoking cessation service in a cardiology hospital. Proceedings and On-Site Program of the Joint Conference of the Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2012 Mar 15-17; Houston, Texas. Madison: Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2012.         [ Links ]
12 . Issa JS, Moura SS, Abe TO. Influence of anti-tobacco drugs in blood pressure and heart rate in patients with high risk for cardiovascular disease. Proceedings and On-Site Program of the Joint Conference of the Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2012 Mar 15-17; Houston, Texas. Madison: Society for Research on Nicotine and Tobacco; 2012.         [ Links ]


 Endereço para correspondência:
Jaqueline Scholz Issa
Rua Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44, 1º andar, Bloco 2
CEP 05403-000, São Paulo, SP, Brasil
Tel. 55 11 2661-5592
E-mail: jaquelineissa@yahoo.com.br
Recebido para publicação em 10/5/2012.
Aprovado, após revisão, em 23/7/2012.
Apoio financeiro: Nenhum.


* Trabalho realizado no Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil.

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