sexta-feira, 6 de março de 2015

Dormindo com o torturador


37% deles não são agentes públicos

Todos nós brasileiros estamos vinculados à tortura: como vítimas, como agentes dela (públicos ou privados) ou como coniventes (por razões ideológicas ou culturais ou sociais ou por falta de garantias, denunciamos e punimos pouquíssimos casos de tortura no Brasil).

Em regra a tortura é pratica por agentes públicos:
A pesquisa "Julgando a Tortura" (veja site da Conectas Direitos Humanos), promovida por esta entidade juntamente com Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Pastoral Carcerária, Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat) e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e divulgada em 29/1/15, que analisou 455 acórdãos (decisões de todos os órgãos colegiados de segunda instância) entre 2005 e 2010, com 752 réus e 800 vítimas, concluiu: 61% desse grupo de torturadores são funcionários do Estado (policiais, agentes penitenciários, monitores de adolescentes etc.) e 37% agentes privados (pais, mães, agentes de segurança etc.), incluídos casos de violência doméstica. Muitos torturados dormem sob o mesmo teto do torturador (31% dos casos examinados ocorrem dentro de uma casa).
"Parado por dois policiais militares na frente de sua casa, em São Simão (SP), um motorista de 32 anos, que tinha ingerido bebida alcoólica e era suspeito de participar de uma corrida clandestina, não apresenta os documentos solicitados pelos agentes de segurança e age de maneira rude, xingando-os. Ao invés de receber voz de prisão, ele leva um jato de spray de pimenta nos olhos, é algemado e conduzido dentro da viatura para uma rua escura. Nela, é espancado e desmaia. O motorista passa de suspeito de dois crimes à vítima de uma grave agressão. Sofre fratura em um braço, tem traumatismo craniano e perde parte da audição. Torturado, esse motorista passa a fazer parte de um pequeno grupo de vítimas desse delito que tem seus casos julgados" (Afonso Benites, El País).
Também se pratica tortura contra os agentes públicos:
Dois homens foram encontrados mortos (no RJ), enrolados em sacos pretos. Segundo a polícia, uma das vítimas é o policial Diego Soares (do Exército), lotado na UPP da Vila Kennedy. O corpo do outro homem ainda não foi identificado.
Um dos achados da pesquisa foi constar que muitos torturadores não são agentes públicos:
"Um dos casos que ilustra essa situação ocorreu em Porto Alegre (RS) em 2003 e foi julgado no Tribunal em 2010. Uma menina de três anos foi agredida fisicamente por sua mãe e por seu padrasto. A criança levou seguidos tapas e socos na face, chutes na barriga, cintadas nas costas, chineladas nas pernas e obrigada a se ajoelhar no sal grosso com o rosto encostado na parede. A sessão de espancamento durou mais de três horas. Os exames periciais mostraram que a garota tem hematomas por todo o corpo, costelas quebradas, fraturas nas pernas e sofre danos neurológicos. Ela correu sério risco de morrer e os adultos responsáveis por ela foram condenados pelo crime de tortura" (El País).
A amostra revela que todos nós brasileiros estamos vinculados à tortura: como vítimas, como agentes dela (públicos ou privados) ou como coniventes (por razões ideológicas ou culturais ou sociais ou por falta de garantias, denunciamos e punimos pouquíssimos casos de tortura no Brasil). Tudo começa com a convivência (com os torturadores). Depois é que vem a conivência (que gera impunidade). Esse é o eixo central do relatório da Comissão da Verdade. A tortura também faz parte do processo de aceleração destrutiva (PAD) do Brasil.
Chance de absolvição. Os agentes públicos têm maior chance de absolvição que agentes privados: 19% das sentenças condenatórias de primeira instância foram convertidas em absolvição e 47,6% mantidas; em relação aos agentes privados, apenas 10% das sentenças foram revertidas e 61,4% mantidas. Quando a decisão inicial era de absolvição, o veredito se manteve em 15% dos casos envolvendo agente público e em 5% relativos a agentes privados.
Falta de provas. Grande parte das absolvições ocorre por falta de provas. Em 72% das decisões contra agentes privados, as provas foram consideradas suficientes para comprovar a tortura. A palavra da vítima aqui tem grande valor. O percentual cai para 53% quando os envolvidos são policiais e agentes penitenciários (quando a palavra da vítima não tem a mesma valoração). Outro detalhe: os institutos de perícia não deveriam integrar a estrutura policial. Tinham que ser órgãos autônomos (como é a defensoria pública, por exemplo) (veja PEC 325/2009).

Motivação.
 As motivações da tortura variam de acordo com quem a pratica. Relativamente aos agentes públicos, na maior parte dos casos (65,6%) a violência foi usada como método para obter informações ou confissão. Quando o autor é agente privado, o sofrimento é usado como forma de castigo em 61% dos casos.Problema da lei. 
A tortura está prevista na Lei 9.455/97; esse crime pressupõe "intenso sofrimento físico e/ou mental". Por isso, "escoriações" não bastam para caracterizar tortura, segundo muitos juízes, que optam pela absolvição do acusado ou por penas de lesão corporal e abuso de poder. O problema é que o sofrimento é subjetivo. É difícil saber quando é intenso. Isso vem dando margem para muitas desclassificações (do crime de tortura para o crime de lesão corporal, por exemplo).
Local da tortura. Em relação ao local do crime, 33% dos casos de tortura ocorreram em locais de contenção (prisões, delegacias e unidades de internação), 31% em residências (a tortura é bastante praticada dentro de casa) e 16% em via pública.
Apesar de todos os avanços já conquistados, o brasileiro continua sendo um bicho-humano extremamente selvagem (do contrário não seríamos o 12º país mais violento do planeta - segundo a ONU -, com 29 assassinatos para cada 100 mil pessoas, sendo 6 por hora). Darcy Ribeiro (em O povo brasileiro) diz: "Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos".
Solução. Muita coisa ainda pode ser feita para reduzir drasticamente o número de torturadores no Brasil (dentre essas medidas, afigura-se muito adequada a chamada "audiência de custódia", em 24 ou 48 horas depois da prisão, presidida por juiz de direito). Mas a selvageria do brasileiro somente vai reduzir quando melhorarmos sensivelmente nosso IDH (índice de desenvolvimento humano, que mede renda per capita, escolarização e expectativa de vida). O Brasil ocupa a 79ª posição, em 187 países. Ou seja: pertence ao segundo grupo, que é muito violento. Vejamos:
Enquanto não chegarmos ao primeiro grupo, seremos um país de segunda categoria (isto é: muito violento, torturador, pouco escolarizado, péssima renda per capita, muito ignorante, parasitário, extremamente desigual, autoritário-paternalista, conformista e com corrupção endêmica). Fazer subir nosso IDH significa elevar nossa civilização (que é o melhor antídoto contra a violência, incluindo a tortura). Os países com os melhores IDHs (destacando-se os europeus) não apresentam (em média) nem sequer duas mortes para cada 100 mil pessoas. A civilização (que pressupõe excelente escolaridade e boa renda per capita) está ligada diretamente com a violência.


Leia mais: http://jus.com.br/artigos/36184/dormindo-com-o-torturador#ixzz3Td3hG6lu

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