quinta-feira, 5 de março de 2015

O círculo vicioso do controle administrativo no Brasil



O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é caracterizado por baixíssimas restrições orçamentárias. Os recursos financeiros para a sua execução tem disponibilidade garantida. Isso seria suficiente para supor que o andamento dos empreendimentos evoluiria de maneira satisfatória.

A obsessão pelo controle está à nossa volta, para onde quer que olhemos. Quando algo não vai bem, frequentemente se diz que está “fora de controle”. É preciso, portanto, “controlar a situação”. Até que ela esteja “sob controle”. O exercício do controle é visto como algo que traz segurança, ao passo que a falta dele é vista como um problema.
O calendário existe para controlar os dias, as semanas, os meses e os anos. As horas, os minutos e os segundos são controlados pelo relógio. A agenda controla os compromissos. No chaveiro se penduram as chaves, que servem para controlar quem pode passar e por onde. Um código de corescontrola se o carro pode avançar ou se deve ficar parado. Uma sequência de listras brancas controla por onde o pedestre deve caminhar. A grade da casa e a cerca da fazenda controlam o que é propriedade de alguém e o que não é. As paredes do cômodo controlam onde se cozinha e onde se toma banho. A janela controla quanto vento e quanta luz pode entrar. E, para controlar a televisão, há um pequeno dispositivo eletrônico que se comunica com ela de forma remota. É o chamado controleControle remoto.
Sob esta mesma lógica, a baixa capacidade do Estado brasileiro para realizar entregas e prestar serviços à população é diagnosticada, frequentemente, como sendo consequência da falta de controle. A partir dessa noção, surgiu uma infinidade de mecanismos que buscam ampliar as capacidades estatais pela via do controle, instrumentos que, apesar da crítica às suas disfunções burocráticas, têm se multiplicado.
Controle para combater a corrupção. Controle para não concentrar muito o poder. Controle para disciplinar a relação entre Estado e mercado. Controle para determinar como o Estado admite servidores. Controle para dizer como o Estado pode comprar e contratar serviços. Controle para garantir a eficiência na arrecadação de tributos. Controle para que o Estado não gaste muito. Controle para que o povo não gaste muito. E controle para regular o controle.
Não se trata aqui de defender que o Estado passe a operar sem controle. Pelo contrário, considera-se que cumpre valioso papel republicano toda forma de controle que ajude a ampliar as capacidades estatais trazendo benefícios ao povo. A questão é refletir sobre qual é a influência que cada tipo de controle exerce nas institucionalidades disponíveis para cumprir as funções do Estado brasileiro. Afinal, se os mecanismos de controle são criados para ampliar as capacidades estatais, há que se pensar se eles efetivamente fazem isso.
Tome-se como exemplo o controle fiscal imposto pela Lei Complementar 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Não é difícil entender que quanto mais vulnerável é um estado ou município, mais difícil é para ele equilibrar as suas contas. Mesmo assim, como se não bastassem as fragilidades próprias desses entes, a LRF cria para eles ainda mais dificuldades. Mas, entes federativos são pessoas jurídicas, e, portanto, não sofrem com isso. Quem sofre é a sua população.
Estados e municípios com dificuldades financeiras podem construir escola ou hospital? Podem. E contratar professor e médico para trabalhar na nova escola e no novo hospital, eles podem? Não podem. Por quê? Por causa do controle fiscal. Um ente com vulnerabilidade fiscal pode executar despesas de capital, mas não pode extrapolar o seu limite de despesa corrente. Nem se tiver gente para alfabetizar. Nem mesmo se tiver gente doente para tratar. Não pode porque o controle fiscal não permite.
Há também o conjunto de regras de alocação e execução orçamentária no Brasil. Conseguir ser contemplado no orçamento da União não é tarefa simples. Quando um órgão, bancada ou parlamentar vence as barreiras do controle e insere as suas propostas no orçamento, estes passam a atuar no sentido de proteger o que conquistaram. Essa proteção é feita por meio das rígidas regras de alteração orçamentária. Isso significa dizer que, se é difícil incluir recursos para determinado investimento, é igualmente difícil remanejar estes recursos para outra área.
  • pareça trazer segurança ao “dono” do recurso, acaba trazendo complexidade para a ação pública. Se um dado empreendimento sofre embargos, digamos, por razões ambientais, o recurso orçamentário que estava previsto para ele fica esperando, “parado”. E o povo? Também continua esperando. Além disso, existem outros empreendimentos prontos para iniciar e que poderiam utilizar aqueles recursos, não fosse a rigidez orçamentária. Se esse tipo de situação fosse exceção, não faria tanta diferença. Mas o fato é que as imprevisibilidades fazem parte do cotidiano das políticas públicas e da vida. Obras embargadas e obras a espera de recursos não faltam. Se a grande quantidade de recursos parados pudesse ser realocada, a coisa andaria mais rapidamente. Mas não pode. O controle orçamentário não permite.
Não se pode deixar de lembrar a maneira solene por meio da qual o setor público é obrigado a fazer suas contratações. Para ilustrar, consideremos a alta demanda para a melhoria nos sistemas de mobilidade urbana frente aos instrumentos que o Estado possui para dar resposta a ela. Quais tipos de permissões e proibições são regulados por meio da Lei de Compras (Lei 8.666/1993)? Quais as facilidades e incentivos criados para que o setor público faça grandes contratações? Em quanto tempo ele consegue contratar? Quando conseguirá entregar? A institucionalidade posta ao Estado por ele próprio possibilita atender às necessidades das pessoas? Nem sempre. O controle administrativo para contratar não permite.
E para admitir servidor público? Bem, antes de tomar essa decisão, o Estado percorre um circuito tenebroso, ainda que a necessidade seja urgente. O leitor, por certo, já consegue imaginar as razões.
É simples. Contratar servidor público é quase um casamento. Quando o Estado emprega, é “para sempre”. Mas, e os mecanismos de contratação mais simples, como os servidores temporários, terceirizados e comissionados? Por que não ampliar estas formas de contratação ao invés das intermináveis solenidades de recrutamento de servidores concursados que serão estáveis para “todo o sempre”? Porque estas alternativas não são bem vistas pelo povo, muito menos pela burocracia. Isso porque falta algo no seu processo de contratação. Falta o controle que existe nos ritos dos concursos públicos.
Enfim, o calendário, o relógio, a agenda, o semáforo, a faixa de pedestre, a cerca e o controle remoto representam apenas uma pequena amostra de como a vida social é organizada a partir da necessidade de controle, e de como isso influencia na percepção que as pessoas têm sobre o que está certo (sob controle) e o que está errado (fora de controle). Da mesma forma, o controle das contas públicas, dos processos orçamentários, das compras públicas e dos concursos públicos são apenas alguns casos que exemplificam como a cultura do controle envolve todo o ambiente público.
Se determinados instrumentos de controle diminuem ou limitam as capacidades do Estado, eles acabam se tornando causas do imobilismo estatal, algo que pretendiam combater. Ao fazer isso, estes mecanismos contribuem para reforçar a imagem negativa do Estado, tido como incompetente, incapaz. A ratificação dessa imagem pode ter como consequência a criação de novas institucionalidades orientadas para o controle minucioso, alimentando o que se pode chamar de círculo vicioso do controle.
Cabe, então, refletir sobre as possibilidades lançadas para as relações entre o controle e a melhoria das condições de vida das pessoas nos últimos anos. Veja-se o caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, que é caracterizado por baixíssimas restrições orçamentárias. Na prática, significa que os recursos financeiros para a sua execução tem disponibilidade garantida. Teoricamente, isso seria suficiente para supor que o andamento dos empreendimentos do PAC evoluiria quase sempre de maneira plena e satisfatória. Entretanto, não é o que se constata desde 2007, quando o programa foi iniciado. Mesmo com recursos financeiros garantidos, é longo e penoso o circuito de obstáculos institucionais que um empreendimento tem que percorrer para ser entregue à população.
Em outras palavras, o PAC mostrou que a falta de recursos não é a causa principal que impede a ampliação dos serviços públicos. Grande parte do sucesso na melhoria das condições de vida tem a ver com a superação de uma série de mecanismos de controle que determinavam a baixa capacidade do Estado.  
O Regime Diferenciado de Contratações (RDC) também parece resultar de diagnóstico semelhante, sugerindo que a Lei de Compras não atende às necessidades do país. As novas regras, ainda restritas a alguns tipos de contratações, flexibilizam e agilizam os processos e foram amplamente utilizadas em diversas obras da Copa, das Olimpíadas e do PAC. Os resultados têm sido impressionantes, visto que o Estado contrata mais rápido e a preço menor, diminui sensivelmente a litigância no Poder Judiciário, e as obras terminam bem mais rápido do que aquelas regidas pela Lei de Compras.
Apesar dos avanços recentes, ainda há muito a ser construído para destravar a máquina pública brasileira. Por outro lado, é possível dizer que há esperanças. Por exemplo, recentemente foi aprovado no Brasil o que ficou conhecido como orçamento impositivo, uma conquista dos parlamentares, que passam a contar com recursos financeiros garantidos para as suas emendas no Orçamento Geral da União, desde que elas tenham condições de serem implementadas (existência de projeto, habilitação do município, licenciamento ambiental, etc.). Contudo, assim como acontece no PAC, serão comuns as situações em que a garantia de recursos financeiros não será condição suficiente para executar os projetos. Assim, é provável que os parlamentares continuem insatisfeitos com o andamento das suas emendas, visto que para superar os entraves é necessário suprimir as disfunções do controle. Assim, é dessa insatisfação que pode nascer a sensibilidade necessária para compreender os malefícios do círculo vicioso do controle, armadilha institucional a qual a Congresso Nacional, mais que qualquer outra instituição, tem a missão de combater. 


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