terça-feira, 15 de abril de 2014

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONTRATUAL


Por: Rogério Donnini



                A responsabilidade civil pode advir de um liame criado entre credor e devedor num contrato ou num ato unilateral (responsabilidade contratual), bem como da lesão a um direito de uma pessoa, um ato ilícito, sem que exista qualquer vínculo obrigacional (responsabilidade extracontratual). Independentemente da existência ou não de um vínculo obrigacional, o princípio que rege essas situações é o de “a ninguém ofender”, consagrado na máxima alterum non laedere ou neminem laedere, que é parte do célebre texto atribuído a Ulpiano: Suum cuique tribuere, honeste vivere, alterum non laedere(dar a cada um o que é seu, viver honestamente, a ninguém ofender). Enquanto a primeira parte serve de base para a noção de justiça distributiva (suum cuique tribuere), a segunda enaltece os bons costumes e, como conseqüência, a idéia de boa-fé (honeste vivere). 

                Além dessas hipóteses, a responsabilidade pode surgir de situações jurídicas não obrigacionais, como na oferta, regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 30. Na responsabilidade contratual é mister que haja um contrato e este seja válido, embora seja possível a responsabilização daquele que, intencionalmente, viciou o negócio jurídico com o escopo de prejudicar a outra parte. Ressalte-se que é indispensável que o dano decorra do incumprimento ou cumprimento defeituoso da avença.

                Numa relação contratual, a responsabilidade civil nasce do descumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação. Pode, ainda, advir da violação dos chamados deveres acessórios, também denominados deveres anexos ou ainda deveres laterais, que são os deveres de proteção, de informação e de lealdade, decorrentes da cláusula geral de boa-fé (art. 422 do novo Código Civil e art. 4º, nº III, do Código de Defesa do Consumidor).

                Diversamente da responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo) e da responsabilidade contratual, que têm sido objeto de várias obras há muitas décadas, a responsabilidade pós-contratual (culpa post pactum finitum) foi pouco enfrentada pela doutrina e jurisprudência, no plano nacional ou internacional. A responsabilidade daquele que fere os deveres acessórios no momento posterior à extinção do contrato, após o seu cumprimento, é a denominada responsabilidade civil pós-contratual.[1]

                O fundamento para a aplicação da culpa post pactum finitum está nos arts. 422 (boa-fé objetiva)[2] e 421 (função social do contrato)[3], ambos do novo Código Civil. O art. 4º, nº III, do Código de Defesa do Consumidor, serve de abrigo para que seja invocada essa teoria nas relações de consumo.

                No entanto, embora haja fundamento na legislação infraconstitucional, cada vez mais deve ser analisada de maneira mais ampla e dentro da noção de sistema[4]um dado fato. Assim é que, desde o advento da Constituição Federal de l988, a dignidade da pessoa humana, por ser um princípio superior (art. 1º, nº III, do texto constitucional), impõe um comportamento correto, equânime, proporcional, ético, na realização de qualquer negócio jurídico. Desse princípio resulta a cláusula geral de boa-fé objetiva, que determina um comportamento ético entre os contraentes, atitudes que não violem a boa-fé e a probidade. Agir segundo o princípio da dignidade da pessoa humana é o mesmo que atuar embasado na ética.

                Além desse princípio fundamental, seguem os princípios da solidariedade e da igualdade, que, em verdade, são instrumentos da efetiva proteção da dignidade humana. A solidariedade, por sua vez, prevista na Constituição Federal no art. 3º, nº I, um dos objetivos fundamentais estampados na Constituição Federal, está vinculada às cláusulas gerais, uma vez que estas buscam o comportamento solidário entre as partes, ou seja, uma atitude compatível com a concepção social, seja do contrato (art. 421 do novo Código Civil) ou mesmo da propriedade (art. 1.118, § 1º, do novo Código Civil). Já o princípio da igualdade deve ser visto como um princípio de justiça social. Há evidente vínculo desse princípio com uma política de justiça social. Está, assim, compreendido no ideal de igual dignidade social e da pessoa humana.[5]

                O princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput) tem por finalidade realizar a igual dignidade do ser humano, para que seja efetivada a justiça social, estabelecida no art. 170, caput, da Constituição Federal.

                Dessa forma, os princípios da solidariedade e da igualdade têm por fim o desenvolvimento e respeito à pessoa humana. Em sendo assim, não há justiça social com a violação, numa relação contratual, dos deveres acessórios, laterais ou anexos.

                Portanto, a responsabilidade civil pós-contratual existe no nosso sistema jurídico e pode ser invocada nas relações entre particulares, reguladas pelo novo Código Civil, assim como nas relações de consumo, regidas pelo CDC.


Rogério Ferraz Donnini é professor doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Advogado. É autor, dentre outras obras, dos livros Responsabilidade pós-contratual no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, 2004;Imprensa livre, dano moral, dano à imagem, e sua quantificação à luz do novo Código Civil, Editora Método, 2002, em co-autoria com Oduvaldo Donnini; e A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, Editora Saraiva, 2a. edição, 2001.









[1]  V. Rogério Ferraz Donnini, RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, 2004.
[2]   V. Judith Martins-Costa, A Boa-fé no Direito Privado, Editora Revista dos Tribunais, 1999, e António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Almedina, 2ª reimpressão, 2001
[3]  V. Rogério Ferraz Donnini in A Constituição Federal e a concepção social do contrato, in Temas Atuais de Direito Civil na Constituição Federal, obra organizada por Rui Geraldo Camargo Viana e Rosa Maria de Andrade Nery, Editora Revista dos Tribunais, 2000.
[4]  A noção de sistema, segundo Savigny, é a “conexão interna que liga todos os institutos jurídicos e as normas jurídicas numa grande unidade.” (Savigny, Federico, Sistema del Derecho Romano actual, 2ª edição, tradução de Jacinto Mesia e Manuel Poley, Editora Góngora, Madrid, 1950, p. 228).
[5]  J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Almedina, p. 428.

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