Klaus Kayser tem publicado periódicos científicos eletrônicos há tanto tempo, que ainda se lembra quando os enviava a assinantes em disquetes.
Seus 19 anos de experiência o deixaram perfeitamente ciente do problema de fraudes científicas. Em sua opinião, ele toma medidas extraordinárias para proteger a publicação que edita atualmente: Diagnostic Pathology.
Para impedir que autores tentem fazer passar imagens de microscópio copiadas da internet como se fossem suas próprias, ele exige que eles também lhe enviem as lâminas de vidro originais (junto com os artigos).
Mas, apesar de sua vigilância, sinais de possíveis más condutas em pesquisas se infiltraram em alguns artigos publicados em Diagnostic Pathology.
Seis dos 14 artigos da edição de maio de 2014, por exemplo, contêm suspeitas repetições de frases e outras irregularidades. Quando a Scientific American alertou Kayser, ele aparentemente não estava ciente do problema. “Ninguém me disse isso”, defendeu-se. “Sou muito grato a vocês”.
A Diagnostic Pathology, de propriedade da editora Springer, é considerada uma publicação científica respeitável. Sob o comando de Kayser, seu “fator de impacto”, uma medida grosseira da reputação de uma publicação especializada, baseada no número de vezes que um artigo é citado na literatura científica publicada, é 2,411, o que a coloca solidamente nos 25% superiores de todas as publicações científicas monitoradas pela Thomson Reuters em sua publicação Journal Citation Reports; e ocupa o 27º lugar do total de 76 periódicos de patologia classificados.
A publicação de Kayser não está sozinha.
Nos últimos anos, sinais semelhantes de trapaças, ou desonestidade, na literatura revisada por pares surgiram em várias edições do universo de publicações científicas, inclusive nas pertencentes a potências editoriais como a Wiley, Public Library of Science, Taylor & Francis e o Nature Publishing Group (que publica aScientific American).
A aparente fraude está ocorrendo à medida que o mundo de publicações e pesquisas especializadas passa por rápidas mudanças.
Cientistas, para os quais artigos publicados são o caminho para promoções, estabilidade de emprego/cargo ou via de apoio para subvenções, estão competindo mais acirradamente que nunca para conseguir a inclusão de seus artigos em periódicos revisados por pares.
Embora publicações científicas estejam proliferando na internet, a oferta ainda é incapaz de acompanhar a incessante demanda por veículos (outlets) científicos respeitáveis.
A preocupação é que essa pressão possa levar à desonestidade, à fraude.
Os artigos duvidosos não são fáceis de detectar. Tomados individualmente cada trabalho de pesquisa parece legítimo. Mas em uma investigação realizada pelaScientific American, que analisou a linguagem empregada em mais de 100 artigos científicos, foram encontradas evidências de alguns padrões preocupantes — sinais do que parece ser uma tentativa de burlar o sistema de revisão por pares em escala industrial.
Um dos artigos publicados na edição de maio de 2014 de Diagnostic Pathology, por exemplo, superficialmente parece ser uma típica metanálise da literatura revisada por pares. Seus autores, oito cientistas da Universidade Médica de Guangxi, na China, avaliam se diferentes variações em um gene conhecido como XPCpodem ser associadas a câncer gástrico. Eles não encontram nenhuma ligação desse tipo e admitem que seu artigo não é a palavra final sobre o assunto:
“No entanto, é necessário conduzir amplos estudos de amostras, utilizando métodos padronizados imparciais de genotipagem, amostras homogêneas de pacientes com câncer gástrico, e controles bem estabelecidos (com condições muito parecidas). Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre os polimorfismos XPC e o risco de câncer gástrico”.
Essa é uma conclusão perfeitamente normal para um artigo perfeitamente comum. Não é nada que devesse disparar quaisquer sinais de alarme.
Mas compare-o com um trabalho publicado vários anos antes em European Journal of Human Genetics (de propriedade do Nature Publishing Group), uma metanálise sobre se variações em um gene conhecido como CDH1 poderiam ser associadas ao câncer de próstata (CPa) e encontrará o seguinte comentário:
“No entanto, é necessário conduzir amplos ensaios utilizando métodos padronizados imparciais, pacientes homogêneos com PCa e controles bem combinados, com avaliação “cega” (desconhecendo) dos dados. Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre o polimorfismo CDH1—160 C/A e o risco de CPa”.
O palavreado é praticamente idêntico, inclusive a estranha frase “levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão”. As únicas diferenças substanciais são os genes específicos (CDH1 em vez de XPC) e a doença (câncer gástrico em vez de PCa).
Esse não é um simples caso de plágio. Muitas equipes de pesquisas aparentemente independentes andaram plagiando a mesma passagem.
Um artigo publicado em PLoS ONE talvez possa levar futuramente à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no geneXRCC1 e o risco de câncer de tireóide.
Outro trabalho, publicado em International Journal of Cancer (publicada pela Wiley) pode acabar levando à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no gene XPA e o risco de câncer... e assim por diante.
Às vezes há pequenas variações na redação, mas em mais de uma dezena de artigos encontramos uma linguagem quase idêntica com diferentes genes e doenças aparentemente inseridos no parágrafo em questão; como uma versão surreal de Mad Libs, um modelo de jogo de palavras inventado na década de 50, no qual os participantes preenchem lacunas com termos ausentes em uma dada passagem.
A Scientific American encontrou outros exemplos de pesquisas do tipo “preencha as lacunas”.
Uma busca da frase “excluído devido à óbvia irrelevância” recuperou mais de uma dezena de artigos de vários tipos, todos, exceto um, escritos por cientistas da China.
A formulação “utilizando uma forma padronizada, dados de estudos publicados” também produz mais de uma dezena de artigos de pesquisa, todos da China. O chamado gráfico de dispersão em funil, funil invertido ou “árvore de natal” (funnel plot, em inglês) de “Begger” detecta dezenas de casos, todos procedentes da China.
“Esse sistema de verificação é particularmente revelador. Não existe uma coisa como um funil de Begger.“Ele simplesmente não existe. Essa é a questão”, salienta Guillaume Filion, um biólogo no Centro para Regulação Genômica em Barcelona, na Espanha (pdf).
Dois estatísticos — Colin Begg e Matthias Egger — inventaram, cada um, testes e ferramentas para avaliar o viés de uma publicação e procurar preconceitos que se infiltramem metanálises. O“funil de Begger” parece ser um híbrido acidental da fusão dos dois nomes.
Filion detectou a proliferação de testes “de Begger” por acaso.
Enquanto procurava por tendências em artigos em publicações científicas médicas, ele encontrou artigos que tinham títulos quase idênticos, escolhas similares de gráficos e os mesmos erros peculiares, como o “funil de Begger”.
Ele presume que os trabalhos vieram da mesma fonte, embora tenham sido ostensivamente escritos por diferentes grupos de autores. “É difícil imaginar que 28 pessoas inventassem independentemente o nome de um teste estatístico”, argumenta Filion. “É por isso que ficamos muito chocados”.
Uma rápida busca na internet revela serviços que oferecem, por uma taxa, organizar a autoria de trabalhos a serem publicados em veículos revisados por pares. Eles parecem atender a pesquisadores que procuram uma maneira rápida [e desonesta] para serem publicados em um periódico científico de prestígio internacional.
Em novembro, a Scientific American pediu a um repórter que fala mandarim, a língua oficial da China, que contatasse a MedChina, que oferece dezenas de contratos/acordos de “temas científicos para venda” e “transferência de artigos” para publicações científicas.
Posando como uma pessoa interessada em comprar uma autoria científica, o repórter conversou com um representante da entidade, que lhe explicou que os artigos já estavam mais ou menos aceitos para publicação em periódicos especializados revisados por pares. Aparentemente, tudo o que precisava ser feito era um pouco de trabalho de edição e revisão.
O preço, por sua vez, dependia, em parte, do fator de impacto da publicação-alvo e de se o artigo era experimental ou metanalítico.
Nesse caso, o representante da MedChina ofereceu a autoria de uma metanálise que associava uma proteína ao câncer de tireóide papilar destinada a ser publicada em um periódico com fator de impacto de 3,353. O custo: 93 mil renmimbis (RMB, a moeda oficial da China) equivalentes a cerca de US$ 15 mil.
O veículo mais provável pretendido para o artigo mediado pela MedChina é a publicação Clinical Endocrinology; um de cinco periódicos científicos com fator de impacto de 3,353 e o mais próximo do assunto descrito.
“Obviamente, essa é uma questão de grande preocupação”, admite John Bevan, um editor sênior da publicação. “Estou alarmado ao pensar que isso está acontecendo e inundando o mercado”.
Aproximadamente duas semanas depois de ter sido contatado pela Scientific American, Bevan confirmou que um artigo de aspecto suspeito sobre biomarcadores para câncer de tireóide papilar, que teve o acréscimo de um autor durante o processo de revisões, foi identificado e rejeitado.
Grande parte do financiamento para esses trabalhos suspeitos vem do governo chinês.
Dos primeiros 100 artigos identificados pela Scientific American, 24 haviam recebido financiamento da Fundação Nacional de Ciência Natural da China (NSFC, na sigla em inglês), uma agência governamental de financiamento equivalente a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos. Outros 17 reconheceram que obtiveram subvenções de outras fontes do governo.
Yang Wei, presidente da NSFC, confirmou que os 24 trabalhos suspeitos identificados pela Scientific American foram posteriormente encaminhados ao Birô de Disciplina, Inspeção, Supervisão e Auditoria da Fundação (pdf), que investiga várias centenas de alegações de má conduta a cada ano.
“Dezenas de ações disciplinares têm sido tomadas pela NSFC anualmente por má conduta em pesquisas, embora casos de ghostwriting (artigos assinados por “escritores-fantasmas”, em tradução literal) sejam menos comuns”, informou Yang por e-mail.
No ano passado, uma das ações disciplinares da entidade envolveu um cientista que comprou uma proposta de financiamento de um site na internet. Yang salienta que a NSFC toma medidas para combater má conduta, o que inclui a recente instalação de uma “verificação de similaridade” para detectar possíveis plágios em propostas para financiamentos.
(No ano em que o sistema entrou on-line a verificação encontrou várias centenas de casos de “similaridades consideráveis” em um total de cerca de 150 mil solicitações de verbas, informou Yang.) Mas quando se trata de “fábricas de artigos acadêmicos não temos muita experiência e certamente ficaremos felizes em ouvir suas sugestões”, admitiu ele.
Alguns editores só estão se inteirando agora do problema das “fábricas de artigos” chinesas.
“Eu não estava ciente de que havia um mercado para autorias por aí”, reconhece Jigisha Patel, diretor editorial associado da BioMed Central para integridade de pesquisa. Agora que a editora de publicações científicas (de propriedade da Springer e publicadora da Diagnostic Pathology) foi alertada para o problema, “podemos investigar isso e lidar com isso”, garante Patel.
Duas semanas após ter sido contatada pela Scientific American, a BioMed Central anunciou que havia identificado cerca de 50 manuscritos que tinham sido avaliados por pares revisores falsos. A editora declarou ao Retraction Watch blog [um blog que monitora retratações acadêmicas] que “uma terceira parte pode estar envolvida, e influenciando o processo de revisão por pares”. É possível que esses manuscritos tenham vindo de fábricas de artigos.
A Scientific American conseguiu verificar os títulos e autores de cerca de meia dúzia deles. Todos parecem muito similares em estilo e assunto a outras metanálises escritas por fábricas de artigos, e todos eram de grupos de autores chineses.
Outras editoras começaram a combater o fluxo de materiais duvidosos.
Damian Pattinson, diretor editorial da PLoS ONE, informa que a publicação instituiu salvaguardas em abril passado. “Toda metanálise que recebemos tem que passar por uma verificação editorial específica... “que força autores a fornecerem informações adicionais, inclusive uma justificativa do porquê eles realizaram o estudo, em primeiro lugar”, explica.
“Como resultado disso, a proporção de artigos que de fato são encaminhados a revisores caiu cerca de 90%. Portanto, estamos muito cientes desse problema”.
Ainda assim, a lista compilada pela Scientific American contém quatro artigos suspeitos que foram publicados em PLoS ONE depois que as salvaguardas foram instituídas, e a autoria de um próximo artigo da PLoS ONE foi colocada à venda pela MedChina, enquanto o material estava sendo escrito.
Quando perguntamos a Pattinson sobre esses artigos, ele respondeu: “Corrigiremos e retrataremos artigos se houver qualquer indicação de má conduta. A questão é um problema, do qual estamos muito cientes”.
A BMC, Public Library of Science e outras editoras utilizam software de verificação de plágio para tentar reduzir fraudes. Mas software nem sempre resolve esse problema em particular em publicações científicas, adverte Patel, acrescentando: “fábricas de artigos acrescem mais uma camada de complexidade ao problema. Isso é muito preocupante”.
No momento, editoras estão travando uma batalha contra a corrente, muito difícil. “Sem informação privilegiada (de insiders) é muito difícil policiar isso”, queixa-se John Bevan da Clinical Endocrinology.
A publicação e sua editora, a Wiley, estão tentando fechar brechas no processo editorial para detectar mudanças tardias suspeitas em autorias e outras irregularidades. “É preciso aceitar que pessoas estão submetendo trabalhos em boa fé e honestidade”, argumenta Bevan.
Essa é, de fato, a ameaça essencial.
Agora que várias empresas descobriram como ganhar dinheiro em cima da má conduta científica, essa suposição de honestidade está correndo o risco de se tornar um anacronismo.
“Todo o sistema de revisão por pares funciona na base da confiança”, salienta Damian Pattinson, e acrescenta que, se é questionada, o sistema tem dificuldade para lidar com isso.
“Temos um problema aqui”, admite Guillaume Filion. Ele acredita que o dilúvio está apenas começando. “Há tanta pressão e tanto dinheiro em jogo que veremos todos os tipos de excessos no futuro”.
Reportagem adicional por Paris Liu.
A lista citada da Scientific American contém 100 artigos publicados que parecem ter as características de ciência do tipo “preencha as lacunas”.
A inclusão nela não implica que qualquer dado trabalho tenha sido escrito por uma fábrica de artigos, nem implica que seja definitivamente um plágio. Mas, em vista do padrão de redação e das similaridades desses materiais com outros publicados previamente, acreditamos que eles são dignos de escrutínio por seus editores. >>Ver a lista [em inglês].
Há muito mais artigos suspeitos por aí; e muitos mais são publicados todos os dias. Esses simplesmente são os 100 primeiros que encontramos.
Leituras adicionais (em inglês):
Filion, Guillaume. "A flurry of copycats on PubMed."
Oransky, Ivan. "Publisher discovers 50 manuscripts involving fake peer reviewers."
Ioannidis J.P.A., Chang C. Q., Lam T. K., Schully S. D., Khoury M. J. "The Geometric Increase in Meta-Analyses from China in the Genomic Era." PLoS ONE 8(6): e65602. doi:10.1371/journal.pone.0065602
Nos últimos anos, sinais semelhantes de trapaças, ou desonestidade, na literatura revisada por pares surgiram em várias edições do universo de publicações científicas, inclusive nas pertencentes a potências editoriais como a Wiley, Public Library of Science, Taylor & Francis e o Nature Publishing Group (que publica aScientific American).
A aparente fraude está ocorrendo à medida que o mundo de publicações e pesquisas especializadas passa por rápidas mudanças.
Cientistas, para os quais artigos publicados são o caminho para promoções, estabilidade de emprego/cargo ou via de apoio para subvenções, estão competindo mais acirradamente que nunca para conseguir a inclusão de seus artigos em periódicos revisados por pares.
Embora publicações científicas estejam proliferando na internet, a oferta ainda é incapaz de acompanhar a incessante demanda por veículos (outlets) científicos respeitáveis.
A preocupação é que essa pressão possa levar à desonestidade, à fraude.
Os artigos duvidosos não são fáceis de detectar. Tomados individualmente cada trabalho de pesquisa parece legítimo. Mas em uma investigação realizada pelaScientific American, que analisou a linguagem empregada em mais de 100 artigos científicos, foram encontradas evidências de alguns padrões preocupantes — sinais do que parece ser uma tentativa de burlar o sistema de revisão por pares em escala industrial.
Um dos artigos publicados na edição de maio de 2014 de Diagnostic Pathology, por exemplo, superficialmente parece ser uma típica metanálise da literatura revisada por pares. Seus autores, oito cientistas da Universidade Médica de Guangxi, na China, avaliam se diferentes variações em um gene conhecido como XPCpodem ser associadas a câncer gástrico. Eles não encontram nenhuma ligação desse tipo e admitem que seu artigo não é a palavra final sobre o assunto:
“No entanto, é necessário conduzir amplos estudos de amostras, utilizando métodos padronizados imparciais de genotipagem, amostras homogêneas de pacientes com câncer gástrico, e controles bem estabelecidos (com condições muito parecidas). Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre os polimorfismos XPC e o risco de câncer gástrico”.
Essa é uma conclusão perfeitamente normal para um artigo perfeitamente comum. Não é nada que devesse disparar quaisquer sinais de alarme.
Mas compare-o com um trabalho publicado vários anos antes em European Journal of Human Genetics (de propriedade do Nature Publishing Group), uma metanálise sobre se variações em um gene conhecido como CDH1 poderiam ser associadas ao câncer de próstata (CPa) e encontrará o seguinte comentário:
“No entanto, é necessário conduzir amplos ensaios utilizando métodos padronizados imparciais, pacientes homogêneos com PCa e controles bem combinados, com avaliação “cega” (desconhecendo) dos dados. Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre o polimorfismo CDH1—160 C/A e o risco de CPa”.
O palavreado é praticamente idêntico, inclusive a estranha frase “levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão”. As únicas diferenças substanciais são os genes específicos (CDH1 em vez de XPC) e a doença (câncer gástrico em vez de PCa).
Esse não é um simples caso de plágio. Muitas equipes de pesquisas aparentemente independentes andaram plagiando a mesma passagem.
Um artigo publicado em PLoS ONE talvez possa levar futuramente à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no geneXRCC1 e o risco de câncer de tireóide.
Outro trabalho, publicado em International Journal of Cancer (publicada pela Wiley) pode acabar levando à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no gene XPA e o risco de câncer... e assim por diante.
Às vezes há pequenas variações na redação, mas em mais de uma dezena de artigos encontramos uma linguagem quase idêntica com diferentes genes e doenças aparentemente inseridos no parágrafo em questão; como uma versão surreal de Mad Libs, um modelo de jogo de palavras inventado na década de 50, no qual os participantes preenchem lacunas com termos ausentes em uma dada passagem.
A Scientific American encontrou outros exemplos de pesquisas do tipo “preencha as lacunas”.
Uma busca da frase “excluído devido à óbvia irrelevância” recuperou mais de uma dezena de artigos de vários tipos, todos, exceto um, escritos por cientistas da China.
A formulação “utilizando uma forma padronizada, dados de estudos publicados” também produz mais de uma dezena de artigos de pesquisa, todos da China. O chamado gráfico de dispersão em funil, funil invertido ou “árvore de natal” (funnel plot, em inglês) de “Begger” detecta dezenas de casos, todos procedentes da China.
“Esse sistema de verificação é particularmente revelador. Não existe uma coisa como um funil de Begger.“Ele simplesmente não existe. Essa é a questão”, salienta Guillaume Filion, um biólogo no Centro para Regulação Genômica em Barcelona, na Espanha (pdf).
Dois estatísticos — Colin Begg e Matthias Egger — inventaram, cada um, testes e ferramentas para avaliar o viés de uma publicação e procurar preconceitos que se infiltramem metanálises. O“funil de Begger” parece ser um híbrido acidental da fusão dos dois nomes.
Filion detectou a proliferação de testes “de Begger” por acaso.
Enquanto procurava por tendências em artigos em publicações científicas médicas, ele encontrou artigos que tinham títulos quase idênticos, escolhas similares de gráficos e os mesmos erros peculiares, como o “funil de Begger”.
Ele presume que os trabalhos vieram da mesma fonte, embora tenham sido ostensivamente escritos por diferentes grupos de autores. “É difícil imaginar que 28 pessoas inventassem independentemente o nome de um teste estatístico”, argumenta Filion. “É por isso que ficamos muito chocados”.
Uma rápida busca na internet revela serviços que oferecem, por uma taxa, organizar a autoria de trabalhos a serem publicados em veículos revisados por pares. Eles parecem atender a pesquisadores que procuram uma maneira rápida [e desonesta] para serem publicados em um periódico científico de prestígio internacional.
Em novembro, a Scientific American pediu a um repórter que fala mandarim, a língua oficial da China, que contatasse a MedChina, que oferece dezenas de contratos/acordos de “temas científicos para venda” e “transferência de artigos” para publicações científicas.
Posando como uma pessoa interessada em comprar uma autoria científica, o repórter conversou com um representante da entidade, que lhe explicou que os artigos já estavam mais ou menos aceitos para publicação em periódicos especializados revisados por pares. Aparentemente, tudo o que precisava ser feito era um pouco de trabalho de edição e revisão.
O preço, por sua vez, dependia, em parte, do fator de impacto da publicação-alvo e de se o artigo era experimental ou metanalítico.
Nesse caso, o representante da MedChina ofereceu a autoria de uma metanálise que associava uma proteína ao câncer de tireóide papilar destinada a ser publicada em um periódico com fator de impacto de 3,353. O custo: 93 mil renmimbis (RMB, a moeda oficial da China) equivalentes a cerca de US$ 15 mil.
O veículo mais provável pretendido para o artigo mediado pela MedChina é a publicação Clinical Endocrinology; um de cinco periódicos científicos com fator de impacto de 3,353 e o mais próximo do assunto descrito.
“Obviamente, essa é uma questão de grande preocupação”, admite John Bevan, um editor sênior da publicação. “Estou alarmado ao pensar que isso está acontecendo e inundando o mercado”.
Aproximadamente duas semanas depois de ter sido contatado pela Scientific American, Bevan confirmou que um artigo de aspecto suspeito sobre biomarcadores para câncer de tireóide papilar, que teve o acréscimo de um autor durante o processo de revisões, foi identificado e rejeitado.
Grande parte do financiamento para esses trabalhos suspeitos vem do governo chinês.
Dos primeiros 100 artigos identificados pela Scientific American, 24 haviam recebido financiamento da Fundação Nacional de Ciência Natural da China (NSFC, na sigla em inglês), uma agência governamental de financiamento equivalente a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos. Outros 17 reconheceram que obtiveram subvenções de outras fontes do governo.
Yang Wei, presidente da NSFC, confirmou que os 24 trabalhos suspeitos identificados pela Scientific American foram posteriormente encaminhados ao Birô de Disciplina, Inspeção, Supervisão e Auditoria da Fundação (pdf), que investiga várias centenas de alegações de má conduta a cada ano.
“Dezenas de ações disciplinares têm sido tomadas pela NSFC anualmente por má conduta em pesquisas, embora casos de ghostwriting (artigos assinados por “escritores-fantasmas”, em tradução literal) sejam menos comuns”, informou Yang por e-mail.
No ano passado, uma das ações disciplinares da entidade envolveu um cientista que comprou uma proposta de financiamento de um site na internet. Yang salienta que a NSFC toma medidas para combater má conduta, o que inclui a recente instalação de uma “verificação de similaridade” para detectar possíveis plágios em propostas para financiamentos.
(No ano em que o sistema entrou on-line a verificação encontrou várias centenas de casos de “similaridades consideráveis” em um total de cerca de 150 mil solicitações de verbas, informou Yang.) Mas quando se trata de “fábricas de artigos acadêmicos não temos muita experiência e certamente ficaremos felizes em ouvir suas sugestões”, admitiu ele.
Alguns editores só estão se inteirando agora do problema das “fábricas de artigos” chinesas.
“Eu não estava ciente de que havia um mercado para autorias por aí”, reconhece Jigisha Patel, diretor editorial associado da BioMed Central para integridade de pesquisa. Agora que a editora de publicações científicas (de propriedade da Springer e publicadora da Diagnostic Pathology) foi alertada para o problema, “podemos investigar isso e lidar com isso”, garante Patel.
Duas semanas após ter sido contatada pela Scientific American, a BioMed Central anunciou que havia identificado cerca de 50 manuscritos que tinham sido avaliados por pares revisores falsos. A editora declarou ao Retraction Watch blog [um blog que monitora retratações acadêmicas] que “uma terceira parte pode estar envolvida, e influenciando o processo de revisão por pares”. É possível que esses manuscritos tenham vindo de fábricas de artigos.
A Scientific American conseguiu verificar os títulos e autores de cerca de meia dúzia deles. Todos parecem muito similares em estilo e assunto a outras metanálises escritas por fábricas de artigos, e todos eram de grupos de autores chineses.
Outras editoras começaram a combater o fluxo de materiais duvidosos.
Damian Pattinson, diretor editorial da PLoS ONE, informa que a publicação instituiu salvaguardas em abril passado. “Toda metanálise que recebemos tem que passar por uma verificação editorial específica... “que força autores a fornecerem informações adicionais, inclusive uma justificativa do porquê eles realizaram o estudo, em primeiro lugar”, explica.
“Como resultado disso, a proporção de artigos que de fato são encaminhados a revisores caiu cerca de 90%. Portanto, estamos muito cientes desse problema”.
Ainda assim, a lista compilada pela Scientific American contém quatro artigos suspeitos que foram publicados em PLoS ONE depois que as salvaguardas foram instituídas, e a autoria de um próximo artigo da PLoS ONE foi colocada à venda pela MedChina, enquanto o material estava sendo escrito.
Quando perguntamos a Pattinson sobre esses artigos, ele respondeu: “Corrigiremos e retrataremos artigos se houver qualquer indicação de má conduta. A questão é um problema, do qual estamos muito cientes”.
A BMC, Public Library of Science e outras editoras utilizam software de verificação de plágio para tentar reduzir fraudes. Mas software nem sempre resolve esse problema em particular em publicações científicas, adverte Patel, acrescentando: “fábricas de artigos acrescem mais uma camada de complexidade ao problema. Isso é muito preocupante”.
No momento, editoras estão travando uma batalha contra a corrente, muito difícil. “Sem informação privilegiada (de insiders) é muito difícil policiar isso”, queixa-se John Bevan da Clinical Endocrinology.
A publicação e sua editora, a Wiley, estão tentando fechar brechas no processo editorial para detectar mudanças tardias suspeitas em autorias e outras irregularidades. “É preciso aceitar que pessoas estão submetendo trabalhos em boa fé e honestidade”, argumenta Bevan.
Essa é, de fato, a ameaça essencial.
Agora que várias empresas descobriram como ganhar dinheiro em cima da má conduta científica, essa suposição de honestidade está correndo o risco de se tornar um anacronismo.
“Todo o sistema de revisão por pares funciona na base da confiança”, salienta Damian Pattinson, e acrescenta que, se é questionada, o sistema tem dificuldade para lidar com isso.
“Temos um problema aqui”, admite Guillaume Filion. Ele acredita que o dilúvio está apenas começando. “Há tanta pressão e tanto dinheiro em jogo que veremos todos os tipos de excessos no futuro”.
Reportagem adicional por Paris Liu.
A lista citada da Scientific American contém 100 artigos publicados que parecem ter as características de ciência do tipo “preencha as lacunas”.
A inclusão nela não implica que qualquer dado trabalho tenha sido escrito por uma fábrica de artigos, nem implica que seja definitivamente um plágio. Mas, em vista do padrão de redação e das similaridades desses materiais com outros publicados previamente, acreditamos que eles são dignos de escrutínio por seus editores. >>Ver a lista [em inglês].
Há muito mais artigos suspeitos por aí; e muitos mais são publicados todos os dias. Esses simplesmente são os 100 primeiros que encontramos.
Leituras adicionais (em inglês):
Filion, Guillaume. "A flurry of copycats on PubMed."
Oransky, Ivan. "Publisher discovers 50 manuscripts involving fake peer reviewers."
Ioannidis J.P.A., Chang C. Q., Lam T. K., Schully S. D., Khoury M. J. "The Geometric Increase in Meta-Analyses from China in the Genomic Era." PLoS ONE 8(6): e65602. doi:10.1371/journal.pone.0065602
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