domingo, 1 de novembro de 2015

Mortalidade nas Américas gerou nova era de carbono

Por David Biello

A atmosfera registrou a massiva mortandade, a escravidão e as guerras que se seguiram ao ano de 1492, marco da descoberta da América.

A aniquilação de estimados 50 milhões de americanos nativos por varíola e guerras, assim com a escravização de africanos para trabalhar nas Américas recém-esvaziadas e despovoadas, permitiram o desenvolvimento de grandes florestas em antigas terras de lavouras.

Em 1610, o crescimento de todas aquelas árvores tinha extraído dióxido de carbono (CO2) suficiente do ar para porvocar uma queda de pelo menos sete partes por milhão (ppm) nas concentrações atmosféricas do mais importante gás de efeito estufa e dar início à chamada Pequena Era Glacial, ou Pequena Idade do Gelo.

Com base nessa mudança drástica, 1610 deveria ser considerado o marco inicial de uma proposta nova época geológica: o Antropoceno, ou a era recente da humanidade, de acordo com os autores de um novo estudo.

“Situar o Antropoceno nessa época destaca a noção de que o colonialismo, o comércio global e o desejo de riqueza e lucros começaram a pressionar a Terra rumo a esse novo estado”, argumenta o ecologista Simon Lewis da University of Leeds e da University College London (UCL).

“Somos uma força geológica da natureza, mas essa força é diferente de qualquer outra semelhante na natureza, na medida em que ela é reflexiva, e pode ser usada, retirada ou modificada”.

Lewis e seu colega Mark Maslin, um geólogo também da UCL, chamam a redução de CO2 atmosférico “pico Orbis”, a palavra, em latim, para mundo, porque após 1492 a civilização humana se globalizou progressivamente.

No artigo pulicado em 12 de março na revista Nature, eles sustentam que os impactos humanos no planeta têm sido suficientemente dramáticos para justificar um reconhecimento formal da época Antropocena e sugerem que o pico Orbis deveria servir como marco do início desse novo período. (A Scientific Americanintegra o Nature Publishing Group.)
A ideia do Antropoceno não é nova.

Já no século 18, a primeira tentativa científica de traçar uma cronologia da história geológica da Terra culminou em uma época humana. No século 19, a noção havia se tornado comum e aparecia como Antropozoico, ou a “Era do Homem”, nos livros didáticos de geologia.

Em meados do século 20, porém, a ideia de Holoceno, palavra que significa “inteiramente recente” em grego e designa o último período em que as grandes camadas de gelo glacial recuaram, havia passado a dominar e a incorporar a noção de humanos como um elemento importante, mas não definidor, da época atual.

De acordo com diversos cientistas, de geólogos a climatologistas, essa noção já não satisfaz.

Impactos humanos simplesmente se agigantaram. Tanto faz se é a liberação fenomenal de nitrogênio no mundo devido à invenção do chamado processo Haber-Bosch para extrair do ar o nutriente vital para sustentar a agricultura, ou se é o fato de que a civilização está movendo mais terra (solo) e pedras que todos os rios do planeta juntos.

Pesquisadores apresentaram diversas propostas para quando essa suposta nova época teria começado.

Algumas a ligam ao início da extinção em massa de grandes mamíferos como mamutes lanudos e cangurus gigantes há cerca de 50 mil anos ou ao advento da agricultura há aproximadamente 10 mil anos. Outras sustentam que o Antropoceno é mais recente, associado ao início do aumento das concentrações atmosféricas de CO2 após a invenção de uma eficiente máquina a vapor acionada a carvão.

A mais proeminente proposta atual conecta a alvorada do Antropoceno à da era nuclear (radionuclídeos de longa vida também deixam um registro de longa vida em rochas).

A explosão populacional e a intensificação do consumo de tudo, de cobre a milho, depois de 1950 mais ou menos, conhecidas como a “Grande Aceleração”, coincidem aproximadamente com esse marcador nuclear. Mas o mesmo se aplica ao advento de plásticos e outros resíduos da sociedade industrial, que Jan Zalasiewicz, da University of Leicester, na Inglaterra, apelidou “tecnofósseis”.

Zalasiewicz é o geólogo responsável pelo grupo que está defendendo a incorporação do Antropoceno na escala de tempo geológico.

Consequentemente, os radionuclídeos poderiam servir como o que geólogos chamam Global Boundary Stratotype Section and Point (Seção e Ponto de Limite Global de Estratotipo, GSSP), mais conhecidos como “limites estratigráficos” ou um “golden spike” (“cravo dourado”, em tradução literal).

Talvez o limite mais famoso desse tipo seja a fina camada de irídio encontrada em rochas expostas perto de El Kef, na Tunísia, que “conta” a história do impacto de asteroide que teria colocado fim ao reinado dos dinossauros, marcando, também, o fim do Cretáceo há cerca de 65 milhões de anos.
Lewis e Maslin rejeitam esse marco radionuclídeo porque ele não está vinculado a um “evento transformador do mundo”, ou pelo menos ainda não, embora seja um sinal claro registrado em rochas.

Por outro lado, o pico Orbis de 1610, proposto por eles, reflete tanto o mais recente nadir de CO2 como a redistribuição de plantas e animais ao redor do mundo por volta dessa época (conhecido como Intercâmbio Colombiano), que literalmente foi um evento que mudou o mundo.

Muito parecido com o “cravo dourado” que marca o fim da era dos dinossauros, o proposto pico Orbis em si seria vinculado ao ponto baixo das concentrações atmosféricas de CO2 por volta de 1610, como está registrado em núcleos de gelo, onde diminutas bolhas de ar aprisionadas recontam as condições atmosféricas passadas.

Novas evidências geológicas virão do aparecimento de pólen de milho daquela época em núcleos sedimentares extraídos na Europa e na Ásia, entre outros indicadores que complementarão o registro de CO2.

Portanto, cientistas que estão investigando núcleos de gelo, lama e até rochas encontrarão essa mudança de época, ou período, futuramente.
A redução de CO2 coincide com o que climatologistas chamam Pequena Era Glacial.

Esse evento de resfriamento pode ter sido associado a florestas regeneradas e outras plantas que cresciam em cerca de 50 milhões de hectares de terras abandonadas por humanos após a massiva mortandade provocada por doença(s) e guerra(s), sugerem Lewis e Maslin.

E não foi apenas a morte de milhões de americanos nativos, mas também a aniquilação de até 75% da população de dois continentes. A escravização (ou morte) de até 28 milhões de africanos como força de trabalho nas novas terras, também pode ter contribuído para o impacto climático.

As populações das regiões do noroeste africano, mais afetadas pelo tráfico escravagista, não começaram a se recuperar até o final do século 19.

Em outras palavras, de 1600 a 1900 aproximadamente grandes faixas daquela região poderiam ter permitido uma regeneração natural de florestas suficientemente abrangente para reduzir o CO2, assim como ocorre com a rebrota da Amazônia e das grandes florestas da América do Norte, embora essa hipótese continue controversa.

Tanto faz se a data é 1610, 1945 ou 50 mil a.C., a nova designação significaria que estamos vivendo em uma nova época Antropocena, parte do período Quaternário, que começou há mais 2,5 milhões de anos, com o advento da cíclica expansão e recuo de massivos glaciares.

O Quaternário é parte da era Cenozoica (“vida recente”) que teve início há 66 milhões de anos e é, por sua vez, parte da era do Fenozoico (“vida revelada”), que se originou há 541 milhões de anos e abrange toda a vida complexa que já viveu nesse planeta.
No fim, o Antropoceno talvez suplante seu antigo rival, o Holoceno.

“Ele só é designado uma época, enquanto outros períodos interglaciais não são, porque lá no século 18 geólogos acreditavam que humanos eram uma espécie muito recente, que havia chegado por meio da intervenção divina, ou evoluído aqui na Terra durante o Holoceno”, argumenta Lewis.

Mas agora cientistas sabem que o Homo sapiens surgiu há mais de 200 mil anos, na época do Pleistoceno. “Humanos são uma espécie do Pleistoceno; portanto, a razão para chamar o Holoceno uma época é uma relíquia do passado”, conclui ele.

Maslin sugere rebaixar o Holoceno a um estágio dentro do Pleistoceno, como outros períodos interglaciais no registro geológico. Mas Zalasiewicz discorda dessa tentativa de se livrar dessa época.

“Não vejo necessidade para isso”, defende-se ele. “Traçar sistematicamente um limite Holoceno-Antropoceno em termos globais seria um processo muito esclarecedor sob muitos aspectos”, insiste.

As mudanças provocadas por humanos ao longo dos últimos séculos, se não mais, ecoarão no futuro, seja na forma de espécies transplantadas, como minhocas ou gatos; pólen de plantas cultivadas para alimentos em sedimentos lacustres; ou até cidades inteiras fossilizadas.

Ainda assim, independentemente de o Antropoceno ter começado há dezenas, centenas ou milhares de anos, ele só responde por uma diminuta fração da história da Terra. E essa nova época poderia terminar rapidamente ou perdurar durante milênios, dependendo das escolhas que nossa espécie fizer agora.

“Aceitar o Antropoceno reverte 500 anos de descobertas científicas que tornaram os humanos mais e mais insignificantes”, salienta Maslin. “Argumentamos que Homo sapiens são fundamentais para o futuro do único lugar onde se sabe que existe vida”.

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