segunda-feira, 9 de junho de 2014

A argüição de descumprimento de preceito fundamental


Breve análise sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental: conceito, principais aspectos, modalidades.
I. Introdução
A Constituição Federal de 1988 criou no sistema de controle de constitucionalidade a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), uma inovação introduzida pelo legislador constitucional, no artigo 102, parágrafo único. Com a Emenda Constitucional nº 03/93, ocorreu um acréscimo de parágrafos ao artigo 102 da Carta Magna, e a argüição de descumprimento de preceito fundamental passou a ser tratada em seu artigo 102, §1º, da seguinte forma:
Art. 102, § 1º."A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei".
Em razão do termo “na forma da lei”, o STF entendeu que esta norma constitucional era de eficácia limitada, dependente, portanto, de norma regulamentadora. Em 3 de dezembro de 1999 foi sancionada a Lei 9.882, que dispõe sobre o rito da ADPF.

II. A Argüição de Descumprimento e os Preceitos Constitucionais Fundamentais
A ADPF destina-se a proteger os preceitos fundamentais. Surge, então, a questão em torno da definição de preceito fundamental. A questão deve ser solucionada a partir de uma compreensão de valores, pois, a priori, toda norma constitucional é fundamental. Porém, os preceitos fundamentais são aqueles que estão ligados diretamente aos valores supremos do Estado e da Sociedade. Preceito fundamental não significa o mesmo que a expressão princípio fundamental. Trata-se de conceito mais amplo, abrangendo todas as prescrições que dão sentido básico à ordem constitucional. Assim, pode-se conceituar preceito fundamental como toda norma constitucional – norma princípio ou norma regra – que serve de fundamento básico para a conformação e preservação da ordem política e jurídica do Estado.
Apesar de o conceito de “descumprimento” para efeito da ADPF ser consideravelmente mais amplo que o conceito de “inconstitucionalidade”, a Lei 9.882/99, entretanto, reduziu a abrangência da ADPF tão somente aos atos do poder público, mantendo a idéia de englobar atos de qualquer natureza, sejam normativos ou não, inclusive as omissões.

III. Modalidades da Argüição de Descumprimento
A argüição de descumprimento de preceito fundamental pode apresentar-se sob duas modalidades: a autônoma ou direta e a incidental ou indireta.
A argüição sob a forma autônoma está contida no art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/99:
"Art. 1º. A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público".
A argüição autônoma tem natureza objetiva, que pode ser proposta para defesa exclusivamente objetiva contra violação de preceitos fundamentais decorrente de um ato do poder público, seja este ato federal, estadual ou municipal. A argüição sob a modalidade incidental ou indireta está contida no parágrafo único do art. 1º:
"Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição."
Este segundo caso revela a natureza subjetiva-objetiva, incidental ou indireta da argüição de descumprimento de preceito fundamental, pressupondo a existência de controvérsia sobre lei ou ato normativo, de todos os órgãos políticos autônomos, bem como dos anteriores à Constituição.

1. Argüição Direta ou Autônoma
A ADPF direta ou autônoma é uma típica ação de controle concentrado e principal de constitucionalidade com o objetivo de defesa de preceitos fundamentais ameaçados ou lesados por qualquer ato do poder público.

1.1. Legitimidade
O Artigo 2º da Lei nº 9.882/99 aponta como legitimados para propor a ação de descumprimento de preceito fundamental os mesmos sujeitos aptos a propor a ação direta de inconstitucionalidade. Assim, podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade:
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do DF;
V - o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal;
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
São legitimados universais: o Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara de Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e partido político com representação no Congresso Nacional. Os legitimados especiais compreendem o Governador de Estado, a Mesa de Assembléia Legislativa de Estado, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Já os legitimados passivos da ADPF são as autoridades, órgãos ou entidades responsáveis pela prática do ato questionado ou pela omissão impugnada. O Advogado-Geral da União deve desempenhar o mesmo papel exercido no caso de ADIN genérica, ou seja, deve atuar como curador da presunção de constitucionalidade do ato questionado, seja ele normativo ou não. Certo que, em se tratando de omissão do poder público, à semelhança da ADIN por omissão, não cabe a atuação do AGU, salvo em se tratando de omissão parcial.

1.2. Competência
A competência para julgamento da ADPF pertence ao Supremo Tribunal Federal (STF), tendo como paradigma a Constituição Federal. No plano estadual e tendo como paradigma a Constituição do Estado, o controle pode ser realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado, caso haja previsão deste instituto na respectiva Constituição do Estado. O processo tem natureza objetiva e somente sob o aspecto formal é possível falar-se em partes.

1.3. Procedimento
O procedimento da argüição, tanto autônoma quanto incidental, inicia-se por petição que satisfaça os requisitos do art. 3º da Lei 9.882/99. Não sendo o caso de argüição ou faltando à inicial alguns de seus requisitos, o relator poderá indeferi-la de plano, por decisão sujeita a agravo regimental (art. 4º, §2º).
É cabível a concessão de liminar, caso formulado pedido, mediante o voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal (art. 5º, caput), caso estejam presentes no mínimo 2/3 dos Ministros (8). Esse quorum especial pode ser dispensado em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou, ainda, quando em recesso o STF, hipóteses em que decisão monocrática encontra-se sujeita ao referendo do Tribunal Pleno (§1º do art. 5º).
A Lei 9.882/99, antes da decisão liminar, faculta a prévia oitiva dos órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como do Advogado-Geral da União ou do Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias (art. 5º, §2º).

1.4. Medida liminar
A liminar "poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada" (§3º do art. 5º).
Apreciado o pedido de liminar, se formulado, o prazo de informações destinado às autoridades responsáveis pela prática do ato impugnado é de dez dias (art. 6º).
Mesmo nas argüições incidentais, não é imprescindível a oitiva das partes que compõem a relação processual originária, mas, se entender necessário, poderá relator ouvi-las ou, ainda, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria (art. 6º, §1º).
A interveniência da Procuradoria-Geral da República é obrigatória (CF/88, art. 103, §1º, e Lei 9.882/99).

1.5. Objeto: Os Atos ou Omissões que Descumprem Preceitos Constitucionais Fundamentais
Pela argüição de descumprimento de preceito fundamental são controláveis todos os atos do poder público ofensivos a preceitos constitucionais fundamentais, sejam atos normativos ou não. Assim, o objeto da ADPF abrange:
(a) Atos normativos;
(b) Atos não normativos (atos concretos ou individuais do Estado e da Administração Pública, atos e fatos materiais, atos do poder público regidos pelo direito privado, contratos administrativos, e até mesmo atos judiciais);
(c) Atos anteriores à Constituição.

1.6. Decisão e seus Efeitos
Com o veto ao §1º do art. 8º, segundo o qual era exigida a votação por maioria de 2/3, questiona-se qual o quorum necessário ao julgamento da argüição, principalmente em se tratando de controvérsia envolvendo conflito de direito intertemporal, em que não se exige a obediência ao disposto no art. 97 da CF/88. A resposta a essa questão pode ser obtida pela interpretação compreensiva da norma prevista no art. 5º, caput, que condiciona a concessão da medida liminar à observância do quorum mínimo da maioria absoluta dos membros do Tribunal.
Assim, mesmo em se tratando de tema ligado à revogação de normas pré-constitucionais ou por força de reforma constitucional, no julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, será necessário o quorum qualificado, a despeito da não aplicação do art. 97 da CF/88.
Além disso, a exemplo do art. 27 da Lei 9.868/99, também na Lei 9.882/99 foi consagrada hipótese de exceção à regra da nulidade do ato impugnado, mediante a seguinte previsão: "Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado" (art. 11).
Julgada a argüição, as autoridades responsáveis pela prática do ato impugnado serão comunicadas da decisão, que poderá ainda fixar as condições e o modo de aplicação e interpretação do preceito fundamental (art. 10, caput).
A decisão é imediatamente auto-aplicável, antes mesmo da lavratura do acórdão (art. 10, §1º). A decisão tem efeito vinculante e eficácia contra todos. Então, transitada em julgado, a parte dispositiva da decisão, em razão de seus efeitos “erga omnes” e vinculantes, deverá ser publicada no Diário Oficial (§2º do art. 10). Pode o Supremo, porém, excepcionar a própria regra do efeito “erga omnes” e do efeito declaratório ou “ex tunc” de suas decisões, atribuindo efeitos mais limitados ou constitutivos, ou mesmo “ex nunc”, ou prospectivo sob o fundamento da segurança jurídica e estabilidade das relações. De qualquer forma, a decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido da ADPF é irrecorrível.

2. Argüição Incidental
A argüição incidental de descumprimento de preceito fundamental consiste num instituto de controle concreto de constitucionalidade, em razão de um processo subjetivo onde se discute, com fundamentos relevantes, acerca da aplicação de lei ou ato de poder público em face de um preceito constitucional fundamental.
Aplicam-se à ADPF incidental as mesmas regras aplicadas à ADPF autônoma quanto à legitimidade, competência, procedimento, medida liminar, objeto, decisão e seus efeitos, com algumas observações. A ADPF incidental possibilita o trânsito direto e imediato ao STF de uma questão constitucional relevante, debatida no âmbito de instâncias judiciais ordinárias, que envolva a interpretação e aplicação de um preceito constitucional fundamental.
O ajuizamento da argüição incidental promove uma verdadeira "cisão entre a questão constitucional e as demais suscitadas pelas partes", cuja decisão final do STF possui duas implicações. A primeira implicação, de natureza endoprocessual, faz com que o deslinde da questão constitua antecedente lógico do julgamento da própria causa da qual surgiu o incidente, vinculando tanto as partes como o juízo ordinário. A segunda possui conotação extraprocessual, porque os efeitos da decisão do STF são “erga omnes”, atingindo aqueles que sequer participaram da relação processual, bem como vinculantes em face dos demais órgãos do Poder Público. O STF limita-se a apreciar a questão constitucional, dando-lhe solução adequada sem se manifestar sobre objeto principal relativo ao caso concreto e pendente de julgamento pelos órgãos judiciários.
Trata-se de um controle misto de constitucionalidade, pelo qual se conjugam as dimensões abstrata e difusa, que permite o trânsito do controle difuso para o controle concentrado, mediante um processo de generalização dos efeitos jurídicos do julgado original, a partir de uma "fiscalização abstrata sucessiva". Entretanto, a transição do controle difuso à via concentrada dependerá, sempre, da comprovação da "relevância" da controvérsia constitucional, a ser aferida, geralmente, diante da presença de efetiva divergência jurisdicional na aplicação do texto impugnado.
Assim, a argüição incidental de descumprimento de preceito fundamental completa o sistema nacional de controle abstrato de constitucionalidade, permitindo ao STF seu exercício mesmo em relação às normas municipais, o que viabiliza a efetiva garantia de supremacia da Constituição Federal, aliada à rápida uniformização de sua interpretação.

2.1. Legitimidade Ativa
A legitimidade ativa para propositura da ADPF perante o STF encontra-se disciplinada no art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99. Ocorre que o inciso II ("qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público") foi objeto de veto presidencial.
Assim, somente podem propor a ADPF os legitimados ativos para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 103, CF). Ao interessado que se considerar ameaçado ou lesionado resta, tão-somente, nos termos do art. 2º, §1º, da Lei nº 9.882/99, representar ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo.

2.2. Objeto
Há uma aparente limitação imposta pelo inciso I, parágrafo único, do art. 1º da Lei 8.882/92, segundo o qual a ADPF incidental somente é cabível quando houver controvérsia sobre lei ou ato normativo do poder público. Entretanto, a melhor doutrina entende que o inciso I, parágrafo único, do art. 1º deve ser interpretado em conjunto com o caput do mesmo artigo, pois não teria sentido que a mesma ação, embora submetida a procedimentos distintos, tivesse objeto diverso.

2.3. Controvérsia Constitucional Relevante
A instauração de um processo constitucional pela via argüição incidental somente é admitida em razão de prévia existência de uma controvérsia fundada em norma constitucional relativa a preceito fundamental e que traduza insegurança jurídica, cuja resolução imediata traduz um interesse público. Este dispositivo visa a assegurar que o STF não seja suscitado a resolver questões consideradas de menor relevância. Com isso, o legislador ordinário confere um poder discricionário ao STF com respeito ao conhecimento das questões levadas pela via incidental da ADPF.
Inspirado nos direitos alemão e espanhol, o legislador brasileiro adotou a regra, segundo a qual “não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade” (Lei 9.882/99, art. 4º, §1º). Este dispositivo “consagra o caráter subsidiário da argüição de descumprimento de preceito fundamental no sistema de controle de constitucionalidade, de forma que a ADPF somente pode ser admitida na hipótese de inexistir, no sistema jurídico, outro meio eficaz e célere capaz de sanar, completa e definitivamente, a lesão ao preceito fundamental”. Esta regra, deve, porém, ser compreendida de forma a não esvaziar a utilidade do instituto, o que caracterizaria manifesta inconstitucionalidade.

Bibliografia

Barroso, Luis Roberto. O Controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Ed. Saraiva, 2004.
Cunha Júnior, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da constituição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2004.
Silva. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Ed. Malheiros, 1999

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