segunda-feira, 16 de junho de 2014

Piomiosite em atletas após o uso de esteroides anabolizantes - relato de casos



Pyomyositis in athletes after the use of anabolic steroids: case reports


Nivaldo Souza Cardozo FilhoI; Eric Figueirido GasparI; Karina Levy SiqueiraI; Gustavo Cará MonteiroII; Carlos Vicente AndreoliII; Benno EjnismanIII; Moisés CohenIV
IMédico Ortopedista do Centro de Traumato-ortopedia do Esporte (CETE/Unifesp) e Membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia
IIMédico Assistente do Centro de Traumato-ortopedia do Esporte (CETE/Unifesp)
IIIDoutor em Ortopedia e Chefe do Grupo de Ombro do Centro de Traumato-ortopedia do Esporte (CETE/Unifesp)
IVProfessor Livre Docente do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da EPM/Unifesp, Chefe do CETE/Unifesp



RESUMO
Relato da conduta de cinco casos de piomiosite em atletas após o uso de esteroides anabolizantes. Nos últimos 10 anos foram avaliados cinco atendimentos a atletas no Centro de Traumatologia do Esporte (CETE) - EPM - Unifesp que desenvolveram piomiosite após o uso de esteroides anabolizantes. Todos os pacientes foram diagnosticados clínica e laboratorialmente e por exames de imagem, sendo realizado tratamento cirúrgico (com coleta de material para cultura) e antibioticoterapia. Em quatro casos, os locais de administração foram nos membros superiores e, em um dos casos, nos glúteos bilaterais, além dos membros superiores. Nos cinco casos, houve a ocorrência de leucocitose com neutrofilia no hemograma e, após a limpeza cirúrgica, os germes habituais da pele (S. aureus e S. viridans) foram encontrados na cultura das secreções. A delimitação do abscesso, assim como o estudo do plano muscular em que se encontrava, foi realizada por meio do estudo de imagem com ultrassonografia e ressonância magnética. Todos responderam à antibioticoterapia de amplo espectro e, em dois casos, foi necessário mais de um procedimento cirúrgico devido ao surgimento de mais de um ponto de abscesso com tempo de evolução diferente. O uso de esteroides anabolizantes por alguns atletas pode trazer consequências graves; a intervenção rápida, enérgica e multidisciplinar se faz necessária nesses casos para se evitar resultados não desejáveis. O tratamento adequado curou os atletas completamente, com retorno ao esporte no mesmo nível.
Descritores: Piomiosite; Esteroides/efeitos Adversos; Atletas; Agentes Anabolizantes

ABSTRACT
OBJECTIVE: To report on the management of five cases of pyomyositis in athletes after the use of anabolic steroids.
METHOD: Over the past 10 years, five cases of athletes who developed pyomyositis after using anabolic steroids were attended at the Sports Trauma Center (CETE), EPM-UNIFESP.
RESULTS: All the patients were diagnosed clinically and through laboratory and imaging tests. Surgical treatment was carried out (with collection of material for culturing) and antibiotic therapy was administered. In four cases, the injection sites were in the upper limbs and in one case, in the gluteus muscles bilaterally as well as in the upper limbs. In all five cases, occurrences of leukocytosis and neutrophilia were observed in the hemogram. After debridement, the germs of normal skin (S. aureus and S. viridans) were found in cultures on the secretions. Demarcation of the abscess and examination of the muscle plane in which the abscess was located were performed using ultrasound and magnetic resonance imaging. All the patients responded to broad-spectrum antibiotic therapy. Two cases required more than one surgical procedure because of the appearance of more than one abscess site with different evolution times.
CONCLUSION: The use of anabolic steroids by some athletes may have grave consequences. Rapid, energetic and multidisciplinary intervention is necessary in such cases in order to avoid undesirable results. The right treatment healed the athletes completely, and they returned to their sports at the same level.
Keywords: Pyomyositis; Steroids/adverse Effects; Athletes; Anabolic Agents



INTRODUÇÃO
A piomiosite é uma doença característica de países com clima tropical, por isso é também chamada de miosite tropical. Trata-se de uma afecção sem grande prevalência; dessa forma, muitas vezes pode ocorrer atraso no seu diagnóstico. Se não diagnosticada a tempo pode levar à pioartrite, osteomielite, síndrome compartimental, necrose muscular, sepse ou mesmo ao óbito. A sua ocorrência pode estar associada ao uso de medicamentos imunossupressores, diabetes, pacientes transplantados, AIDS, mieloma múltiplo e ao uso de drogas injetáveis(1-3).
No meio de algumas práticas esportivas existe a crença, de alguns atletas, de que a melhora do desempenho e ganho de massa muscular se consiga através do uso de esteroides anabolizantes. Comumente, o próprio usuário injeta o esteroide no local em que deseja o aumento de massa muscular ignorando os inúmeros riscos e malefícios que isso pode causar. Efeitos sistêmicos dos esteroides anabolizantes incluem fechamento epifisário precoce, atrofia testicular, acne, esterilidade, ginecomastia, afecções hepáticas, esterilidade, calvície e câncer de testículo, resistência à insulina, retenção de sal e água, aumento do colesterol, infarto precoce, entre outros. Efeitos colaterais locais incluem lesão tendínea, fratura por stress, lesão neurológica, celulite, necrose tecidual, abscesso e até mesmo, em casos extremos, à fasceíte necrotizante.
O objetivo deste trabalho foi relatar a ocorrência de casos que demonstraram os efeitos adversos do uso destas substâncias e a importância de uma intervenção rápida e enérgica nestes casos para se evitar resultados insatisfatórios.

RELATO DE CASOS
Caso 1 - Paciente de 29 anos, masculino, procedente de São Paulo, SP, praticante de fisiculturismo, atendido ambulatorialmente com queixa de dor e edema no braço direito. Relata uso de esteroide anabolizante há 10 dias, em domicílio. Ao exame físico, apresentava dor, calor, rubor e flutuação à palpação local. Amplitude de movimentos dolorosa; porém, mantida. Foi internado pelo pronto-socorro; realizados exames laboratoriais (hemograma, VHS e PCR) e de imagem (ultrassonografia e ressonância magnética), confirmando diagnóstico de piomiosite do bíceps braquial. Realizou-se limpeza cirúrgica de urgência, com coleta de material para cultura e colocação de dreno de Penrose, retirado no segundo pós-operatório. O resultado da cultura foi positivo paraStaphylococcus aureus e foi submetido à antibioticoterapia, com retorno ao esporte em 30 dias, sem perda de rendimento (Figura 1).


Caso 2 - Paciente de 31 anos, masculino, procedente de São Paulo, SP, praticante de fisiculturismo, atendido ambulatorialmente com queixa de dor e edema no braço esquerdo. Fez uso de esteroide anabolizante por diversas vezes, sendo a última aplicação há três dias, no local de treinamento. Ao exame físico, apresentava sinais flogísticos no local. Amplitude de movimentos dolorosa limitada. Foi internado pelo pronto-socorro; realizados exames laboratoriais (hemograma, VHS e PCR) e de imagem (ultrassonografia e ressonância magnética), confirmando diagnóstico de piomiosite do bíceps braquial. Submeteu-se à limpeza cirúrgica de urgência, com coleta de material para cultura e colocação de dreno de Penrose, retirado no segundo pós-operatório. O resultado da cultura foi positivo para Staphylococcus aureus e foi submetido à antibioticoterapia, com retorno ao esporte em 42 dias, sem perda de rendimento.
Caso 3 - Paciente de 32 anos, masculino, procedente de Campinas, SP, praticante de jiu-jitsu e fisiculturismo, atendido com queixa de dor no braço direito. Relata uso de esteroide anabolizante há 16 dias, em domicílio. Ao exame físico, apresentava dor e hiperemia local. Amplitude de movimentos dolorosa; porém, mantida. Foi internado pelo pronto-socorro; realizados exames laboratoriais (hemograma, VHS e PCR) e de imagem (ultrassonografia e ressonância magnética), confirmando diagnóstico de piomiosite do bíceps braquial e tríceps, ipsilateral. Realizou-se limpeza cirúrgica de urgência, com coleta de material para cultura e colocação de dreno de Penrose, retirado no segundo pós-operatório. O resultado da cultura foi positivo para Streptococcus viridans e foi submetido à antibioticoterapia, com retorno ao esporte em 38 dias, sem perda de rendimento (Figuras 2 e 3).




Caso 4 - Paciente de 34 anos, masculino, procedente de São Paulo, SP, praticante de fisiculturismo e natação, atendido com queixa de dor e edema no braço esquerdo. Relata uso de esteroide anabolizante há sete dias, no local de treinamento. Ao exame físico, apresentava dor, calor, rubor e flutuação à palpação do braço. Amplitude de movimentos mantida, sem bloqueio articular. Encaminhado ao pronto-socorro, realizando-se exames laboratoriais (hemograma, VHS e PCR) e de imagem (ultrassonografia e ressonância magnética), confirmando diagnóstico de piomiosite do bíceps braquial. Realizou-se limpeza cirúrgica de urgência, coletando-se material para cultura e colocação de dreno de Penrose, retirado no segundo pós-operatório. No segundo dia pós-operatório, apresentou quadro semelhante no braço contralateral. Foram realizados novos exames com confirmação do mesmo diagnóstico, sendo submetido à nova limpeza cirúrgica e coleta de material. O resultado de ambas as culturas foi positivo para Staphylococcus aureus, sendo submetido à antibioticoterapia. Retornou às suas atividades esportivas em 37 dias.
Caso 5 - Paciente de 42 anos, masculino, procedente de Jundiaí, SP, praticante de fisiculturismo, médico, atendido com queixa de dor e edema no braço. Inicialmente não relatou uso de esteroide anabolizante. Ao exame físico, apresentava sinais flogísticos no bíceps esquerdo. Amplitude de movimento mantida. Encaminhado ao pronto-socorro, realizou exames laboratoriais (hemograma, VHS e PCR) e de imagem (ultras-sonografia e ressonância magnética), que confirmaram diagnóstico de piomiosite do bíceps braquial esquerdo. Realizou limpeza cirúrgica de urgência, apresentando sinais de necrose muscular. Coletou-se material para cultura; colocado dreno de Penrose, retirado no segundo pós-operatório. No terceiro dia do pós-operatório, apresentou sinais flogísticos no glúteo direito, realizou ultrassom com coleção líquida em glúteos máximo e mínimo. Pela ressonância magnética, foi confirmada a delimitação da área da coleção. Confirmou o uso de esteroides anabolizantes. Foi submetido à nova limpeza cirúrgica. O resultado da cultura foi positivo para Staphylococcus aureus em ambos locais e sendo submetido à antibioticoterapia. Retornou às suas atividades ao esporte em 45 dias.

DISCUSSÃO
O uso de anabolizantes esteroides é empregado por alguns atletas como forma de ganho de massa muscular, definição e melhor desempenho; como sua aplicação é feita na maioria das vezes sem assepsia adequada, o local da administração se torna potencial foco de infecção. Essa infecção local geralmente evolui para abscessos que costumam ser bastante exuberantes e o tratamento precoce com ação enérgica se faz necessário para controle desses processos infecciosos que podem evoluir rapidamente para quadros mais graves como necrose muscular ou sepse.
Crum-Cianflone, em seu capítulo publicado no livro de revisão de microbiologia clínica da sociedade americana de microbiologia, refere que as causas possíveis de miosite são bacteriana, viral, parasitária e fúngica, sendo a bacteriana a forma mais comum e entre elas o S. aureus, o agente mais comumente encontrado, fato que observamos nos casos relatados(5-8). A maioria das infecções é diagnosticada clinicamente e exames de imagem apenas complementam o diagnóstico. Hemoculturas são positivas em apenas 16% a 38% dos pacientes e a cultura de secreção em apenas 21% a 41%.
Bickels et al(9), em seu levantamento da literatura, encontraram 676 casos em 42 anos, observando a prevalência de piomiosite primária no músculo quadríceps, ao passo que no nosso estudo houve predomínio no músculo bíceps braquial. Em uma tentativa de melhor padronização das lesões e consequentemente agilização do tratamento, descreveram no seu trabalho três estágios na piomiosite: estágio I - dor muscular, sinais inflamatórios, febre; estágio II - formação do abscesso; estágio III - sinais de toxemia, podendo evoluir para choque séptico.
Normalmente, esse tipo de infecção responde a antibióticos comuns de amplo espectro, seguido de evolução favorável do quadro.
O atendimento multidisciplinar, enérgico e de ação imediata é fundamental para um resultado satisfatório(10).
Este trabalho apresenta como pontos favoráveis o fato de ter um grupo homogêneo como amostra e não ter tido a perda de nenhum paciente durante o seguimento; como pontos fracos, trata-se de um estudo retrospectivo e não randomizado.

REFERÊNCIAS
1. Ejnisman B, Filho JS, Andreoli CV, Monteiro GC, Pochini AC, Cohen M. Piomiosite multifocal em atleta: relato de caso. Rev Bras Ortop. 2007;42(5):157-60.         [ Links ]
2. Rotman-Pikielny P, Levy Y, Eyal A, Shoenfeld Y. Pyomyositis or "injectiositis" - Staphylococcus aureus multiple abscesses following intramuscular injections. Isr Med Assoc J. 2003;5(4):295-6.         [ Links ]
3. Rossi L, Conen D. Intramuscular injections - An outdated form of administration? Six cases of Staphylococcus aureus sepsis following intramuscular injections. Schweiz Med Wochenschr. 1995;125(31-32):1477-82.         [ Links ]
4. Al-Ismail K, Torreggiani WC, Munk PL, Nicolaou S. Gluteal mass in a body-builder: radiological depiction of a complication of anabolic steroid use. Eur Radiol. 2002;12(6):1366-9.         [ Links ]
5. Crum-Cianflone NF. Bacterial, fungal, parasitic, and viral myositis. Clin Microbiol Rev. 2008;21(3):473-94.         [ Links ]
6. Block AA, Marshall C, Ratcliffe A, Athan E. Staphylococcal pyomyositis in a temperate region: epidemiology and modern management. Med J Aust. 2008;189(6):323-5.         [ Links ]
7. Nather A, Wong FY, Balasubramaniam P, Pang M. Streptococcal necrotizing myositis: a rare entity. A report of two cases. Clin Orthop Relat Res. 1987;(215):206-11.         [ Links ]
8. Koutures CG, Savoia M, Pedowitz RA. Staphylococcus aureus thigh pyomyositis in a collegiate swimmer. Clin J Sport Med. 2000;10(4):297-9.         [ Links ]
9. Bickels J, Ben-Sira L, Kessler A, Wientroub S. Primary pyomyositis. J Bone Joint Surg Am. 2002;84(12):2277-86.         [ Links ]
10. Puşchiţă M, Ciobanu G, Amza O. Multidisciplinary approach in pyomyositis early diagnosis. Rev Med Chir Soc Med Nat Iasi. 2006;110(1):66-72.         [ Links ]


 Correspondência:
Eric Figueirido Gaspar
Rua Ipiranga, 550, apto. 83, bloco 4
Jardim Aeroporto - 04633-000
São Paulo, SP
E-mail: eric_gasp@hotmail.com

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