sábado, 21 de junho de 2014

"Será que não vai acabar nunca?": perscrutando o universo do pós-tratamento do cancêr de mama



"Does this never end?": investigating the universe of the breast cancer post-treatment

"¿Será que ésto no acaba nunca?": el universo posterior al tratamiento del cáncer de mama


Gisele da SilvaI; Manoel Antônio dos SantosII
IMestre em Psicologia. Psicóloga da Secretaria da Saúde do Município Valinhos-SP. Docente do Curso de Graduação em Psicologia da Faculdade Politécnica de Jundiaí do Anhanguera Educacional. São Paulo, Brasil
IIDoutor em Psicologia Clínica. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil



RESUMO
O diagnóstico de câncer de mama altera permanentemente a vida da mulher, porém há peculiaridades, dependendo da fase da doença, que precisam ser consideradas. As pesquisas dedicadas ao câncer de mama, no entanto, são escassas quanto ao período da reabilitação (pós-tratamento). Nesse sentido, este estudo descritivo teve como objetivo investigar os eventos estressores presentes na vida de mulheres acometidas durante o período pós-tratamento. Foram investigadas 16 mulheres atendidas em um serviço especializado em reabilitação de mastectomizadas, em 2003. Para coleta de dados foi utilizado um roteiro de entrevista individual semi-estruturada. A análise dos dados foi feita por meio da análise de conteúdo. Os resultados indicaram a presença de estressores físicos relacionados ao seguimento do tratamento, como seqüelas, limitações de movimento, lindefema, acarretando alterações na imagem corporal e medo de ressurgimento da doença. Esses resultados reforçam a importância da atuação dos serviços de reabilitação psicossocial junto a essa clientela.
Palavras-chave: Câncer de mama. Reabilitação. Estresse psicológico. Saúde mental. Adaptação psicológica.

ABSTRACT
The diagnosis of breast cancer permanently affects the woman's life, however there are special characteristics related to each stage of the disease which need to be considered. Studies about breast cancer, nevertheless, do not emphasize the rehabilitation period (post-treatment). The aim of this descriptive study was to investigate the stress events present in the lives of breast cancer patients during their post-treatment period. The sample was composed of 16 women who were assisted at a specialized rehabilitation service for women who had mastectomies in 2003. Data was collected through individual face-to-face semi-structured interviews. The content analysis technique was used for data analysis. The results indicated the presence of physical stressors related to the treatment, such as movement limitations and lymphedema, giving rise to the appearance of the fear of the disease relapsing and alterations of the body image. The results reinforce the importance of providing psychosocial rehabilitation to this population.
Keywords: Breast neoplasms. Rehabilitation. Stress, Psychological. Mental health. Adaptation, psychological.

RESUMEN
El diagnóstico del cáncer de mama altera permanentemente la vida de la mujer, pero, dependiendo de la fase de la enfermedad, existen peculiaridades que necesitan ser consideradas. Sin embargo, las investigaciones dedicadas al cáncer de mama son escasas en lo que se refiere al período de rehabilitación (posterior al tratamiento). En ese sentido, el presente estudio tuvo como objetivo investigar los eventos estresantes presentes en la vida de mujeres con cáncer de mama durante el período posterior al tratamiento. Participaron del estudio 16 mujeres atendidas en un servicio especializado en rehabilitación de mujeres mastectomizadas, en 2003. Para la obtención de los datos, se utilizó una entrevista parcialmente estructurada, de forma individual. En el análisis de los datos se empleó la técnica de análisis de contenido. Los resultados indicaron la presencia de factores físicos estresantes, relacionados al seguimiento del tratamiento, tales como: las limitaciones de movimiento, el linfedema, provocando alteraciones en la imagen corporal, y el miedo de la recaída de la enfermedad. Estos resultados refuerzan la importancia de la actuación de los servicios de rehabilitación psicosocial junto a esa clientela.
Palabras Clave: Neoplasias de la mama. Rehabilitación. Estrés psicológico. Salud mental. Adaptación psicológica.



INTRODUÇÃO
O câncer de mama é o tipo de neoplasia maligna mais comum na população feminina de diversos países.1 As taxas de incidência aumentam a cada ano como reflexo da tendência global à predominância de estilos de vida que fomentam a exposição a fatores de risco. As mais recentes projeções do Ministério da Saúde apontam que somente no Brasil aproximadamente 50.000 novos diagnósticos seriam confirmados em 2006 e que o risco variaria de 38 casos na região Centro-Oeste a 71 casos na região Sudeste para cada 100.000 mulheres. Por essa razão, o controle do câncer de mama constitui uma preocupação crescente para os serviços de saúde pública.2
O diagnóstico de câncer de mama altera permanentemente a vida da mulher, porém há peculiaridades, dependendo da fase da doença, que precisam ser consideradas no planejamento das intervenções dos profissionais de saúde. Comumente o percurso que a paciente com câncer de mama descreve é constituído de quatro momentos: diagnóstico, tratamento, reabilitação e terminalidade.
O tratamento geralmente compreende a realização de cirurgia para remoção da massa tumoral, quimioterapia, radioterapia e, em alguns casos, hormonioterapia. Se tudo correr bem, as três primeiras modalidades preenchem o primeiro ano. Após esse período de adaptação inicial, aqui denominado de "tratamento", a paciente precisa continuar realizando exames periodicamente, a fim de verificar sua condição clínica. Nos primeiros cinco anos os retornos médicos são mais freqüentes a fim de rastrear a possibilidade de metástase ou eventual recidiva da doença. Após esse período intensivo havendo a remissão, a paciente entra no chamado período livre de doença no qual os retornos para exames são progressivamente espaçados, mantendo-se normalmente a freqüência de retorno anual para os controles.
Estudos têm mostrado, no entanto, que ao cabo de cinco anos as implicações físicas e psicossociais decorrentes do adoecimento podem ainda estar presentes.3-4 Aliás, considera-se que a sobrevivência ao câncer de mama é um processo que se inicia no momento do diagnóstico e se perpetua por toda a vida do indivíduo. Isso coloca a necessidade da reabilitação psicossocial. Trata-se de um processo global e dinâmico orientado para a recuperação física e psicológica da mulher acometida pelo câncer de mama, com o objetivo de tratar ou atenuar as incapacidades causadas pela doença e/ou seu tratamento, tendo em vista promover sua reintegração social e qualidade de sobrevida. Segundo tal concepção, a reabilitação está associada a um conceito ampliado de saúde, que incorpora o bem-estar biopsicossocial e espiritual a que todos os indivíduos têm direito.
Estudos têm evidenciado que a sobrevivência é constituída de diferentes fases, cada qual com suas demandas específicas, que afetam o ajustamento psicossocial de maneira diferente.3,5-7 A maior parte dos trabalhos disponíveis no campo da psico-oncologia, no entanto, aborda o período do diagnóstico e do tratamento, havendo poucos estudos dedicados a investigar a situação psicossocial das pacientes no período pós-tratamento.8
Uma vez que a reabilitação física e psicossocial, para essas mulheres, não se esgota com o fim dos procedimentos cirúrgicos, quimio e radioterápicos, pesquisas abordando o período pós-tratamento são cada vez mais requeridas, a fim de conhecer minuciosamente suas especificidades e necessidades. Acresce-se a isso, o fato de que os tratamentos anti-neoplásicos evoluíram muito nas últimas décadas e estão se tornando extremamente sofisticados e resolutivos, o que resulta em aumento da sobrevida e, conseqüentemente, em uma preocupação crescente com a qualidade de vida dos pacientes que sobrevivem ao câncer.
Tendo em vista essas premissas, o objetivo do presente estudo foi identificar os eventos estressores vivenciados no período pós-tratamento do câncer de mama. Tal propósito se justifica em face da escassez de pesquisas dessa natureza desenvolvidas especificamente junto a essa população, necessárias para subsidiar a proposta de intervenções em nível de reabilitação.

MÉTODO
Tipo de estudo
O presente estudo seguiu um delineamento descritivo, com enfoque de pesquisa qualitativa.
Marco teórico
O estresse é definido como uma reação psicológica com componentes emocionais, físicos, mentais e químicos a determinados estímulos estranhos que irritam, amedrontam, excitam ou confundem a pessoa. Considera-se que existam três fases: alerta, quando o organismo se prepara para as reações de luta ou fuga, seguida pela fase de resistência, momento em que tenta uma adaptação ao evento estressor, predominando a sensação de desgaste. Se o estressor é contínuo e a pessoa não possui estratégias para lidar com o estresse, o organismo exaure sua reserva de energia adaptativa e a fase de exaustão se manifesta.9
A vivência do diagnóstico de câncer de mama confronta a mulher com uma série de eventos estressores, compatíveis com o enfrentamento de uma doença que ameaça sua integridade física e que exige cuidados intensivos, além das repercussões emocionais, familiares, laborais e na vida de relações decorrentes de um tratamento longo, invasivo e potencialmente turbulento. O impacto sobre o bem-estar no primeiro ano de tratamento é acentuado, colocando à prova a capacidade adaptativa da paciente que, repentinamente vê a linha de sua existência interceptada pela imersão em uma dimensão da realidade até então completamente desconhecida: o mundo inóspito do hospital, as consultas, exames e procedimentos invasivos, o afastamento das atividades cotidianas e os prejuízos no convívio familiar, sem contar a incerteza quanto ao futuro e o medo do contato com a própria finitude.7
Passada essa etapa mais turbulenta, habitualmente a mulher consegue restabelecer seu equilíbrio biopsicossocial, particularmente quando a doença responde bem ao tratamento. Contudo, continua a ter necessidades especiais e a freqüentar o "universo da doença" com certa regularidade, para lograr sua completa reabilitação. Nessa fase a mulher se defronta com outras fontes potenciais de estresse, podendo se mostrar mais vulnerável.
São considerados estressores os eventos sociais, psicológicos ou ambientais que exigem um ajustamento do indivíduo ou que causem uma mudança no seu padrão de vida. As fases de alerta, resistência ou mesmo exaustão que caracterizam o estresse podem estar presentes em qualquer etapa da trajetória do adoecimento, desde que as demandas colocadas sobre o indivíduo excedam seus recursos e sua capacidade de organizar uma resposta eficiente para preservar a integridade de seu organismo.9
Conhecer esses fatores e as demandas que eles suscitam é um passo primordial para o adequado planejamento das atividades assistenciais com fins de reabilitação.
Casuística
A casuística foi composta por 16 mulheres que já tinham sido submetidas à mastectomia (total ou parcial), radioterapia e/ou quimioterapia e que se encontravam entre um e quatro anos de pós-diagnóstico. Além desses critérios de inclusão, foram recrutadas as que aceitaram participar voluntariamente da pesquisa e que firmaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O estudo foi realizado no período de maio a dezembro de 2003. A amostra foi constituída a partir de um levantamento preliminar dos prontuários do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de Mastectomizadas, do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). O número de participantes deste estudo foi delimitado pela saturação dos dados, entendida como o ponto em que as informações que estão sendo analisadas tornam-se recorrentes e repetitivas.10
As participantes tinham idade variando entre 35 e 75 anos e estavam entre 12 e 44 meses do período pós-diagnóstico. Quanto ao procedimento cirúrgico mamário realizado, nove mulheres (56,3%) se submeteram à retirada parcial da mama (cirurgia conservadora), enquanto que sete (43,8%) tiveram toda a mama retirada (mastectomia total). Onze mulheres (68,8%) submeteram-se ao procedimento de quimioterapia, tendo o número de ciclos variado entre seis e 12. Com relação à radioterapia, 14 mulheres (87,5%) submeteram-se a esse procedimento, tendo o número de sessões variado entre 25 e 100. Por fim, 12 mulheres (75%) referiram, no momento da coleta, estarem fazendo uso de hormonioterapia.
Instrumento e materiais
Para a coleta de dados utilizou-se a entrevista semi-estruturada, um gravador e fitas cassete. A entrevista semi-estruturada é caracterizada pela prévia formulação das questões, baseadas em teorias e hipóteses relacionadas ao objeto de estudo, que foram extraídas da literatura e da experiência prévia dos pesquisadores. Há flexibilidade quanto à seqüência e outras questões poderiam surgir no decorrer da entrevista, fruto de novas hipóteses provenientes das respostas dos informantes.
O roteiro de entrevista, formulado especialmente para fins desse estudo, foi previamente averiguado em termos da clareza e adequação da linguagem em um estudo-piloto, realizado com três pacientes, que foram posteriormente descartadas da amostra. O instrumento compõe-se de duas partes: a primeira, que investiga as características sócio-demográficas e clínicas das participantes; e a segunda, que abarca as questões relacionadas à contextualização do universo do período pós-tratamento do câncer de mama. O roteiro em questão enfatizava os aspectos subjetivos relacionados à apreciação que a paciente faz de sua condição de saúde e das reações emocionais desencadeadas pelo convívio com a doença e o tratamento.
Procedimento
As entrevistas foram realizadas individualmente, em situação face-a-face, e gravadas em áudio mediante o consentimento das participantes, em local (sala do serviço de reabilitação ou residência da participante) com condições adequadas de conforto e privacidade. No momento anterior à coleta de dados foram entregues duas vias do TCLE, que as entrevistadas leram e assinaram. Uma via ficou com a pesquisadora e a outra foi entregue à participante. Os registros em áudio foram transcritos na íntegra e literalmente. Posteriormente, esses depoimentos foram submetidos a uma análise de conteúdo temática.10 São três as etapas desse processo de análise: 1) pré-análise: consiste na organização do material e sistematização de idéias; 2) descrição analítica: corresponde à categorização dos dados em unidades de registros e 3) interpretação referencial: tratamento e interpretação dos dados.
Norteado pela Resolução Nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EER - USP (processo Nº 0368/2003).

RESULTADOS: APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO
As narrativas obtidas permitiram-nos constatar as alterações, dificuldades, receios e preocupações advindas do evento do câncer na vida das mulheres no estágio pós-tratamento. Essas respostas individuais correspondem aos eventos estressores.
Os estressores correspondem aos eventos que geraram modificações no cotidiano da participante, aos quais ela deve responder a fim de adaptar-se à nova configuração da vida após o diagnóstico. O exame das respostas obtidas permitiu a construção de um sistema de categorias constituídas pelos eventos relatados. No presente estudo foram analisados os estressores físicos, definidos como aqueles que encerram alterações inscritas no corpo/organismo, que acarretam limitações e incômodos à vida da participante.
Essa categoria abrangeu narrativas de 14 das 16 mulheres que participaram do estudo. Foram encontrados relatos a respeito das alterações provocadas pelo câncer no corpo, ou seja, a percepção de mudanças que envolveram a dimensão física (Tabela 1). Apenas duas participantes, portanto, não referiram vivências de incômodos dessa ordem. O maior número de ocorrências foi observado na categoria – outras seqüelas físicas do câncer e seu tratamento.


O tratamento do câncer de mama inclui intervenção cirúrgica que, certamente acarreta alteração no aspecto estético desse órgão. A perda de uma parte do corpo, de acordo com a literatura,11 é vivenciada como dano à auto-imagem e, portanto, repercute na condição psíquica do indivíduo, ativando um penoso processo de luto e busca de reparação. A amputação de parte ou de toda a mama representa uma situação traumática, potencializada pelos significados psicológicos e culturais atribuídos ao órgão feminino.
Dentre as intervenções cirúrgicas nos diversos tipos de cânceres, a da mama, por deixar sua marca visível no corpo, remete as mulheres permanentemente à situação da perda. Além disso, a mama é um símbolo corpóreo de feminilidade, sensualidade, sexualidade e maternidade, ou seja, trata-se de um órgão que está intimamente relacionado à questão da identidade feminina, alvo de múltiplas e profundas significações pessoais. Portanto, a cirurgia para retirada de massa tumoral não altera apenas a imagem corporal da mulher, como também sua auto-imagem.7,12-13
Cinco participantes referiram incômodos relacionados às alterações percebidas no corpo, em decorrência da cirurgia da mama. Eu sei que eu não tenho uma mama. Entende? E que a mama é um dos atributos femininos, entende? Então eu sei disso (5). Ah, é uma mutilação. Quando você vai vestir uma roupa... fica feio (12).
Estudos apontam que, em geral, quando mais invasivo for o processo cirúrgico do câncer de mama, maior será o grau de alteração vivenciado na imagem corporal.14 No entanto, os resultados obtidos pelos trabalhos que relacionam o tipo de cirurgia realizada ao ajustamento psicossocial não são unânimes. Há autores que encontraram ajustamentos psicossociais semelhantes tanto para as cirurgias mais invasivas como para as mais conservadoras,14-15 enquanto que outros resultados apontaram para a diminuição da satisfação com a imagem corporal nas mastectomizadas.16
No presente estudo, das 16 mulheres participantes, sete submeteram-se à retirada total da mama, sendo que uma delas havia realizado mastectomia radical bilateral. Dessas sete, quatro apontaram alteração com relação à imagem corporal, enquanto apenas uma, dentre as nove que se submeteram à cirurgia conservadora (retirada parcial da mama), apontou incômodo nesse sentido. Os dados aqui encontrados, portanto, corroboram os trabalhos que evidenciam maiores alterações na imagem corporal sofridas pelas pacientes que se submeteram a mastectomia radical.14-16 Com a perda da mama, as 15 mulheres que não haviam se submetido à cirurgia reparadora da mama foram orientadas quanto ao uso de prótese mamária externa, que são colocadas no soutien. Além da melhora no aspecto estético, a prótese é recomendada para ajudar na manutenção postural do ombro e da coluna vertebral.
Os resultados aqui obtidos indicaram que o uso da prótese não se fez sem incômodos. Três participantes apontaram desconfortos decorrentes de sua utilização. A prótese incomodava, prendia, não se movimentava como a outra mama. Havia, ainda, a necessidade de atenção constante para não esquecê-la. A prótese é uma coisa que incomoda, porque a outra mama se mexe quando eu me mexo, essa aqui não (5). Hoje, por exemplo, pela primeira vez na vida eu esqueci de colocar a prótese. Falei: 'Uai, que é isso?'. Aí eu vi que eu tava sem. Fui lá e enchi de papel. Então você tem alguns cuidados a mais, tem que ficar atenta (12).
A necessidade do uso constante da prótese foi mais um fator que, diariamente, remetia as mulheres ao fato incontornável de que elas não eram as mesmas, que algo havia se alterado permanentemente após o câncer. Essa percepção reiterada da mutilação corporal pode levar a um incremento da angústia e dos sentimentos de menos-valia e desamparo.
As alterações físicas decorrentes do câncer de mama e de seu tratamento não se esgotaram com a perda da mama. As limitações de movimento do braço homolateral à mama afetada foram amplamente referidas pelas participantes. Na rádio queimou bastante e ficou grudada a pele e aqui eu fiquei sem movimento. Não sei se foi só da rádio, se por ter cortado os nervinho também né. [...] O braço já não faz, assim, tanto movimento (13).
Não foi apenas o movimento do braço que se alterou. Outros cuidados também tiveram que ser incorporados ao cotidiano das participantes como, por exemplo, manter-se longe do calor do fogo ou evitar a exposição ao sol, não se machucar ou se cortar, não carregar peso, não fazer esforço ou movimentos repetitivos com o braço afetado. As falas de cinco mulheres atestaram as modificações vivenciadas em decorrência dos cuidados necessários para a preservação da integridade do braço. Em relação aos aspectos objetivos do cotidiano, discorreram sobre as limitações que sentiam na habilidade para os afazeres domésticos e, com relação aos aspectos subjetivos, revelaram o mal-estar provocado pela sensação de limitação, de déficit de autonomia. O que mudou assim, de eu não poder fazer as coisas, é que eu tenho limite né, então isso é, eu não acho bom, porque eu sempre fui uma pessoa muito desembaraçada no serviço, aquela coisa toda, e hoje eu sou limitada né. Não pode pegar vassoura, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, não pode passar roupa, e isso pra mim é um empecilho, porque eu sempre fiz né, mexer na minha terrinha, no meu jardim (15).
Investigando a convivência com a incerteza em mulheres em reabilitação do câncer de mama, um outro estudo encontrou que o processo de aceitação das limitações físicas decorrentes da doença levou algumas mulheres a experimentar alterações negativas no seu autoconceito, em decorrência de se perceberem como um objeto inútil e sem possibilidades de transformação.17
O auto-cuidado com relação ao braço, constante e permanente, tem a função de evitar complicações, dentre os quais a mais temida pelas mulheres sem dúvida é o linfedema, que é associado pelas pesquisas da área a piores índices de ajustamento físico e psicossocial em comparação com as mulheres que não o desenvolveram.18-20
Estudo que investigou mulheres norte-americanas que conviviam com o linfedema há quatro anos, em média, apontou que a maioria delas estava bem ajustada tanto no âmbito físico quanto psicológico.21 Algumas delas, no entanto, apresentavam sintomas depressivos e ansiosos, bem como relatavam prejuízos em suas relações sociais. O estudo apontou ainda que o conhecimento médico-científico limitado acerca do linfedema, as informações conflituosas acerca do tratamento e o número reduzido de centros de tratamento para essa complicação foram os fatores relacionados a maiores índices de estresse (distress) nas participantes.
No presente estudo verificou-se que oito participantes desenvolveram linfedema. Atente-se para o fato de que esse número não necessariamente representa um dado estatístico com relação à probabilidade da ocorrência de tal complicação. A alta prevalência de participantes com linfedema, está relacionada ao fato de a amostra ter sido oriunda de um serviço de referência para a reabilitação das seqüelas do câncer de mama.
Das oito mulheres participantes que desenvolveram o linfedema, cinco discorreram acerca dos aspectos negativos na convivência com essa problemática. Trouxeram a cronicidade do quadro, a necessidade de cuidados constantes a fim de que o desconforto do braço, inchado e pesado, não retorne. As alterações vivenciadas nas atividades diárias também foram mencionadas, em decorrência dos cuidados necessários para o tratamento do linfedema. Ele fica pesado, né, fica pesado o braço, é, eu faço mais movimento com esse, né, eu uso mais esse pra pegar as coisas (14). Faz o enfaixamento, aí desincha. Aí passa uns tempos torna a inchar, porque inclusive elas falaram que normal não fica mais. A gente não pode deixar inchar. Por isso tem que usar sempre essa braçadeira (16).
Os dados referentes à vivência do linfedema obtidos por este estudo corroboram os achados da literatura,22 que evidenciam a constante preocupação com o aumento do volume do braço e conseqüente mudança de hábitos. O uso da braçadeira, bem como o recurso ao enfaixamento, como técnicas utilizadas no tratamento do linfedema, dão visibilidade social à doença, fazendo com se desvele a condição de mulher acometida pelo câncer de mama frente ao olhar perscrutador do outro, podendo suscitar nas demais pessoas reações que variam desde a curiosidade até a estigmatização.
Além do linfedema, sete participantes referiram a convivência com alguma outra seqüela advinda do câncer ou de seu tratamento. Foram referidas seqüelas da quimioterapia, como hipersensibilidade bucal ou aversão a determinados cheiros e alimentos associados ao período do tratamento; seqüelas da radioterapia, como a pele fina, pele grudada e queimadura de parte do pulmão; dificuldades sexuais advindas do risco de engravidar e dos sintomas advindos da menopausa induzida (secura vaginal). Por fim, uma mulher mencionou que, a partir do câncer, tornou-se hipertensa, associando esse acontecimento ao impacto psicológico do diagnóstico. Minha vagina tá muito seca (2). Tem alimentos que até hoje não consigo comer porque lembra a quimio, cheiros... Os nomes das meninas da quimio... queria ir lá pra agradecer, mas não consigo (3). Depois que eu fiquei grávida usando camisinha, sabe quando você toma trauma? Com DIU fica grávida, anticoncepcional não pode tomar, camisinha pode estourar... e aí vai fazer o quê? (8). Depois do câncer eu fiquei hipertensa, eu não era não. Minha pressão era baixa. Acho que foi o susto, foi muito grande, eu fiquei hipertensa de repente (12). Porque, com a rádio, a pele fica fininha, se eu passo uma bucha mais forte, assim, eu sinto arder (16).
Em um outro estudo investigou-se a presença de sintomatologia de estresse pós-traumático em 153 mulheres que haviam se submetido à quimioterapia há, em média, 20 anos. Apenas 5% delas reportaram escores sugestivos de transtorno de estresse pós-traumático; 15% reportaram dois ou mais sintomas de estresse pós-traumático, considerados por elas próprias como moderada ou extremamente incômodo; 6% referiram náuseas ou distresscondicionados a cheiros, gostos ou visões que as lembrassem do tratamento; 29% reportaram problemas sexuais atribuídos ao câncer de mama e seu tratamento; 39% referiram linfedema; 33% relataram dormências. Altos escores, quanto ao incômodo associado ao linfedema e dormências, baixo nível educacional, baixo suporte social, alto número de eventos vitais estressantes e intensa insatisfação com os tratamentos recebidos da equipe médica estiveram associados aos piores escores de estresse pós-traumático. Os autores concluíram que a ocorrência de quadro de estresse pós-traumático foi mínima, mas a alta prevalência de sintomas de estresse pós-traumático em resposta ao fato de ter tido câncer foi indicativa da existência de seqüelas psicológicas ao longo de todo esse tempo após a finalização do tratamento.19
Examinando a relação entre as limitações físicas e o ajustamento psicológico em mulheres australianas na fase pós-tratamento do câncer de mama, outro estudo encontrou que as dificuldades no movimento do braço estavam interferindo na execução de suas atividades diárias, gerando desconforto para dormir e dirigir, distúrbios na postura, reduzida capacidade para trabalhos físicos e habilidade diminuída para os afazeres domésticos.18 Tais limitações geraram desconfortos psicológicos para as mulheres, pois evocavam constantemente a presença da doença e a possibilidade de não recuperarem a capacidade plena.
Conforme relatado pelas próprias participantes deste estudo e em consonância com os resultados encontrados por outra investigação,23 o tratamento do câncer de mama foi vivenciado como responsável por alterações permanentes em suas vidas. Mesmo com a finalização do tratamento, os incômodos persistiram, demandando enfrentamento constante. No presente estudo a cronicidade do quadro foi trazida por uma das participantes. Para ela, o câncer foi experienciado como uma "doença que não se acabava", que demandava atenção permanente, como se o trabalho de restaurar o corpo danificado não tivesse fim. É isso que desanima, viu, que nunca termina o tratamento. [...] Tem doença que você vai uma vez só e já acabou. Isso aqui não acaba (4).
Além das seqüelas advindas do tratamento para o câncer de mama, intercorrências com relação à doença foram vivenciadas por cinco participantes. Dentre elas, duas enfrentaram a ocorrência de metástase, uma apresentou recidiva do tumor e outras duas tiveram detectada a presença de novo nódulo, desta vez benigno. Durante o tratamento do câncer de mama eu tive metástase de pulmão. Fiquei muito assustada com isso. Mas com o tratamento regrediu. Não precisei fazer cirurgia. Mas só que a rádio queimou um terço do pulmão esquerdo (5).Eu tive que passar por outra cirurgia. Na mesma mama, mas a, o tumorzinho que estava aqui não era maligno, era benigno (15).
As intercorrências do câncer de mama, além de fazerem com que a mulher depare com a possibilidade de enfrentar novamente o processo de tratamento e reabilitação, presentifica a extrema vulnerabilidade a que está exposta. Esse sentimento de fragilidade da vida acentua ainda mais a proximidade com a finitude, despertando a paciente para questões existenciais, como o sentido da vida e o insondável enigma da morte.
Apenas duas participantes (mulheres 7 e 10) não verbalizaram a presença de qualquer estressor físico, indicando que, para a maioria das pacientes, alterações que se manifestam por via corporal ainda estavam presentes em suas vidas no momento da entrevista, o que sinaliza os efeitos duradouros do conviver com o câncer de mama.

CONCLUSÃO
Mesmo se tratando de mulheres que já conviviam com o câncer de mama há pelo menos um ano e tendo finalizado as terapêuticas cirúrgicas, quimio e/ou radioterápicas, pôde-se constatar que uma ampla gama de eventos estressores relacionados ao adoecimento ainda estavam presentes em suas vidas. Apenas uma participante (mulher 10) não relatou qualquer evento estressor relacionado à problemática do câncer de mama e somente duas não relataram manifestações relacionadas a estressores físicos.
Os resultados desse trabalho vêm mostrar a necessidade de espaços de reabilitação física e psicossocial para essa clientela,24 uma vez que a mulher, com câncer de mama, necessita de cuidados físicos permanentes e que a maioria verbalizou incômodos duradouros decorrentes da doença e de seu tratamento. Esses resultados corroboram estudos anteriores, que indicam a relevância de programas de intervenção centrados nos cuidados de enfermagem.4
Considerando a escassez de trabalhos referentes ao período pós-tratamento do câncer de mama, os resultados obtidos oferecem à equipe interdisciplinar subsídios valiosos para intervir junto às pacientes, a partir do conhecimento das especificidades das demandas na fase de reabilitação.

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