José Maria Tesheiner
Desembargador aposentado do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul
Professor do Curso de Mestrado da PUC-RS
Sumário: 1. Objeto da ação
de descumprimento de preceito fundamental. 2. Argüição de descumprimento
fundada em controvérsia jurisprudencial. 3. Legitimidade ativa na ação de
descumprimento fundada em controvérsia jurisprudencial. 4. Eficácia vinculante
dos motivos da decisão. 5. Eficácia vinculante e modulação dos efeitos da
decisão. 5. Coisa julgada.
1. Objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental
Não cometerei a imprudência de tentar
definir o que seja preceito fundamental. Mesmo assim, tento fixar o objeto da
ação de descumprimento, para distingui-la da ação direta de
inconstitucionalidade. Isso é necessário, dado o caráter supletivo que lhe
atribui a Lei 9.882/99: "Não será admitida argüição de descumprimento de
preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade".
André Ramos Tavares não se conforma
com esse dispositivo da lei. Sustenta que, pelo contrário, é a ação de
descumprimento que exclui qualquer outra. Diz: "A argüição (...) não é
instituto com caráter 'residual' em relação à ação direta de inconstitucionalidade
(genérica ou omissiva). Trata-se, na realidade, de instrumento próprio para
resguardo de determinada categoria de preceitos (os fundamentais), e é essa a
razão de sua existência. Daí o não se poder admitir o cabimento de qualquer
outra ação para a tutela direta desta parcela de preceitos, já que, em tais
hipóteses, foi vontade da Constituição o indicar, expressamente, que a argüição
será a modalidade cabível, o que exclui as demais ações". (Argüição de
descumprimento de preceito constitucional fundamental: aspectos essenciais do
instituto na Constituição e na Lei. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG,
Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental:
análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 38-76).
A vingar essa tese, a exata definição
do que seja preceito fundamental, embora impossível, será imperiosa, para se
determinar a ação cabível.
Não me parece, todavia, que o
legislador ordinário haja afrontado a Constituição, ao atribuir caráter
supletivo à ação de descumprimento de preceito fundamental. O texto, se não é
compatível, pode, pelo menos, razoavelmente ser compatibilizado com a
Constituição. De regra, a ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que diga
respeito a preceito fundamental, exclui a ação de descumprimento, por uma razão
bastante simples: é que descumprimento é antes de tudo ato no mundo dos fatos.
Lei inconstitucional não descumpre a Constituição. Normatiza em sentido
incompatível com a Constituição. A Lei 9.882/99 não veio para criar uma segunda
e desnecessária ação de inconstitucionalidade. Por isso mesmo, dela não decorre
um corte no objeto da antiga ação direta de inconstitucionalidade. O que antes
era passível de ser declarado inconstitucional, por ação direta de
inconstitucionalidade, continua dela sendo objeto, ainda que se invoque
preceito fundamental. A ação de descumprimento tem objeto próprio, novo, não
compreendido pela ação direta de inconstitucionalidade.
Qual é esse objeto? Em primeiro lugar,
atos concretos, sem caráter normativo, pois, como já se observou,
descumprimento é ato que ocorre no mundo dos fatos. Ocorre não propriamente
quando se legisla, mas quando se aplica regra inconstitucional. Isso explica o
motivo por que se previu o cabimento da ação de descumprimento fundada em
controvérsia constitucional (Lei citada, art. 1o, parágrafo único).
Ela tem aí um caráter preventivo. É o risco de generalizado descumprimento de
preceito fundamental que justifica a ação.
Completa-se a delimitação do objeto da
ação de descumprimento de preceito fundamental, observando-se que ela cabe em
outros dois casos, excluídos da ação direta de inconstitucionalidade, a saber,
os atos normativos municipais e os atos normativos anteriores à Constituição.
2. Argüição de descumprimento fundada em controvérsia constitucional
Reza o art. 102, § 1o, da
Constituição: "A argüição de descumprimento de preceito fundamental
decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na
forma da lei".
Essa norma, de eficácia limitada, veio
a ser regulamentada pela Lei 9.8882, de dezembro de 1999, cujo artigo 1o
dispõe: "A argüição prevista no § 1o do art. 102 da
Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá
por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do
Poder Público.
Mas o legislador não parou aí.
Acrescentou uma nova hipótese de cabimento da ação, não prevista na
Constituição, dizendo (art. 1o, parágrafo único): "Caberá
também a argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for
relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato
normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à
Constituição".
É o que Alexandre de Moraes denomina
de "argüição de descumprimento de preceito fundamental ou por
equiparação", sustentando sua inconstitucionalidade: "O legislador
ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências
constitucionais do Supremo Tribunal Federal que, conforme jurisprudência e
doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. (...). Note-se
que foi criada pela Lei n. 9.882/99 a possibilidade de um dos co-legitimados
argüir ao Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de uma lei ou ato
normativo, fora das hipóteses cabíveis no controle concentrado, quais sejam -
controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo municipal e
controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou
municipal anteriores à Constituição Federal. (Comentários à Lei n. 9.882/99 -
Argüição de descumprimento de preceito fundamental. In: TAVARES, André Ramos
& ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de
preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas,
2001. p. 15-37).
3. Legitimidade ativa na ação de descumprimento fundada em controvérsia
constitucional
O artigo 2o da Lei
9.882/99, estabelece que podem propor a ação de descumprimento de preceito
fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. O
artigo 1o da mesma Lei estabelece que a ação terá por objeto evitar
ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, e
também quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre
lei ou ato normativo federal estadual ou municipal. É especialmente nesse
último caso que cabe liminar, determinando que juizes e tribunais suspendam o
andamento do processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra
medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição (art. 5o,
§ 3o).
André Ramos Tavares vê, concebe essa
segunda modalidade, não propriamente como uma ação direta, mas como um
incidente do processo, donde extrai a conclusão de que as partes envolvidas em
um processo regularmente constituído, no qual se alegue o descumprimento de
preceito fundamental, poderão fazer com que sua questão constitucional alcance
a Corte, diretamente, invocando a relevância da questão (Argüição de
descumprimento de preceito constitucional fundamental: aspectos essenciais do
instituto na Constituição e na Lei. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG,
Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental:
análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 38-76).
Discordo inteiramente. A Lei 9.882/99
indica expressamente os legitimados para a ação de descumprimento de preceito
fundamental, não cabendo ao intérprete acrescentar outros, assumindo a condição
de legislador. A existência de controvérsia constitucional constitui, sim,
fundamento autônomo para a propositura da ação pelos legitimados para a ação
direta de inconstitucionalidade. Não se trata de armar as partes com uma nova
manobra processual, mas de fazê-las sofrer, como quaisquer outros, os efeitos
de uma ação proposta com vistas unicamente ao interesse público.
Pode-se duvidar da constitucionalidade
de uma ação de descumprimento de preceito fundamental que se funde, não na
violação de preceito dessa natureza, mas na simples existência de controvérsia
constitucional, mas não se pode ampliar o rol dos legitimados, para incluir as
partes do processo em que se instaurou a controvérsia.
4. Eficácia vinculante dos motivos da decisão
O Código de Processo Civil é expresso:
Não fazem coisa julgada os motivos, ainda que importantes para determinar o
alcance da parte dispositiva da sentença (art. 469, I).
Nos termos da Lei 9.882/99, a ação de
descumprimento de preceito fundamental pode ter por objeto ato normativo não
apenas federal, mas também estadual e municipal (art. 1o, parágrafo
único), tendo a decisão eficácia contra todos e efeito vinculante (art. 10, § 3o).
Esse efeito não se confunde com a coisa julgada, porque abrange também os
fundamentos determinantes da decisão. Somente assim a decisão a respeito de ato
normativo de um único Estado ou de um único Município poderá vincular outros
Estados ou Municípios, cuja legislação contenta norma igual ou semelhante à que
foi repelida pelo Supremo Tribunal Federal. Não será, pois, necessário que o
Supremo Tribunal Federal se pronuncie sobre as normas de outros Estados ou
Municípios. Basta que lhes sejam aplicáveis as razões que levaram aquele
Tribunal a proclamar a inconstitucionalidade da norma paradigma. Afasta-se,
assim, o temor de que o Supremo Tribunal Federal seja inundado por ações
repetitivas de descumprimento de preceito fundamental.
Nesse sentido pode-se citar a lição de
Gilmar Ferreira Mendes: "Se entendermos, como parece recomendável, que o
efeito vinculante abrange também os fundamentos determinantes da decisão,
poderemos dizer, com tranqüilidade, que não apenas a lei objeto da declaração
de inconstitucionalidade no município 'A', mas toda e qualquer lei municipal de
idêntico teor não mais poderão ser aplicadas" (Argüição de descumprimento
de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto. In: TAVARES, André
Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de
preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas,
2001. p. 128-49).
5. Eficácia vinculante e modulação dos efeitos da decisão
Ao dispor sobre o processo e
julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no §
1o do artigo 102, da Constituição Federal, a Lei 9.882/99,
estabeleceu:
"A decisão terá eficácia contra
todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder
Público" (art. 10, § 3o);
"Ao declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de
descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança
jurídica ou de excepcional interesse, poderá o Supremo Tribunal Federal, por
maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em
julgado ou de outro momento que venha a ser fixado" (art. 11).
É controvertida a constitucionalidade
desse acréscimo de Poderes outorgado ao Supremo Tribunal Federal por lei
infraconstitucional. Ingo Wolfgang Sarlet (Argüição de preceito fundamental:
alguns aspectos controvertidos. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG,
Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental:
análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 150-71)
aponta os seguintes fundamentos para a negação da constitucionalidade:
- Foi
por emenda constitucional que se introduziu o efeito vinculante,
relativamente à ação declaratória de constitucionalidade.
- No
Direito Comparado, o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos
encontra-se previsto na própria Constituição ou foi regulamentado por lei,
mas com expressa delegação constitucional.
- Trata-se
de matéria tipicamente constitucional, não sendo razoável que se atribua a
maioria simples e transitória do Congresso Nacional decisão sobre questões
tão relevantes para a ordem jurídico-constitucional.
- Outorgou-se
ao Supremo Tribunal Federal uma margem de arbítrio sem precedentes e
virtualmente sem paralelo no direito constitucional, permitindo-lhe fixar
qualquer momento, passado, presente ou futuro, para que a declaração de
inconstitucionalidade passe a gerar efeitos. Assim, apenas para exemplificar,
tributo manifestamente inconstitucional poderá continuar sendo cobrado
meses ou mesmo anos após formal declaração de sua inconstitucionalidade.
São razões sérias. Acrescento estas
perguntas: esses novos poderes foram atribuídos ao Supremo Tribunal Federal ou
já se encontravam implícitos em sua competência constitucional? Afirmada a
constitucionalidade dessas disposições, poderão elas ser revogadas? Mesmo que
isso implique subtração de poderes ao Supremo Tribunal Federal por lei
ordinária?
Paradoxalmente, a resposta a todas
essas questões terá que ser dada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
6. Coisa julgada
Nos termos da Lei 9.868/99, a decisão
que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato
normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a
interposição de embargos declaratórios, não podendo ser objeto de ação
rescisória (art. 27). A decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante
em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal,
estadual e municipal (art. 28).
A Lei 9.882/99, que trata da argüição
de descumprimento de preceito fundamental, dispõe no mesmo sentido: A decisão
que julgar procedente ou improcedente o pedido é irrecorrível, não podendo ser
objeto de ação rescisória (art. 12). A decisão terá eficácia contra todos e
efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, §
3o).
Em ambas as leis, evitou-se falar em
"coisa julgada", ainda que erga omnes, a meu ver com razão,
porque o instituto da coisa julgada tem a ver com a declaração do direito
aplicável a fatos passados. Ora, nessas ações diretas, discute-se a respeito do
direito em tese, não a respeito de fatos ocorridos no passado. Fatos futuros,
exatamente porque futuros, não podem já ter sido julgados. Por isso mesmo, nas
relações continuativas, é sempre possível a revisão do estatuído na sentença,
sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito (CPC, art. 471).
Caiba ou não falar-se nesses casos em
coisa julgada (matéria controvertida), cabe a pergunta: Pode o Supremo Tribunal
Federal afirmar a inconstitucionalidade de lei anteriormente declarada
constitucional ou, o que é mais grave, declarar a constitucionalidade de lei
anteriormente declarada inconstitucional?
Aborda o tema Sérgio Resende de
Barros. Parte da premissa de que, ao declarar a inconstitucionalidade, o
Supremo Tribunal Federal toma decisões de caráter político e de caráter
legislativo, legislando negativamente. Rejeita a concepção oposta,
pejorativamente qualificada como "processualismo". Prossegue, em tom
crítico: "Mantendo o Judiciário como Poder apolítico - neutro, porque há
de ser imparcial -, o apego à separação dos poderes clássica impediu ver que,
quando o Supremo julgada da constitucionalidade das leis, nessa função ele é
tribunal constitucional e, como tal, profere decisões político-jurídicas, as
quais - por serem assim - devem e podem ter os seus efeitos graduados e
modelados no tempo e no espaço, bem como em sua compreensão e extensão,
conforme a necessidade político-social que as enforma. Impediu ver também que
essas decisões podem ser graduadas e modeladas para agentes e órgãos públicos
especificamente considerados, mas que, quando graduadas e modeladas erga
omnes, à sua eficácia estão vinculadas não só as pessoas particulares, mas
principalmente os poderes do Estado, salvo na competência de mudar a lei ou a
Constituição para desfazer a inconstitucionalidade ou de resolve-la por outra
decisão erga omnes da mesma Corte, se sobrevier substancial mudança das
condições de fato ou de direito que a determinaram. Essa última possibilidade é
assegurada pela coerência. Se não se nega à lei a força de reformar a lei, não
se pode negar igual força a uma decisão dotada da força de lei. Firme na
doutrina alemã, Gilmar Ferreira Mendes - após ter como possível a reaferição da
constitucionalidade pelo Tribunal, no caso de significativa mudança das
circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas
dominantes - conclui que lhe parece plenamente legítimo que se suscite
perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em
ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. Mas a decisão erga
omnes é tão vinculante dos poderes estatais, que o próprio Tribunal sente-se
imobilizado por ela, sem possibilidade de voltar atrás, como atestam as
palavras do Ministro Moreira Alves em um de seus votos: e - note-se - é em
virtude dessa eficácia erga omnes que esta Corte, por ser alcançada igualmente
por ela, não pode voltar atrás na declaração que nela fez anteriormente'
". (Sérgio Resende de Barros. O nó górdio do sistema misto. In: TAVARES,
André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de
descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99.
São Paulo, Atlas, 2001. p. 181-97).
A revisão, possível ainda que se
tratasse de coisa julgada, na hipótese de modificação no estado de fato ou de
direito, é reforçada com a consideração de que a lei, mesmo declarada
inconstitucional, não é revogada pelo Supremo Tribunal Federal. Continua, pois,
latente no sistema. A vedação de rescisória não infirma a tese, porque a
modificação no estado de fato ou de direito autoriza a revisão, não a rescisão
da sentença.
O que não pode o Supremo Tribunal
Federal é decretar, com efeitos ex tunc, a inconstitucionalidade de lei
antes declarada constitucional. Estaria a legislar retroativamente.
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