segunda-feira, 9 de junho de 2014

Notas sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental


José Maria Tesheiner
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Professor do Curso de Mestrado da PUC-RS

Sumário: 1. Objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental. 2. Argüição de descumprimento fundada em controvérsia jurisprudencial. 3. Legitimidade ativa na ação de descumprimento fundada em controvérsia jurisprudencial. 4. Eficácia vinculante dos motivos da decisão. 5. Eficácia vinculante e modulação dos efeitos da decisão. 5. Coisa julgada.

1. Objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental


Não cometerei a imprudência de tentar definir o que seja preceito fundamental. Mesmo assim, tento fixar o objeto da ação de descumprimento, para distingui-la da ação direta de inconstitucionalidade. Isso é necessário, dado o caráter supletivo que lhe atribui a Lei 9.882/99: "Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade".
André Ramos Tavares não se conforma com esse dispositivo da lei. Sustenta que, pelo contrário, é a ação de descumprimento que exclui qualquer outra. Diz: "A argüição (...) não é instituto com caráter 'residual' em relação à ação direta de inconstitucionalidade (genérica ou omissiva). Trata-se, na realidade, de instrumento próprio para resguardo de determinada categoria de preceitos (os fundamentais), e é essa a razão de sua existência. Daí o não se poder admitir o cabimento de qualquer outra ação para a tutela direta desta parcela de preceitos, já que, em tais hipóteses, foi vontade da Constituição o indicar, expressamente, que a argüição será a modalidade cabível, o que exclui as demais ações". (Argüição de descumprimento de preceito constitucional fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na Lei. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 38-76).
A vingar essa tese, a exata definição do que seja preceito fundamental, embora impossível, será imperiosa, para se determinar a ação cabível.
Não me parece, todavia, que o legislador ordinário haja afrontado a Constituição, ao atribuir caráter supletivo à ação de descumprimento de preceito fundamental. O texto, se não é compatível, pode, pelo menos, razoavelmente ser compatibilizado com a Constituição. De regra, a ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que diga respeito a preceito fundamental, exclui a ação de descumprimento, por uma razão bastante simples: é que descumprimento é antes de tudo ato no mundo dos fatos. Lei inconstitucional não descumpre a Constituição. Normatiza em sentido incompatível com a Constituição. A Lei 9.882/99 não veio para criar uma segunda e desnecessária ação de inconstitucionalidade. Por isso mesmo, dela não decorre um corte no objeto da antiga ação direta de inconstitucionalidade. O que antes era passível de ser declarado inconstitucional, por ação direta de inconstitucionalidade, continua dela sendo objeto, ainda que se invoque preceito fundamental. A ação de descumprimento tem objeto próprio, novo, não compreendido pela ação direta de inconstitucionalidade.
Qual é esse objeto? Em primeiro lugar, atos concretos, sem caráter normativo, pois, como já se observou, descumprimento é ato que ocorre no mundo dos fatos. Ocorre não propriamente quando se legisla, mas quando se aplica regra inconstitucional. Isso explica o motivo por que se previu o cabimento da ação de descumprimento fundada em controvérsia constitucional (Lei citada, art. 1o, parágrafo único). Ela tem aí um caráter preventivo. É o risco de generalizado descumprimento de preceito fundamental que justifica a ação.
Completa-se a delimitação do objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental, observando-se que ela cabe em outros dois casos, excluídos da ação direta de inconstitucionalidade, a saber, os atos normativos municipais e os atos normativos anteriores à Constituição.

2. Argüição de descumprimento fundada em controvérsia constitucional


Reza o art. 102, § 1o, da Constituição: "A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei".
Essa norma, de eficácia limitada, veio a ser regulamentada pela Lei 9.8882, de dezembro de 1999, cujo artigo 1o dispõe: "A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Mas o legislador não parou aí. Acrescentou uma nova hipótese de cabimento da ação, não prevista na Constituição, dizendo (art. 1o, parágrafo único): "Caberá também a argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".
É o que Alexandre de Moraes denomina de "argüição de descumprimento de preceito fundamental ou por equiparação", sustentando sua inconstitucionalidade: "O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal que, conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. (...). Note-se que foi criada pela Lei n. 9.882/99 a possibilidade de um dos co-legitimados argüir ao Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, fora das hipóteses cabíveis no controle concentrado, quais sejam - controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo municipal e controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal anteriores à Constituição Federal. (Comentários à Lei n. 9.882/99 - Argüição de descumprimento de preceito fundamental. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 15-37).

3. Legitimidade ativa na ação de descumprimento fundada em controvérsia constitucional


O artigo 2o da Lei 9.882/99, estabelece que podem propor a ação de descumprimento de preceito fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. O artigo 1o da mesma Lei estabelece que a ação terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, e também quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal estadual ou municipal. É especialmente nesse último caso que cabe liminar, determinando que juizes e tribunais suspendam o andamento do processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição (art. 5o, § 3o).
André Ramos Tavares vê, concebe essa segunda modalidade, não propriamente como uma ação direta, mas como um incidente do processo, donde extrai a conclusão de que as partes envolvidas em um processo regularmente constituído, no qual se alegue o descumprimento de preceito fundamental, poderão fazer com que sua questão constitucional alcance a Corte, diretamente, invocando a relevância da questão (Argüição de descumprimento de preceito constitucional fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e na Lei. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 38-76).
Discordo inteiramente. A Lei 9.882/99 indica expressamente os legitimados para a ação de descumprimento de preceito fundamental, não cabendo ao intérprete acrescentar outros, assumindo a condição de legislador. A existência de controvérsia constitucional constitui, sim, fundamento autônomo para a propositura da ação pelos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. Não se trata de armar as partes com uma nova manobra processual, mas de fazê-las sofrer, como quaisquer outros, os efeitos de uma ação proposta com vistas unicamente ao interesse público.
Pode-se duvidar da constitucionalidade de uma ação de descumprimento de preceito fundamental que se funde, não na violação de preceito dessa natureza, mas na simples existência de controvérsia constitucional, mas não se pode ampliar o rol dos legitimados, para incluir as partes do processo em que se instaurou a controvérsia.

4. Eficácia vinculante dos motivos da decisão


O Código de Processo Civil é expresso: Não fazem coisa julgada os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença (art. 469, I).
Nos termos da Lei 9.882/99, a ação de descumprimento de preceito fundamental pode ter por objeto ato normativo não apenas federal, mas também estadual e municipal (art. 1o, parágrafo único), tendo a decisão eficácia contra todos e efeito vinculante (art. 10, § 3o). Esse efeito não se confunde com a coisa julgada, porque abrange também os fundamentos determinantes da decisão. Somente assim a decisão a respeito de ato normativo de um único Estado ou de um único Município poderá vincular outros Estados ou Municípios, cuja legislação contenta norma igual ou semelhante à que foi repelida pelo Supremo Tribunal Federal. Não será, pois, necessário que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie sobre as normas de outros Estados ou Municípios. Basta que lhes sejam aplicáveis as razões que levaram aquele Tribunal a proclamar a inconstitucionalidade da norma paradigma. Afasta-se, assim, o temor de que o Supremo Tribunal Federal seja inundado por ações repetitivas de descumprimento de preceito fundamental.
Nesse sentido pode-se citar a lição de Gilmar Ferreira Mendes: "Se entendermos, como parece recomendável, que o efeito vinculante abrange também os fundamentos determinantes da decisão, poderemos dizer, com tranqüilidade, que não apenas a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade no município 'A', mas toda e qualquer lei municipal de idêntico teor não mais poderão ser aplicadas" (Argüição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 128-49).

5. Eficácia vinculante e modulação dos efeitos da decisão


Ao dispor sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no § 1o do artigo 102, da Constituição Federal, a Lei 9.882/99, estabeleceu:
"A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público" (art. 10, § 3o);
"Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado" (art. 11).
É controvertida a constitucionalidade desse acréscimo de Poderes outorgado ao Supremo Tribunal Federal por lei infraconstitucional. Ingo Wolfgang Sarlet (Argüição de preceito fundamental: alguns aspectos controvertidos. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 150-71) aponta os seguintes fundamentos para a negação da constitucionalidade:
  • Foi por emenda constitucional que se introduziu o efeito vinculante, relativamente à ação declaratória de constitucionalidade.
  • No Direito Comparado, o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos encontra-se previsto na própria Constituição ou foi regulamentado por lei, mas com expressa delegação constitucional.
  • Trata-se de matéria tipicamente constitucional, não sendo razoável que se atribua a maioria simples e transitória do Congresso Nacional decisão sobre questões tão relevantes para a ordem jurídico-constitucional.
  • Outorgou-se ao Supremo Tribunal Federal uma margem de arbítrio sem precedentes e virtualmente sem paralelo no direito constitucional, permitindo-lhe fixar qualquer momento, passado, presente ou futuro, para que a declaração de inconstitucionalidade passe a gerar efeitos. Assim, apenas para exemplificar, tributo manifestamente inconstitucional poderá continuar sendo cobrado meses ou mesmo anos após formal declaração de sua inconstitucionalidade.
São razões sérias. Acrescento estas perguntas: esses novos poderes foram atribuídos ao Supremo Tribunal Federal ou já se encontravam implícitos em sua competência constitucional? Afirmada a constitucionalidade dessas disposições, poderão elas ser revogadas? Mesmo que isso implique subtração de poderes ao Supremo Tribunal Federal por lei ordinária?
Paradoxalmente, a resposta a todas essas questões terá que ser dada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

6. Coisa julgada


Nos termos da Lei 9.868/99, a decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 27). A decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28).
A Lei 9.882/99, que trata da argüição de descumprimento de preceito fundamental, dispõe no mesmo sentido: A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12). A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3o).
Em ambas as leis, evitou-se falar em "coisa julgada", ainda que erga omnes, a meu ver com razão, porque o instituto da coisa julgada tem a ver com a declaração do direito aplicável a fatos passados. Ora, nessas ações diretas, discute-se a respeito do direito em tese, não a respeito de fatos ocorridos no passado. Fatos futuros, exatamente porque futuros, não podem já ter sido julgados. Por isso mesmo, nas relações continuativas, é sempre possível a revisão do estatuído na sentença, sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito (CPC, art. 471).
Caiba ou não falar-se nesses casos em coisa julgada (matéria controvertida), cabe a pergunta: Pode o Supremo Tribunal Federal afirmar a inconstitucionalidade de lei anteriormente declarada constitucional ou, o que é mais grave, declarar a constitucionalidade de lei anteriormente declarada inconstitucional?
Aborda o tema Sérgio Resende de Barros. Parte da premissa de que, ao declarar a inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal toma decisões de caráter político e de caráter legislativo, legislando negativamente. Rejeita a concepção oposta, pejorativamente qualificada como "processualismo". Prossegue, em tom crítico: "Mantendo o Judiciário como Poder apolítico - neutro, porque há de ser imparcial -, o apego à separação dos poderes clássica impediu ver que, quando o Supremo julgada da constitucionalidade das leis, nessa função ele é tribunal constitucional e, como tal, profere decisões político-jurídicas, as quais - por serem assim - devem e podem ter os seus efeitos graduados e modelados no tempo e no espaço, bem como em sua compreensão e extensão, conforme a necessidade político-social que as enforma. Impediu ver também que essas decisões podem ser graduadas e modeladas para agentes e órgãos públicos especificamente considerados, mas que, quando graduadas e modeladas erga omnes, à sua eficácia estão vinculadas não só as pessoas particulares, mas principalmente os poderes do Estado, salvo na competência de mudar a lei ou a Constituição para desfazer a inconstitucionalidade ou de resolve-la por outra decisão erga omnes da mesma Corte, se sobrevier substancial mudança das condições de fato ou de direito que a determinaram. Essa última possibilidade é assegurada pela coerência. Se não se nega à lei a força de reformar a lei, não se pode negar igual força a uma decisão dotada da força de lei. Firme na doutrina alemã, Gilmar Ferreira Mendes - após ter como possível a reaferição da constitucionalidade pelo Tribunal, no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes - conclui que lhe parece plenamente legítimo que se suscite perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. Mas a decisão erga omnes é tão vinculante dos poderes estatais, que o próprio Tribunal sente-se imobilizado por ela, sem possibilidade de voltar atrás, como atestam as palavras do Ministro Moreira Alves em um de seus votos: e - note-se - é em virtude dessa eficácia erga omnes que esta Corte, por ser alcançada igualmente por ela, não pode voltar atrás na declaração que nela fez anteriormente' ". (Sérgio Resende de Barros. O nó górdio do sistema misto. In: TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (org). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 181-97).
A revisão, possível ainda que se tratasse de coisa julgada, na hipótese de modificação no estado de fato ou de direito, é reforçada com a consideração de que a lei, mesmo declarada inconstitucional, não é revogada pelo Supremo Tribunal Federal. Continua, pois, latente no sistema. A vedação de rescisória não infirma a tese, porque a modificação no estado de fato ou de direito autoriza a revisão, não a rescisão da sentença.
O que não pode o Supremo Tribunal Federal é decretar, com efeitos ex tunc, a inconstitucionalidade de lei antes declarada constitucional. Estaria a legislar retroativamente.


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