sábado, 21 de junho de 2014

Participação masculina na contracepção pela ótica feminina


Men participation in contraception according to women's perspective
Marta LO Carvalhoa**, Kátia CM Pirottab** e Néia Schorb
aDepartamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil. bDepartamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil


DESCRITORES Saúde reprodutiva.#Comportamento contraceptivo.#Anticoncepção.#Relações interpessoais.#Anticoncepcionais masculinos. Anticoncepcionais femininos. Saúde da mulher. Conhecimentos, atitudes e prática.¾ Planejamento familiar. Relações entre gêneros.RESUMO
OBJETIVO: Identificar as percepções das mulheres sobre a participação masculina na contracepção.
MÉTODOS: Foram realizadas entrevistas domiciliares na Região Sul do Município de São Paulo. A amostra contou com 254 usuárias de métodos reversíveis que referiram, durante a entrevista, ter parceiro sexual. Trabalhou-se com análise estatística dos dados e técnica de análise de conteúdo.
RESULTADOS: Em 78,8% dos casos, o método contraceptivo usado era de uso feminino, prescindindo da participação masculina para sua eficácia (pílula, injetáveis, DIU, diafragma). Apesar da alta concentração de métodos femininos, 82,7% responderam que o companheiro participava do processo da contracepção, evidenciando uma desvinculação entre método usado e percepção da participação masculina. As principais categorias referentes à representação feminina sobre a participação do parceiro na contracepção foram o apoio à mulher usuária de método feminino e o uso eventual de método masculino, quando a mulher necessitava suspender temporariamente o uso de seu método contraceptivo.
CONCLUSÕES: As mulheres interpretaram a participação masculina na contracepção como uma atividade de apoio ao uso de métodos femininos de alta eficácia. O apoio do parceiro pode revelar-se pela aquisição da pílula, pela ação de lembrar a mulher de tomá-la ou pela opinião sobre o número de filhos desejado. A mulher assume a contracepção como atividade de sua responsabilidade, e o papel desempenhado pelo parceiro é vivenciado como uma função acessória.
KEYWORDS
Reproductive health.#Contraception behaviour.#Contraception.#Interpersonal relations.# Male contraception. Female contraception. Women's health. Knowledge, attitudes, practice.¾ Family planning. Gender relations.


ABSTRACT
OBJECTIVE: To identify women's perceptions on men's participation in contraception.
METHODS:
Home interviews in the southern region of the city of S. Paulo, SP, Brazil, were carried out. The participant sample was of 254 female users of reversible contraceptive methods, who claimed to have sexual partners at moment of the interview. Statistical analysis of the demographic variables and content analysis techniques of the open questions were performed.
RESULTS: In 78.8% of the cases, the contraceptive method of choice was of exclusive female use (pills, injectable, IUD, diaphragm). In spite of the high prevalence of female contraceptive methods, 82.7% of the participants asserted that their male partners were active participants in the contraception, which shows a discrepancy between the method used and their perception on men's participation. The main categories concerning women's perceptions on men's participation in contraception were: men support for the women to use female contraceptive methods and the occasional use by men of male contraceptive method when a woman needs to temporarily interrupt the use of her current contraceptive method.
CONCLUSIONS: Women perceive men's participation in contraception as a support for them to use contraceptive methods that are highly efficient. The partner's support may be translated by buying the contraceptive pills, reminding the woman of taking them or expressing their opinion about the desired number of children. Women see contraception as an activity of her responsibility and their partners have an auxiliary role.


INTRODUÇÃO
Na América Latina e no Caribe, em 80% dos casos, toda a responsabilidade e os riscos das práticas contraceptivas são assumidos pelas mulheres (Rios,14 1993), traduzidos pela predominância de métodos contraceptivos de uso feminino, que prescindem da participação masculina, como a pílula anticoncepcional e a esterilização feminina.
No Brasil a situação é similar. Segundo a Benfam,2 os métodos contraceptivos usados no País foram distribuídos em dois grupos: "independentes" ou "dependentes" de participação masculina.
A definição do termo "participação masculina na contracepção" pode assumir vários significados, desde o uso de métodos masculinos (condom, coito interrompido e vasectomia), até a cooperação nos métodos de abstinência periódica ou, ainda, como afirma Omondi-Odhiambo7 (1997), pode significar mais freqüentemente "estar de acordo com suas companheiras, permitindo que elas usem contraceptivos". Essa última afirmação pode resumir a preocupação de programas de planejamento familiar com a pouca aderência das mulheres às práticas contraceptivas, o que em muitas culturas ainda depende da aprovação dos maridos ou dos companheiros.
Alguns dos motivos pelos quais muitos homens resistem à participação em atividades de contracepção, ou até mesmo a que suas companheiras usem contraceptivos, devem-se a: associação da virilidade à fertilidade; receio de que o uso da contracepção por suas mulheres poderia predispor à infidelidade; motivos religiosos; medo de enfraquecimento de sua autoridade de chefe de família; e medo de possíveis efeitos colaterais dos métodos contraceptivos (Ringhein,13 1993). Além disso, acredita-se que o condom interferiria no prazer, o coito interrompido prejudicaria a espontaneidade do ato sexual, e a vasectomia estaria associada à castração. Pesquisa participativa realizada no Rio de Janeiro constatou que 72% dos homens permitiria que sua mulher fizesse laqueadura, mas igual percentagem não faria a vasectomia (Giffin,1994).
A ênfase da maioria das iniciativas em programas de planejamento familiar ou saúde reprodutiva recai diretamente sobre a mulher. Praticamente inexistem serviços de planejamento familiar dirigidos à clientela masculina nos serviços públicos, com horários adequados, desvinculados dos serviços de ginecologia e, que além de informação adequada sobre contracepção, provisão de condons e oferta de vasectomia, tratem de questões que abarquem a sexualidade e a prevenção de doenças sexualmente transmitidas (Population Reference Bureau,12 1995; Ringhein,13 1993).
As opções de métodos contraceptivos masculinos reversíveis ou temporários são limitadas se comparadas às opções para uso da mulher. Apenas dois métodos ¾ condom e coito interrompido ¾ compõem o leque de escolhas. Inexiste um método masculino de alta eficácia comparável aos métodos hormonais femininos ou ao DIU, o que, num País sem o recurso ao aborto legal em caso de falha do método, pode ser um importante fator pesando na decisão dos indivíduos (Perpétuo & Wajman,8 1992; Ringhein,13 1993).
A preocupação com o pouco envolvimento masculino nas atividades de contracepção está vinculada a outras questões relevantes na área de saúde reprodutiva: aumento da incidência de mulheres infectadas pelo HIV ou outras doenças sexualmente transmitidas; problema das gestações não planejadas, com repercussões na qualidade de vida das mulheres.
No âmbito internacional, a Conferência de Beijing, promovida pela Organização das Nações Unidas, em 1995, alerta para a importância da divisão da responsabilidade pela anticoncepção entre ambos os sexos, visando a promoção da saúde reprodutiva, e enfatiza a sua relevância para a consolidação de uma sociedade democrática e para o desenvolvimento da cidadania (Piovesan & Pirotta,9 1998).
No sentido de contribuir para essa discussão, o presente estudo teve como objetivo identificar as percepções de mulheres, usuárias de métodos contraceptivos reversíveis, sobre como tem sido a participação de seus companheiros nas atividades de contracepção, e como elas expressam a participação masculina.

MÉTODOS
Os dados do presente estudo foram extraídos de um projeto de pesquisa, desenvolvido entre 1989 e 1992, sobre mortalidade e morbidade maternas.***
A pesquisa subdividiu-se em duas partes: estudo de óbitos de mulheres em idade reprodutiva (10 a 49 anos), residentes na Região Sul do Município de São Paulo, ocorridos em 1989, e estudo das condições de saúde das mulheres em idade reprodutiva residentes na mesma região, no ano de 1992, com ênfase na morbidade materna e na saúde reprodutiva. Dados dessa mesma pesquisa, sobre anticoncepção entre adolescentes, foram analisados e apresentados em 1995 (Schor,15 1995).
A região pesquisada abarcou os subdistritos de Santo Amaro e Capela do Socorro e o distrito de Parelheiros, com população total de 1.662.231 habitantes, segundo o Censo em 1991 (Fundação IBGE,4 1991). Visando operacionalizar uma amostra que possibilitasse resgatar a diversidade de situações sociais presentes na Região Sul do Município de São Paulo, partiu-se da subdivisão das áreas propostas por Unglert16 (1990) e tomou-se como parâmetro o cruzamento entre o coeficiente de mortalidade materna e o de mortalidade infantil. Esse processo resultou em oito tipos de agrupamentos de áreas com características de alta, média e baixa mortalidade feminina e alta, média e baixa mortalidade infantil combinadas. A partir dessa nova composição das áreas, procedeu-se ao sorteio de cada tipo de agrupamento para garantir a presença das áreas com diferentes níveis de mortalidade na amostra.
Foram realizadas entrevistas domiciliares com todas as mulheres em idade fértil (10 a 49 anos) que residissem nos domicílios sorteados. Foi aplicado um formulário contendo questões abertas e fechadas, versando sobre o tema em estudo. Foram encontradas 1.261 mulheres residindo nos domicílios visitados. Destas, 1.157 responderam ao formulário completo, sendo que 977 tinham idade superior a 15 anos e foram entrevistadas sobre a vida sexual. O presente estudo versou sobre as mulheres que referiram estar usando métodos anticoncepcionais reversíveis no momento da entrevista, cujo grupo somou 263 mulheres. Foram retiradas da amostra 9 mulheres que não informaram ou não tinham parceiro na ocasião da entrevista. Desse modo, a amostra selecionada para este estudo contou com 254 usuárias de métodos contraceptivos de caráter temporário, que tinham parceiro no momento da entrevista.
O grupo foi caracterizado por análise estatística, segundo variáveis sociodemográficas. As variáveis em estudo foram: idade, escolaridade, situação conjugal, participação no mercado de trabalho, contribuição no orçamento doméstico e método contraceptivo usado no momento da entrevista. A fim de estudar a associação de variáveis, foi realizado o teste qui-quadrado (c2) no nível de significância (a) igual a 0,05. Nos cruzamentos em que o número de casos total (n) estava entre 20 e 40, foi utilizado o teste exato de Fischer.
Para interpretar as questões "Motivo pelo qual o parceiro não participa do processo de regulação da fecundidade" e "Maneira pela qual o parceiro participa do processo de regulação da fecundidade", cujas respostas foram literalmente transcritas pelos entrevistadores nos formulários, procedeu-se a uma interpretação qualitativa dos dados pela técnica de análise de discurso segundo método de Análise de Conteúdo (Bardin,11995).

RESULTADOS
Caracterização sociodemográfica
Entre as mulheres pesquisadas, 82,7% afirmaram que o parceiro participava do processo de regulação da fecundidade do casal, e 17,3% afirmaram que a contracepção ficava circunscrita à sua ação, sem contar com a participação do parceiro (Tabela 1).


Idade
A média de idade observada foi igual a 28,4 anos, a idade mediana a 27,0 anos, e o desvio-padrão a 7,7 anos. Dado que as jovens com idade inferior a 15 anos não foram entrevistadas sobre a vida sexual, o menor valor encontrado foi de 16 anos, e o valor máximo de 49,0 anos. Das mulheres pesquisadas, 59,8% apresentaram idade inferior a 30 anos, caracterizando o grupo das usuárias de métodos reversíveis como um grupo jovem.
Observou-se que a proporção de mulheres não variou significativamente em relação à participação do parceiro na contracepção. No entanto, a proporção de respostas afirmativas foi ligeiramente mais alta entre as mulheres mais jovens, com idade até 24 anos, declinando a partir dos 25 anos, sendo a mais baixa (77,1%) no grupo com idades entre 30 a 34 anos (Tabela 1).
Escolaridade
Em relação à escolaridade, 33,1% das mulheres usuárias de métodos reversíveis referiram ter até 4 anos completos de estudo; 35,4%, de 5 a 8 anos; e 9,8% referiram 12 e mais anos completos, ou seja, estavam cursando ou já tinham concluído o nível superior. O percentual de analfabetas foi de 2,4%.
Ao se observar a distribuição da variável escolaridade nos dois grupos (parceiro participa da concepção e parceiro não participa), constatou-se que a proporção das mulheres que afirmaram participação do parceiro na contracepção foi alta em todos os intervalos. A proporção tendeu a elevar-se conforme o aumento do nível de escolaridade, constatando-se a presença marcante das universitárias no grupo das que mencionaram a participação do parceiro (96,0%). O grupo das analfabetas, por sua vez, foi o que menos referiu a participação masculina (66,7%) (Tabela 1).
Situação conjugal
Em relação à situação conjugal, 80,3% das mulheres relataram, no momento da entrevista, ter uma união conjugal, sendo que havia 18,1% de solteiras (sem parceiro) e 1,6% de mulheres não-unidas (com parceiro, mas sem união). Tanto entre as solteiras quanto entre as "unidas", a maioria referiu a participação do parceiro (82,6% e 82,8%) (Tabela 1). A variável situação conjugal não indicou relação com a participação do parceiro na contracepção.
Participação no mercado de trabalho e contribuição no orçamento doméstico
A participação no mercado de trabalho foi analisada ao lado da contribuição no orçamento doméstico. Considerando-se o total das mulheres, 11,8% de mulheres eram as principais responsáveis pelo sustento doméstico; 42,5% eram co-responsáveis, ou seja, contribuíam com seu salário para arcar com os custos da manutenção da casa; 9,1% trabalhavam, mas não contribuíam; e 36,6% não tinham nenhum tipo de atividade remunerada e eram dependentes de outra pessoa para seu sustento. A participação masculina na contracepção não variou significativamente segundo a participação no mercado de trabalho e a contribuição no orçamento doméstico.
Método anticoncepcional
Em relação ao método anticoncepcional usado no momento da entrevista, a maioria das mulheres (67,3%) referiu a pílula. O condom foi mencionado por 10,2% das mulheres, o coito interrompido por 6,7%, a abstinência periódica por 4,3%, o DIU por 3,2%, a injeção por 2,8%, e o diafragma por 1,2%. Outros métodos foram referidos por 4,3% das mulheres.
Ao estudar a distribuição das respostas sobre a participação do parceiro na contracepção segundo o método utilizado, observou-se que havia uma associação entre o "método dependente da participação masculina" e a participação do parceiro na contracepção (c2=5,05, p=0,024). Embora o percentual de respostas afirmativas tenha sido maior entre as usuárias de "métodos dependentes da participação masculina" e menor entre as de "métodos independentes da participação masculina", a associação foi fraca. Observou-se que 79,5% das usuárias de pílula referiram a participação do parceiro no processo de regulação da fecundidade, ao lado de 81,8% de usuárias de abstinência periódica, em que pese a natureza diversa desses dois métodos. Todas as usuárias de diafragma referiram a participação do parceiro, sendo que esse foi considerado um "método independente da participação masculina". Mesmo entre as mulheres que responderam negativamente, encontrou-se referência ao condom, ao coito interrompido e à abstinência periódica (3,8%, 5,9% e 18,2%, respectivamente), embora esses métodos dependam da efetiva colaboração do parceiro (Tabela 1).
O fato de 83% das mulheres terem afirmado que o parceiro contribuía para a regulação da fecundidade revelou-se como uma instigante surpresa, pois o principal método utilizado na região pesquisada era a pílula ¾ método cuja eficácia depende da ação feminina ¾ ao lado da contundente prática de esterilizações femininas visando ao controle da fecundidade (Pirotta,11 1998; Pirotta & Schor,10 1998).
Um outro estudo sobre a trajetória reprodutiva da mulher residente na Região Sul do Município de São Paulo (RSMSP) indicou que as mulheres haviam iniciado sua vida sexual, em mediana, aos 19 anos. Devido a não estarem usando métodos anticoncepcionais nas primeiras relações sexuais, engravidaram logo em seguida, tendo o primeiro filho aos 20 anos. A partir daí, passaram a usar métodos contraceptivos, sobretudo a pílula, e no prazo de 10 anos estavam se esterilizando. Na região pesquisada, havia um percentual de 43% de mulheres esterilizadas dentre todas as que usavam algum tipo de método anticoncepcional. Essas mulheres optaram pelo método irreversível ao atingirem a paridade desejada, em geral no término da terceira gestação e aos 30 anos de idade (Pirotta,11 1998; Pirotta & Schor,10 1998).
A trajetória descrita acima contextualiza o fato de que a grande maioria das mulheres que participaram do presente estudo (60%) tinha idade inferior a 30 anos, constituindo um grupo de mulheres jovens, o qual tinha iniciado a vida sexual, mas não alcançara a paridade desejada, optando pelos métodos reversíveis.
No presente estudo, a faixa etária em que menos mulheres referiram a participação dos parceiros na contracepção coincide com a época em que a maioria das mulheres estava optando pela esterilização, podendo indicar que a falta de participação masculina no processo de contracepção é um elemento relevante nessa opção.
A variável escolaridade deve ser considerada como um elemento importante para a compreensão do comportamento reprodutivo, dado que o acesso à informação e à profissionalização criam melhores condições para a mulher negociar com o parceiro.
No grupo das mulheres que já haviam iniciado a vida sexual, na RSMSPem 1992, 44% tinham até 4 anos completos de estudo, e havia 5% de analfabetas (Pirotta,11 1998). Constatou-se, no presente estudo, que as usuárias de métodos reversíveis possuíam escolaridade mais alta do que as demais mulheres residentes na RSMSP, mas um dos elementos que devem ser considerados na análise é o fato de que o grupo de usuárias de métodos temporários era mais jovem e, assim, teve mais oportunidade de acesso à escolarização.
O incremento da participação feminina no mercado de trabalho tem suscitado a hipótese de um correspondente aumento do poder de negociação da mulher na interação com o parceiro, mas não foi possível verificar essa relação na região pesquisada.
A precariedade do quadro da contracepção na RSMSP, assim como em muitas outras regiões do País, reflete a ausência de políticas de saúde voltadas para a saúde reprodutiva e revela-se pela grande concentração de mulheres referindo a pílula como o método empregado, ao lado da pequena percentagem das que mencionaram os demais métodos. Assim, a compreensão das práticas contraceptivas entre a população estudada deve ter em conta a escassez de recursos com que a mulher se defronta.
A pílula é referida como o principal método usado pelas mulheres brasileiras, sendo superada somente pela esterilização feminina (Benfam,2 1997). Estudando mulheres que buscavam a esterilização junto ao serviço público, Marcolino6 (1994) menciona que "A difícil convivência com a pílula, verbalizada pelas mulheres, possibilitou-me entender como a ação diária da contracepção é uma experiência difícil para a mulher, levando-a ao abandono da pílula, partindo para um método mais radical como a esterilização cirúrgica" (p. 48). Afirma ainda Marcolino6 que, embora a pílula seja o método mais conhecido e usado pelas mulheres, é abandonada devido a efeitos colaterais, a contra-indicação por problemas de saúde e a falhas relacionadas ao uso incorreto. Segundo a citada autora, a mulher ainda encontra dificuldade com outros métodos, como a abstinência periódica ¾ que depende de um conhecimento preciso do corpo e dos ritmos ligados à fertilidade ¾ e o condom ¾ que depende do parceiro.
O estudo das variáveis sociodemográficas revelou uma ambigüidade em relação ao sentido que as mulheres atribuíam à participação masculina no processo de contracepção.
Análise dos discursos
Participação masculina
Tendo em vista a complexidade e as ambigüidades que são reveladas pelo estudo da participação masculina no processo de regulação da fecundidade, procedeu-se a uma interpretação qualitativa dos discursos das mulheres, buscando conhecer as categorias que orientam seus próprios valores em relação ao tema deste estudo.
É comum encontrar-se, na literatura, a associação entre a "participação masculina" e o uso de métodos contraceptivos dependentes da participação masculina. No presente estudo, porém, não foi possível demonstrar essa associação. Uma percentagem expressiva das mulheres usuárias de métodos femininos, que prescindem de participação masculina, afirmaram que seus companheiros efetivamente "participavam". A partir desse dado, e a fim de desvelar a representação das mulheres entrevistadas sobre a "participação masculina" na contracepção, procedeu-se à análise de conteúdo das respostas às questões abertas:
  • como seu companheiro participa? ¾ dirigida às mulheres que afirmaram que seus companheiros participavam das atividades de contracepção (82,7% das entrevistadas) (Tabela 2);


  • por que seu companheiro não participa? ¾ dirigida às mulheres que afirmaram que seus companheiros não participavam das atividades de contracepção (17,3% das entrevistadas) (Tabela 3).


Após várias leituras das respostas, foram construídos dois quadros de categorias que permitiram a organização desse corpus de dados em uma série de caracterizações dadas pelas entrevistadas às formas de "participação masculina" (Tabela 2) e aos motivos pelos quais elas entendiam que o companheiro não participava (Tabela 3). As com sua descrição, freqüência e percentagem são apresentadas abaixo, seguidas de algumas respostas que possam ilustrá-la.
Formas de participação masculina
Com base nas respostas à questão como o companheiro participa da contracepção?, respondida afirmativamente por 82,7% das entrevistadas, foram construídas 4 categorias que fornecem subsídios à compreensão das representações femininas sobre a participação masculina na contracepção:
Categoria 1 ¾ Apenas apoio. Foram agrupadas as respostas em que as mulheres entrevistadas explicam a participação de seus companheiros na contracepção, como a disposição deles em discutir com suas companheiras sobre o número de filhos que o casal deve ter; pelo apoio ao uso do método feminino por sua companheira, seja comprando o método ou lembrando-a de tomá-lo; ou apenas aceitando que ela o tome. Em nenhum dos casos incluídos nessa categoria há referência ao uso de método contraceptivo masculino. Em todas as respostas, o homem aparece como quem dá suporte ou apóia uma atividade que é da mulher, sendo ela o sujeito ativo das ações contraceptivas, principalmente pelo uso da pílula.
Algumas das respostas que ilustram essa categoria:
  • ele compra a pílula para mim e pergunta se estou tomando direitinho
  • ele participa conversando comigo, me levando ao médico, me apoiando [usuária de pílula]
  • se eu esqueço de tomar a pílula, ele me lembra;
  • ele paga as injeções;
  • a gente conversa, ele fala e explica as coisas, os assuntos de como evitar filhos ¾ ele tem que participar também, só a mulher não dá [usuária de pílula];
  • ele concorda que eu tome o remédio; ele compra o remédio [usuária de pílula].
Categoria 2 ¾ Uso eventual de método masculino. As respostas expõem outra interpretação das mulheres pesquisadas a respeito da participação masculina. Nesse caso, o marido/companheiro faz uso do método masculino apenas quando a mulher interrompe o uso do método feminino temporariamente, seja por lactação, "pausa", por não poder comprá-lo ou outros motivos. Note-se que a atribuição do uso do contraceptivo continua sendo da mulher ¾ o homem apenas ajuda, apóia em caso de impossibilidade da mulher exercer o papel principal na contracepção.
Algumas respostas das entrevistadas:
  • teve uma época que eu não podia tomar a pílula, aí ele evitava;
  • quando estou sem o remédio, ele usa a camisinha;
  • quando eu faço o descanso da pílula, ele usa a camisinha;
  • ele toma as precauções dele ¾ agora eu não posso tomar a pílula porque estou amamentando.
Categoria 3 ¾ Uso rotineiro de método masculino. Foi construída tendo por base o relato das mulheres de que o homem assumia inteiramente o uso de método contraceptivo, por meio de condom ou coito interrompido, sem referência ao uso de método feminino ou consensual. Nesses relatos, existiam muitas referências à comunicação entre os parceiros na decisão sobre o número de filhos. Observou-se também, em algumas respostas, uma posição pouco ativa do homem em relação à contracepção, com o homem "concordando" com o pedido da mulher que muitas vezes se justifica por não poder tomar a pílula por problema de saúde.
Respostas selecionadas:
  • ele concorda em usar a camisinha;
  • a gente está usando camisinha;
  • nem ele nem eu queremos filhos, então ele tira fora [usuários de coito interrompido];
  • sempre se preocupa em colocar a camisinha ¾ tem uns que não aceitam.
Categoria 4 ¾ "Participação em métodos de abstinência periódica". Apesar da baixa freqüência nessa categoria (8,05%), encontrou-se nela a maior concentração de respostas que explicitam conversas entre o casal, a saber:
  • a gente faz tabelinha ou coito interrompido ¾ já atingimos a nossa meta que é um casal;
  • às vezes ele compreende que existem dias que não podemos ter relações [usuária de tabela];
  • nesse método (muco cervical) tem de ter a concordância dos dois. Nos dias férteis não tem relação.Ele também acha conveniente a mulher não usar métodos artificiais. Ele acha que não é conveniente ter um bebê agora;
  • "conversando, pensando junto. Ele gostaria de ter mais filhos, mas não impõe, pois acha que a decisão é da mulher. Ele não impõe o que ele quer [usuária de tabela].
Nas respostas à questão "Por que seu companheiro não participa?", as mulheres entrevistadas relataram sua interpretação sobre os motivos dessa ausência masculina (Tabela 3).
Categoria 1 ¾ Ter de fazer tudo sozinha. De maior incidência nesse quadro (54,55%), encontrou-se claramente explicitada a queixa a respeito da não-participação masculina:
  • a gente nunca conversou sobre isso ¾ eu é que faço tudo, se quiser [usuária de pílula];
  • ele nunca fala nada ¾ eu faço tudo sozinha [usuária de pílula];
  • ele não faz nada pra me ajudar [usuária de pílula];
  • ele não tá nem aí. Ele acha que pra ele não tem responsabilidade; ele acha que eu é que tenho de ser prevenida [usuária de pílula];
  • porque ele não quer pôr nada nele ¾ quem tem de evitar" [usuária de pílula];
  • se ele me ajudasse eu me liberava da pílula [usuária de pílula].
Se a ocorrência de 20 usuárias de pílula, dentre um total de 24 entrevistadas nessa categoria, poderia indicar que a pílula vem sendo a alternativa possível para as mulheres cujos companheiros não dividem a responsabilidade do controle da fecundidade, chama a atenção a ocorrência de dois casos em que o método usado é masculino (coito interrompido e condom), tendo o homem assumido concretamente o controle da reprodução. De que falta de participação masculina essas mulheres falam? Em alguns relatos, há referências explícitas a problemas de comunicação entre o casal ("ele não diz nada"; "a gente nunca conversa sobre isso"; "ele nunca fala nada"; "não converso disso com ele"; "converso e ele não diz nada"). Estarão essas mulheres expressando a falta de participação masculina como a falta de diálogo no planejamento da prole? A falta de comunicação entre o casal é também um dos fatores considerados importantes no pouco envolvimento masculino na contracepção. Como elemento reforçador desse modelo cultural, em que há uma aparente atribuição da contracepção como atividade feminina, a falta do diálogo entre os parceiros sexuais pode dificultar o início de um processo de mudança nessa questão.
Categoria 2 - Não é necessário, não precisa. Entre entrevistadas que responderam que o companheiro não participava da contracepção, em 27,3% dos casos não havia uma queixa explícita, mas uma idéia de dispensa do homem dessa atividade. Nesse grupo de respostas, explicitam-se mulheres assumindo ¾ por opção pessoal ou por papel socialmente atribuído ¾ a regulação da fecundidade, reforçando ainda mais uma representação da contracepção como uma atividade feminina. Algumas respostas classificadas nessa categoria podem expressar essa idéia:
  • eu mesma já vou preparada, não tem necessidade [usuária de injetável];
  • eu mesma que faço as minhas providências ¾ criar filho, já chega dois [usuária de pílula];
  • ele não pode me ajudar porque já tem os problemas dele [usuária de pílula];
  • eu tomo a pílula, então ele não precisa me ajudar [usuária de pílula].
A alta incidência de usuárias de pílula (10 casos) nessa categoria pode também sugerir que a escolha de um método de alta eficácia, que prescinde da participação masculina, está contribuindo para a criação desse padrão de resposta.
O que determina o quê? A escolha do método feminino de alta eficácia dispensa o homem da responsabilidade, ou a falta de envolvimento masculino determina a escolha do método? Com base nas respostas obtidas não foi possível esclarecer essa relação.
Categoria 3 ¾ "Ele quer mais filhos". Entre os relatos dessa categoria, em que o homem não participava porque "queria ter mais filhos", apenas uma mulher não era usuária de método contraceptivo feminino de alta eficácia (hormonais ou DIU). Poderia estar explicitado, nesses casos, que quando não há consenso sobre o tamanho da prole, por meio do uso de métodos que prescindem da participação masculina, a mulher poderia manter o controle sobre a sua própria fecundidade. Um exercício de autonomia?
As relações entre homens e mulheres refletem os padrões culturais de uma sociedade. A mulher vem conquistando um espaço cada vez maior no mundo público, entrando no mercado de trabalho e assumindo a co-responsabilidade ou até a responsabilidade no sustento da família. No entanto, a divisão das tarefas do mundo privado com o parceiro ainda não é tão comum. O cuidado dos filhos e o controle da fecundidade ainda são considerados, pela sociedade e até pelas próprias mulheres, como uma função feminina.
O controle da fecundidade poderia estar relacionado a um exercício de poder da mulher sobre seu próprio corpo, regulando a sua fertilidade e seu destino biológico da procriação, considerando que as conseqüências de uma gravidez indesejada recairiam sobre ela: ele conversa, mas na realidade depende mais de mim. Eu é que dou a última palavra, porque quem vai ter de parar de trabalhar (no caso de uma gravidez) sou eu, então em função disso, sou eu mesma que resolvo. Ele participa, acho que porque eu pergunto, aí ele dá palpite [usuária de pílula].
Nesse caso, talvez em mais uma armadilha de gênero, ao assumir sozinha a contracepção, a mulher estaria liberando mais uma vez o homem das tarefas do mundo privado, da família.
Poderia haver um desvio de gênero também na pesquisa de métodos contraceptivos que, tendo desenvolvido métodos reversíveis de alta eficácia apenas para mulheres, possa ter contribuído para a alta incidência de uso da pílula (como também da esterilização), encontrada neste e em outros estudos sobre a contracepção. Como afirmam Villela & Barbosa17 (1996), "eficácia e praticidade passam a ser os atributos mais importantes para a mulher no momento da escolha contraceptiva, fazendo com que os potenciais efeitos colaterais ou agravos à saúde não sejam valorizados". Num momento econômico em que a preocupação maior parece residir no custo da criação dos filhos, conforme foi encontrado em muitas respostas, a eficácia da contracepção pode ser o fator realmente determinante da escolha do método, principalmente num País onde não existe o recurso ao aborto legal em caso de falha do método contraceptivo, conforme ressalta Berquó3 (1993).
Muitas hipóteses podem ser formuladas. Provavelmente todas sejam possíveis, uma vez que a somatória de determinantes sociais e predisposições pessoais produzem sempre mulheres e homens diferentes entre si. Diante do direito à diferença e à opção informada, incluindo-se o acesso às várias opções contraceptivas, cabe aos serviços de saúde prover as condições mínimas para o exercício dos direitos reprodutivos de mulheres e homens. Aos órgãos de pesquisa cabe fomentar o desenvolvimento de métodos contraceptivos reversíveis de alta eficácia para uso masculino, e cabe aos pesquisadores desenvolver pesquisas qualitativas que possam esclarecer motivações, dúvidas e expectativas de homens e mulheres em relação à contracepção, com a finalidade de direcionar a pesquisa de novas tecnologias que atenda às necessidades dos usuários.

REFERÊNCIAS
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Correspondência para/Correspondence to: Néia Schor
Depto. de Saúde Materno-Infantil da FSP/USP
Av. Dr. Arnaldo, 715
01246-904 São Paulo, SP, Brasil
E-mail: neschor@usp.br 

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