J. E. Carreira Alvim, Cadeira n. 35.*
Sumário – 1. Preâmbulo. 2. Mandado de segurança coletivo e a Lei
dos Partidos Políticos. 3. Partido
político como “garante” dos direitos fundamentais. 4. Legitimação ativa do partido político para mandamus coletivo. 5. Culto ao preconceito contra a ação
coletiva 6. Limitações mal postas à
legitimação do partido político. 7.
Equívocos decorrentes de um conceito mal interpretado. 8. Partido político com representação no Congresso. 9. Interesse legítimo do
partido político. 10. Ação coletiva:
uma instituição tratada por padrastos
11. Conclusão.
1. Preâmbulo - No momento em que se discute um Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos,
disciplinando inclusive o mandado de
segurança coletivo, parece estranho que se tenha incorporado à nova Lei
12.016/09, em sintéticos dois artigos (21 e 22), a não ser que, por detrás
dessa estratégia, esteja o propósito disfarçado de mais uma vez privilegiar o
poder público, tamanhas são as restrições impostas em seu favor, no mandado de
segurança individual.
Sendo o mandado de segurança coletivo[1] espécie do gênero
“mandado de segurança”, que compreende também o individual, os seus requisitos
vêm previstos no inciso LXIX do art. 5º, ou seja, proteção contra ameaça ou
lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data,
por ato ilegal ou abusivo de autoridade.
O mandado de segurança coletivo vem, sob essa denominação,
identificado, na Constituição, pelos legitimados a impetrá-lo, dispondo o
inciso LXX do art. 5º que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado,
dentre outros, por partido político com
representação no Congresso Nacional.
2. Mandado de
segurança coletivo e a Lei dos Partidos Políticos - Nos termos do art. 21,
1ª parte, da Lei 12.016/09, o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado
por partido político com
representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade
partidária.
A Lei dos Partidos Políticos prescreve, por seu turno, que o
partido político é uma pessoa jurídica de direito privado,
destinada a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do
sistema representativo e a defender os
direitos fundamentais definidos[2] na Constituição Federal (Lei 9.096/09,
art. 1º).
No entanto, o art. 21 da Lei 12.016/09, que disciplinou o novo mandado de
segurança, só autoriza o partido político a impetrar o mandamus coletivo na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade
partidária, sem qualquer alusão à
defesa dos direitos fundamentais definidos na Constituição, referida tanto
no art. 17 desta,[3]
quanto no art. 1º da Lei dos Partidos Políticos.
A nova lei do mandado de segurança restringiu, no caput do seu art. 21, inconstitucionalmente,
o alcance do art. 1º da Lei dos Partidos Políticos, pois os “direitos
fundamentais da pessoa humana” [4]são
muitíssimo mais amplos do que,
simplesmente, “interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à
finalidade partidária”. E disse mal, porque os interesses legítimos não são relativos
aos integrantes do partido político, mas ao próprio partido, porque relativos aos integrantes deste são os
diversos interesses individuais (direitos subjetivos) albergados pelos
interesses legítimos.[5]
3. Partido político como “garante”
dos direitos fundamentais - Em doutrina, Lúcia Valle Figueiredo,[6]
escrevendo antes da promulgação da nova lei mandamental, chama a atenção para a
amplitude do campo de atuação dos partidos políticos, e, em consequencia, sua
competência para a interposição de mandado de segurança coletivo (no seu
sentido mais amplo); o que os posiciona como garantes da cidadania, do Estado Democrático de Direito, da
separação dos Poderes, dos direitos
fundamentais, com competência para provocar a atuação do Judiciário.
A Constituição, no seu art. 5º[7],
assegura, explicitamente, aos brasileiros (e estrangeiros) residentes no País
os direitos fundamentais: à
vida, como a habitação, o emprego, o trabalho; à liberdade de
locomoção, de pensamento, de reunião, de associação, de profissão, de ação, de
liberdade sindical, de greve; à igualdade de oportunidades sociais, de
gozo na prestação de serviços públicos essenciais; à segurança dos direitos
subjetivos em geral, materiais e processuais; à propriedade em geral,
material e imaterial, artística, literária e científica, etc.[8]
O partido político é um ente legitimado que alcança todos os cidadãos, filiados ou não, em qualquer ponto do
território nacional, sendo, por isso, o mais indicado para impetrar mandado de segurança coletivo em defesa
de interesses legítimos, quando, na
sua base, estejam os direitos individuais (subjetivos) lesados ou ameaçados de
violação por ato do poder público.
Em princípio, pode até parecer que a regra do art. 21 tenha alguma
legitimidade, na medida em que, apenas para fins de mandado de segurança
coletiva, operaria a restrição por ele imposta, que não se aplicaria às demais
ações de conhecimento, sendo esta, provavelmente, a exegese que prevalecerá nos tribunais, que considerarão a norma
dos partidos políticos uma regra geral,
em relação à norma mandamental, que seria uma regra específica. Essa interpretação pode até atender melhor aos
interesses do poder público, mas não tem fundamento científico, porque, se o poder de demandar em defesa de determinado
interesse brota da Lei dos Partidos Políticos, não pode a Lei do Mandado de
Segurança restringir-lhe o alcance, senão apenas dispor sobre a disciplina a
ser observada quanto ao procedimento. Se se entender, na prática, que a
restrição é apenas para a ação mandamental,
não haverá maiores problemas, porque, na atual sistemática processual, as ações
ordinárias de conhecimento estão sujeitas às mesmas restrições na concessão de
liminares, quando estas forem proibidas em sede jurisprudencial, mas, se se
entender que a legitimação do partido político está condicionada a qualquer
demanda (mandamental ou não) na defesa de seus interesses legítimos relativos
a seus integrantes ou à fidelidade partidária, ter-se-á uma gritante
inconstitucionalidade, pois uma lei ordinária (mandamental) estará limitando o
poder de demandar reconhecido ao ente político por outra lei ordinária (a Lei
dos Partidos Políticos).
Essa distinção é importante, porque, conforme prevaleça uma ou outra
interpretação, estará, ou não, o partido político autorizado a agir na defesa de direitos fundamentais da pessoa
humana, como seja, por exemplo, a incorporação de índices de reajustamento (147,06%)
aos proventos da aposentadoria e benefícios da Previdência Social.
4. Legitimação ativa do partido
político para mandamus coletivo - A
meu ver, na largueza do art. 5º, LXX, “a”, da Constituição, o partido político
com representação no Congresso Nacional pode impetrar mandado de segurança coletivo, tout court, sem qualquer restrição --, ao contrário do disposto na
sua alínea “b”, ao legitimar a organização sindical, entidade de classe e
associação apenas para defesa dos
interesses de seus membros ou associados –, e sem condicioná-lo aos termos
de eventual lei ordinária, pelo que é de duvidosa
constitucionalidade o art. 21, 1ª parte, da Lei 12.016/09; embora não tenha
a menor expectativa de que essa inconstitucionalidade venha a ser proclamada
pelos tribunais, e, muito menos, pela suprema corte.
Registra, igualmente, Scarpinella Bueno[9]
ser restritivo e destoante da verdadeira função institucional dos partidos
políticos no cenário nacional, entendimento que só autoriza a impetração
coletiva para a tutela de seus filiados, o que significaria tratar os partidos
como meras entidades associativas, o que, a toda evidência, não o são.[10]
Outro não é o entendimento de Lúcia Valle Figueiredo,[11]escrevendo
na vigência da lei anterior, para quem, diferentemente das associações e
sindicatos, que só podem impetrar mandado de segurança coletivo em defesa dos
interesses de seus membros ou associados, os
partidos políticos não conhecem restrições constitucionais, ou, por outra,
a proteção não será apenas para os filiados do partido, muito pelo contrário.
5. Culto ao preconceito contra a
ação coletiva - A maior utilidade das ações coletivas, pela extensão das
sentenças nelas proferidas, resulta, sem dúvida, daquelas ajuizadas por partidos políticos, com atuação em todo o
território nacional, e, portanto, legitimação a mais ampliada possível, porque,
em se tratando dos demais legitimados, apenas as confederações de trabalhadores
ou patronais e as centrais sindicais – para quem as admite no contexto das organizações sindicais -- desfrutam de
idêntico poder de fogo.[12]
Talvez por isso, tenha a nova Lei mandamental, no interesse do poder público, restringido a legitimação do partido
político, sem que os pretórios se mostrem dispostos a rever o seu
posicionamento sobre o tema, tendo o STJ decidido em sentido contrário ao
afirmado no texto, no MS 197, nestes
termos:
“Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de
segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em
questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto”,
afirmando, nesse mesmo aresto, a “impossibilidade de dar a um partido político
legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são,
em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar
mandado de segurança em nome deles”.
Essa decisão é um culto ao
preconceito contra a ação coletiva, um desconhecimento
dos fundamentos em que ela se alicerça e, o que é pior, um deliberado
propósito de beneficiar o poder público, não
dando ao mandamus a extensão que
tem no texto constitucional, ainda que para isso, invocando, indevidamente, a própria Constituição.
No que tange à necessidade de autorização expressa para o partido
político agir em juízo, em defesa de interesse coletivo (rectius legítimo), espera-se que a jurisprudência se alinhe em dar
à expressão “dispensada, para tanto, autorização especial” um alcance que
compreenda também os partidos políticos, porque, do contrário, mesmo agindo
eles “na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à
finalidade partidária”, como soa o art. 21, 1ª parte, não faltará, nos
tribunais, inclusive nos superiores,
quem entenda necessária essa autorização, afirmando que a dispensa referida na
parte final desse dispositivo só compreende as entidades referidas na alínea
“b” do inciso LXX do art. 5º da Constituição (a organização sindical, a
entidade de classe e a associação legalmente constituída e em funcionamento há
pelo menos um ano).
6. Limitações mal postas à
legitimação do partido político - As limitações impostas pelos vetustos
acórdãos proferidos nos Mandados de Segurança 197[13] e
256,[14]
do Superior Tribunal de Justiça, relativamente aos interesses dos filiados a
partidos políticos e necessidade de autorização expressa caíram por terra, com a redação dada ao art. 21, parte inicial, mas
aquela imposta pelo MS 256, que negou legitimidade ao partido político para
defender em juízo cinqüenta milhões de aposentados, por não serem, na sua totalidade,[15] filiados
ao partido, recebeu do mesmo art. 21 um discutível
e injustificado aval, ao dispor
(embora inadequadamente) que cabe ao partido atuar (apenas) “na defesa de seus
interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”.
Foi também avalizada pelo art. 21 da nova Lei mandamental, a limitação imposta
pelo MS 197, que entendeu só poder o partido político agir no sentido de
defender os seus filiados e em questões políticas; a meu ver, mal avalizada,
mas, infelizmente avalizada.
Como disse alhures, o art. 21 da nova Lei mandamental, dispondo como
dispôs, atropelou um dos mais
legítimos e constitucionais objetivos do partido político, expresso no art. 1º
da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), que lhe impõe como destinação “defender os direitos fundamentais definidos na Constituição
Federal”, e nenhum direito é mais fundamental do que o de milhões de
aposentados aos quais manda a lei que se conceda determinado índice de correção
monetária, que o Governo o garfou sem o
menor constrangimento.
7. Equívocos decorrentes de um
conceito mal interpretado - Voltando à decisão do STJ, no MS 197, sobre a
grande massa dos interesses individuais (verdadeiros direitos subjetivos dos
aposentados), de impressionantes
cinqüenta milhões[16]
de beneficiários, o acórdão deveria conduzir ao resultado diametralmente
oposto, a uma porque, o que o partido político defende em juízo é o interesse legítimo – como diz,
atualmente, de forma “mal dita” o art. 21 da nova Lei --, isto é, que a
Administração pública seja o que ela deva ser, isenta de ilegalidades e de
abusos de poder, ou seja, a “legalidade objetiva da Administração pública”, e,
a outra, porque, não é necessário, para ter albergo no guarda-chuva do interesse legítimo, que fundamenta a
impetração coletiva, que todos os aposentados fossem filiados ao partido,
bastando que alguns deles o fossem, para justificar a procedência do mandamus.
Por outro lado, quando presente o interesse
legítimo, não cabe ao tribunal pesquisar que interesses individuais estão ou não albergados por ele, porque
esses interesses podem até nem existir quando da prolação da sentença, mas
existir quando do seu trânsito em julgado. Assim, uma ação coletiva ajuizada
por uma Associação de Pais de Alunos contra o aumento abusivo de mensalidades,
por exemplo, vai beneficiar inclusive os pais que, após o trânsito em julgado
da decisão, tiverem interesse individual (direito subjetivo) envolvido na
demanda --, a que as mensalidades se contenham num determinado percentual de
aumento --, conforme decidido pela sentença coletiva. A isso se chama proteção reflexa, indireta ou por tabela
dos interesses individuais coligados ao interesse legítimo, com o qual não está
muito familiarizada a jurisprudência dos nossos tribunais.
Embora Sérgio Ferraz[17]
entenda acertada a distinção feita[18]
pelo STJ (MS 256)[19]
entre o interesse de grupos e o
interesse coletivo, assentando que, no primeiro, mesmo contando com a
pluralidade de pessoas, o objetivo é
comum e limitado, ao passo que, no segundo, está afeta a difusão do
interesse, alcançando os integrantes da
sociedade como um todo, a meu ver, tal distinção, além de equivocada, é divorciada da Constituição. Para desestabilizar essa distinção, basta considerar que a
própria Constituição, no seu art. 8º, inciso III,[20]
atribui ao sindicato a defesa de interesses
coletivos da categoria, inclusive por mandado de segurança coletivo, e
não é de se supor tratar-se de interesses dos integrantes da sociedade como um todo, senão da categoria de trabalhadores representada
pelo sindicato-impetrante.
Contra os arestos no MS 197 e MS 256, manifestou-se, com justa razão,
Sérgio Ferraz[21],
nestes termos que merecem reprodução:
“Nossa posição no particular, antes exposta, diverge de ambos os julgados
acima transcritos, nos quais se detecta uma preocupação de confinar o alcance
da legitimação dos partidos políticos (muito em afinação, frise-se, com a linha
de pensamento de Calmon de Passos) para a impetração do mandado de segurança
coletivo. Fiéis à mesma colocação vestibular, tantas vezes aqui invocada, de
proclamar a necessidade de sempre se dar interpretação elástica às normas
referentes ao mandado de segurança, por força de sua certidão de nascimento
constitucional e sua capitulação dentre as garantias fundamentais da cidadania,
não podemos concordar com as teses doutamente apresentadas nos arestos sob
comento”.
8. Partido político com
representação no Congresso - Nem
todo partido político está legitimado a impetrar mandado de segurança coletivo,
mas apenas aqueles que tiverem representação
no Congresso Nacional, bastando a presença de um único deputado federal ou um
único senador,[22]
para fazer nascer essa legitimação.
O Congresso Nacional é integrado por dois órgãos, que são a Câmara dos
Deputados e o Senado Federal, pelo que, se o partido político tiver um
representante numa dessas casas, terá preenchido o requisito da legitimação,
que, nesse caso, é uma das condições do mandado de segurança coletivo. No
entanto, para impetrar mandado de segurança individual, em defesa de direito subjetivo seu, não precisa o
partido político ter representação congressual, bastando comprovar a
regularidade da sua constituição e funcionamento.
Comparativamente com a sua fonte constitucional, o art. 21 da
nova lei do mandado de segurança apenas acrescentou à legitimação do partido
político com representação no Congresso Nacional, o objetivo colimado através
do mandamus, consistente na defesa de seus interesses legítimos relativos a
seus integrantes ou à finalidade partidária.
9. Interesse legítimo do partido político -
O art. 21 faz supor que apenas o
mandado de segurança coletivo impetrado por partido político se apóia num interesse legítimo, vez que, ao tratar
da impetração pelos demais legitimados (organização sindical, entidade de
classe e associação) fala em “defesa de direitos
líquidos e certos [no plural] da totalidade, ou de parte, dos seus membros
ou associados”, passando a falsa impressão de que essa pluralidade de direitos possa caracterizar uma ação coletiva; mas,
na verdade, seja o mandado de segurança coletivo
impetrado por qualquer dos legitimados (partido político, sindicato, entidade
de classe ou associação), a proteção é conferida, em qualquer caso, ao interesse legítimo, sendo os eventuais
direitos subjetivos de seus membros ou associados protegidos indiretamente ou por tabela.
Ao aludir a “direitos líquidos e certos”, o art. 21 ressuscitou outra impropriedade, ao
tratar o direito líquido e certo como sinônimo
de direito subjetivo material, quando essa concepção já foi, há muito,
sepultada pela moderna doutrina processual, ao assentar que a liquidez e a
certeza “do direito” não se prendem, como se afirma, ao direito subjetivo, mas
à forma como o fato, no qual se embasa, se apresenta no processo, demonstrados
mediante prova documental e preconstituída,
pondo o juiz em condições de extrair dele as consequencias jurídicas que
resultam da lei.
Em outros dois mandados se segurança coletivos (MS 1.235 e
1.252) adota o STJ a mesma orientação, contrária à legitimação do partido
político, para a impetração de mandado de segurança coletivo, sendo o primeiro
relativo aos 147,06% devido aos aposentados, ao fundamento de que, se o mandado não tem por objetivo direitos
subjetivos ou interesses atinentes à finalidade partidária, falta ao partido
político legitimatio ad causam para impetrá-lo. Nessa hipótese, o acórdão
considerou que o impetrante alvitrava a proteção a direitos subjetivos
individuais homogêneos de beneficiários da Previdência Social, ou seja, o
pagamento do reajuste de 147,06% a todos os beneficiários em manutenção e de
prestação continuada.
Na verdade, os acórdãos proferidos nos MS 1.235 e 1.252
fizeram uma baita confusão, ao falar em direitos individuais homogêneos,[23]
porque, em se tratando de mandado de segurança coletivo, o que estava em jogo não era o pagamento de 147,06% aos
aposentados --, mesmo porque “o mandado de segurança não é substitutivo de ação
de cobrança” (Súmula 269
do STF) --, mas o interesse legítimo, em que fosse
incorporado aos proventos dos aposentados um índice de correção imposto por
lei, e garfado pelo Governo. Se assim
tivesse decidido o STJ, a Previdência Social teria que fazer a correção dos
proventos e benefícios previdenciários, com a inclusão desse índice, para todos
os que fizessem jus a ele, mas esse não era, definitivamente, o objeto do
mandado de segurança coletivo, porquanto tais direitos subjetivos estariam
albergados pelo guarda-chuva a que se denomina interesse legítimo.[24]
Lúcia Valle Figueiredo[25]
tangenciou o tema, embora sem aludir ao interesse
legítimo, fazendo-o nestes termos:
“Na parte dos direitos sociais, que se constituem também em
direitos fundamentais, somente a título de exemplo, tome-se o salário mínimo
(art. 7º, IV).[26]
O salário mínimo fixado em lei deve ter, nos termos
constitucionais, reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. De
conseguinte, se não houver reajuste periódico, pelo contrário, perda do poder
aquisitivo, demonstrada de plano, também cabe mandado de segurança coletivo,
que poderá ser impetrado não só pelos sindicatos, mas, também, pelos Partidos Políticos.
O instrumental jurídico, o grande meio de defesa, está na
própria Constituição de 1988, que não poderia consagrar direitos como meros
programas, sem vinculação ao legislador ou ao aplicador. Ou mesmo ao Judiciário,
a quem cabe, da maneira mais ampla, em face da ampliação de sua competência no
inc. XXXV do art. 5º [27]
da mesma Constituição.”
Nessas circunstâncias, o partido político não age motivado
pela defesa de direitos subjetivos
dos aposentados, mas fundado num interesse
legítimo em que a lei seja cumprida, caso em que o mandamus “destina-se à defesa da legalidade objetiva”;[28] sendo os eventuais
direitos subjetivos dos aposentados protegidos reflexamente ou por tabela.
Foram decisões como essas que incentivaram a nova mandamental
a limitar a atividade do partido político, pela forma como dispôs, no seu art.
21, aludindo inclusive à “finalidade partidária”.[29]
No particular, Carlos Ari Sundfeld[30] pôs também o dedo na
ferida, ao registrar que o mandado de segurança coletivo (impetrado por
partidos políticos) “destina-se à defesa da legalidade objetiva”, cumprindo um
papel assemelhado ao da ação popular, com a diferença de que, na ação popular,
basta que o ato atacado seja ilegal (ou atentatório à moralidade administrativa),
sem necessidade de demonstração de lesividade,
enquanto, no mandado de segurança coletivo, a prova da ilegalidade deve ser
preconstituída.[31]
Esse registro, a meu ver, contém um equívoco, em ter o citado
jurista circunscrito ao partido político --, como fez, também, o art. 21 da
atual LMS --, a defesa da legalidade
objetiva, que alberga um interesse
legítimo, porque, na verdade, esse interesse é o móvel de toda e qualquer
ação coletiva, qualquer que seja o ente legitimado (partido político, organização
sindical, entidade de classe ou associação).
Se o ente legitimado, no caso, o partido político, em vez de
fundamentar a impetração num interesse
legítimo, o fizer em defesa de um direito
subjetivo seu, contra ato ilegal
ou abusivo de poder, o mandado será individual
e não coletivo.[32]
10. Ação coletiva: uma
instituição tratada por padrastos - Infelizmente, a ação coletiva entrou no
ordenamento jurídico brasileiro pela porta
dos fundos, e foi tratada por padrastos,[33] sem tempo, sequer, para se fazer conhecer
como “instituição”, pelos operadores do direito, e, muito menos, pelos
estudantes, pois sequer fazia parte -- como continua não fazendo, na grande
maioria -- do currículo das instituições de ensino.
Em sede legislativa,
o desconhecimento da ação coletiva é
de tal ordem que a Lei 7.347/85 – que disciplina a ação civil pública, de
responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico –
consagra um art. 16, como se todos esses bens pudessem ser coarctados a
determinado lugar, dispondo que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o
pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que
qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento,
valendo-se de nova prova”.[34]
Essa disposição do art. 16 da ACP[35]
demonstra total descompasso entre interesse
legítimo e direito subjetivo,[36] como se a sentença proferida
na ação civil pública pudesse limitar a proteção ao interesse legítimo dos entes legitimados[37] – Ministério Público,
Defensoria Pública, entes da Administração federal, direta e indireta, e
associações privadas – restringindo a coisa julgada (rectius a eficácia da sentença)[38] aos limites de
competência territorial do órgão prolator, como se os consumidores localizados
fora desse limite fossem jurisdicionados
de quinta categoria. Em se tratando de proteção ao meio-ambiente, essa
restrição é ainda mais insustentável, pois o interesse legítimo se apresenta como um guarda-chuva capaz de abrigar apenas os habitantes de determinado
ponto do território nacional, pelo fato de a ação ter sido ajuizada nesse foro
e a sentença sido proferida pelo juízo desse foro.[39]
A lei desconhece, também, que a extensão subjetiva dos efeitos da sentença não se identifica com a coisa julgada, podendo a sentença ser
imutável para as partes, sem que o seja para quem não participou do processo;
distinção esta que foi feita pela doutrina italiana ainda na primeira metade do
século passado.
Se o que move a ação coletiva, qualquer que seja a sua
modalidade, mandamental ou não, é o interesse
legítimo, enquanto “defesa da legalidade objetiva”, não tem o menor sentido
que um fato seja reconhecidamente ilegal num determinado foro, por ter sido aí
proferida a sentença, e continue sendo legal no resto do País. Foi esse desconhecimento que levou à alteração do
art. 16 da Lei 7.347/85, que era originariamente corretíssimo, pois não fazia qualquer alusão ao “limite da
competência territorial do órgão prolator da decisão”, excepcionando do alcance
da coisa julgada apenas o pedido julgado improcedente.[40]
Ao ser modificado, com a elasticidade que lhe deu a Lei 9.494/97, o art. 16 da
nova LMS, entrou em rota de colisão com a grandeza das ações coletivas, neutralizando, praticamente, em sua
grande extensão a utilidade dessas ações; e --, o que é impossível disfarçar
--, com o deliberado propósito de proteger um dos nossos maiores improbus litigator,[41] que é o poder público nacional.
11. Conclusão -
Estas considerações foram por mim expostas na minha recente obra sobre o Novo
Mandado de Segurança, decorrente da promulgação da Lei 12.016/09, a qual, pelas
restrições que consagra em favor do poder público, contrárias ao direito
líquido e certo do impetrante, de fundo constitucional, seria mais adequado
chamá-la de nova lei do mandado de (in)segurança.
(*) Professor de Direito Processual Civil da Faculdade
Nacional de Direito da UFRJ; membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas,
cadeira n. 35; doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais;
membro do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
[1]
Para Cretella Júnior, o vocábulo “coletivo”, parte integrante da expressão
maior “mandado de segurança”, não se contrapõe ao vocábulo “individual”.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Lei
do Mandado de Segurança, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 6.
[2] A
Constituição não chega a “definir” os direitos fundamentais, limitando-se a
fazer, no seu art. 5º, um elenco deles, depois de dizer que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade (...)
[3]
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos
políticos,resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o
pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e
observados os seguintes preceitos: (...).
[4]
Registra, igualmente, Lúcia Valle Figueiredo que, na Constituição de 1988, bem
porque os valores da dignidade da pessoa humana e da cidadania, ao lado de
outros, fundamentam o Estado Democrático de Direito, o instrumental de defesa
há de ser hábil de forma a que, sobretudo, o cerne fixo da Constituição possa
ser preservado. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado
de Segurança, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43.
[5] Numa grosseira
comparação, é como um foguete com a sua nave espacial, em que se um (interesse
legítimo) se perde no espaço, os outros (direitos subjetivos) não chegam,
igualmente, ao seu destino.
[6] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 43-44.
[7] Art. 5º Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes (,,,).
[8] GSCHWENDTNER,
Loacir. Direitos Fundamentais. JUS
Navigandi.
[9]
BUENO, Cássio Scarpinella. Mandado de Segurança, 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 38.
[10]
Para mim, a expressão “entidade associativa” em sentido amplo, que foi o
empregado pelo inciso XXI do art. 5º da Constituição, compreende toda e
qualquer entidade, inclusive o partido político; mas, se todo partido político
é uma entidade associativa, nem toda entidade associativa é um partido
político, principalmente para fins de defesa de interesse legítimo e direito
subjetivo.
[11]
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p.
42.
[12] Na
prática, as confederações e centrais sindicais não têm noção do poder de
demandar que receberam do art. 5º, LXX, “a”, da Constituição, em defesa do
interesse legítimo, porque nem a doutrina e nem a jurisprudência lhes têm feito
justiça no particular.
[13] “Processual
– Mandado de segurança coletivo – Partido político – Ilegitimidade.
Quando a Constituição autoriza um
partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no
sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim
quando autorizado por lei ou pelo estatuto.
Impossibilidade de dar a um partido
político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que
não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a
impetrar mandado de segurança em nome deles” (MS 197).
[14] “O interesse de grupos não se confunde com o
interesse coletivo. O primeiro, mesmo contando com pluralidade de pessoas o
objetivo é comum e limitado, ao passo que no segundo esta afeto a difusão do
interesse, alcançando os integrantes da sociedade como um todo. (MS 256).
[15] Esse entendimento
bate de frente com o enunciado da Súmula 630 do STF:
“A entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando
a pretensão veiculada interesse apenas a
uma parte da respectiva categoria.”
[16] Essa
cifra, em vez de funcionar em favor dos aposentados, por demonstrar a grande
quantidade deles que estava sendo lesada pela Previdência Social, funcionou ao
contrário, impressionando o Tribunal superior em benefício do poder público.
Essa decisão foi por maioria, o que demonstra que nem todos os julgadores
incidiram nesse equívoco. FERRAZ, Sérgio. Op.
cit., p. 48.
[17]
FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[18]
No particular, Sérgio Ferraz considera acertada apenas a distinção, porque não
endossa as conclusões do acórdão. FERRAZ,Sérgio. Op.cit., p. 48.
[19]
Para se perceber a importância que têm essas distinções, quando mal feitas
pelos pretórios, no caso do Mandado de Segurança 256, o STJ, por maioria, não conheceu
do mandado; o que mostra que nem todos os seus integrantes embarcaram na pretendida (e equivocada) distinção. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 48.
[20] Art. 8º (...) III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses
coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou
administrativas; (...)
[21]
FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 48.
[22]
Neste sentido, Sérgio FERRAZ. Op. cit., p.
45.
[23]
Os direitos individuais homogêneos só são objeto de tutela coletiva, por
questão de conveniência, pois não são substancialmente coletivos, mas apenas
acidentalmente tratados como se tratam os direitos coletivos, em decorrência da
sua origem comum.
[24]
Em ambos os julgamentos, a decisão foi por maioria, o que mostra que nem todos
os julgadores estão equivocados, quando se trata de mandado de segurança
coletivo. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p.
49.
[25]
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p.
45-46.
[26] CF, art. 7º São
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social. (...) IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente
unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua
família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o
poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (...)
[27]
Art. 5º (...) XXXV – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada.
[28]
SUNDFELD, Carlos Ari. Mandado de segurança coletivo na Constituição de 1988, in Revista de Direito Público n. 89, p.
41; apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[29]
Registra Sérgio Ferraz decisões de tribunais regionais federais contrárias à
orientação firmada pelo STJ, como, por exemplo, AMS 89.01.18276-9, do TRF-1; AMS 91.02.19445-7,
do TRF-2; AMS 90.04.02703-3 do TRF-4; e AMS 1.902, do TRF-5. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 49.
[30]
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p.
41; apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[31]
Nessa mesma linha, Celso Agrícola Barbi (Mandado de Segurança na Constituição
de 1988, in RePro 57/7 de ss.); Ada Pellegrini
Grinover (in RePro 57/96 e ss.); Ernane
Fidélis dos Santos (in Revista do
Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 18, pp. 1 e ss.);
Francisco Antônio de Oliveira (Mandado de
segurança e Controle Judicial, Ed. RT, 1992, p. 212); José Lázaro Guimarães
(As Ações Coletivas e as Liminares contra Atos do Poder Público, 2ª ed.
Brasília: Brasília Jurídica, pp. 67 e ss.) e Alfredo Buzaid (Considerações
sobre o Mandado de Segurança Coletivo. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 96-97); apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[32] CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 7.
[33] Não me refiro aqui aos grandes juristas que
cuidaram do tema em nível doutrinário, em busca de uma exegese que amoldasse a
linguagem de origem com a nacional; mas àqueles que impuseram à ação coletiva,
principalmente em nível legislativo, um perfil que atenta contra a sua grandeza constitucional.
[34]
Esta redação foi dada pelo art. 2º da Lei 9.494/97.
[35]
Lei da Ação Civil Pública.
[36]
Esse desconhecimento é também uma constante na doutrina e na jurisprudência.
[37] Art. 5o
Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o
Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação
ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a)
esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua,
entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao
consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico.
[38] A
coisa julgada não é “a eficácia que
torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário
ou extraordinário”, como soa, equivocamente, o art. 467 do CPC, mas a própria imutabilidade da sentença e da sua
eficácia.
[39] Modus in rebus, seria como que coarctar
a eficácia de uma sentença proferida numa ação de divórcio a determinado ponto
do território nacional, pelo fato de ter a sentença sido proferida pelo juízo
desse foro, sendo as partes consideradas divorciadas
apenas nesse foro, e casadas no restante do território nacional. Tal modo de
pensar conduz, também, ao absurdo de o juízo de determinada comarca poder negar
o cumprimento a uma carta precatória para penhora de bens pelo simples fato ter
a sentença exequenda sido proferida pelo juízo de outra comarca.
[40] Na sua redação original, era a seguinte o
teor do art. 16 da Lei 7.347/85: “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de
provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova”.
[41]
Ímprobo litigante.
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