quarta-feira, 4 de junho de 2014

Mandado de segurança coletivo e os partidos políticos: equívocos e contratempos



J. E. Carreira Alvim, Cadeira n. 35.*


Sumário1. Preâmbulo. 2. Mandado de segurança coletivo e a Lei dos Partidos Políticos. 3. Partido político como “garante” dos direitos fundamentais. 4. Legitimação ativa do partido político para mandamus coletivo. 5.  Culto ao preconceito contra a ação coletiva 6. Limitações mal postas à legitimação do partido político. 7. Equívocos decorrentes de um conceito mal interpretado. 8. Partido político com representação no Congresso. 9. Interesse legítimo do partido político. 10. Ação coletiva: uma instituição tratada por padrastos 11. Conclusão.  


1. Preâmbulo - No momento em que se discute um Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, disciplinando inclusive o mandado de segurança coletivo, parece estranho que se tenha incorporado à nova Lei 12.016/09, em sintéticos dois artigos (21 e 22), a não ser que, por detrás dessa estratégia, esteja o propósito disfarçado de mais uma vez privilegiar o poder público, tamanhas são as restrições impostas em seu favor, no mandado de segurança individual.
Sendo o mandado de segurança coletivo[1] espécie do gênero “mandado de segurança”, que compreende também o individual, os seus requisitos vêm previstos no inciso LXIX do art. 5º, ou seja, proteção contra ameaça ou lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, por ato ilegal ou abusivo de autoridade.
O mandado de segurança coletivo vem, sob essa denominação, identificado, na Constituição, pelos legitimados a impetrá-lo, dispondo o inciso LXX do art. 5º que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado, dentre outros, por partido político com representação no Congresso Nacional. 

2. Mandado de segurança coletivo e a Lei dos Partidos Políticos - Nos termos do art. 21, 1ª parte, da Lei 12.016/09, o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária.
A Lei dos Partidos Políticos prescreve, por seu turno, que o partido político é uma pessoa jurídica de direito privado, destinada a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos[2] na Constituição Federal (Lei 9.096/09, art. 1º).
No entanto, o art. 21 da Lei 12.016/09, que disciplinou o novo mandado de segurança, só autoriza o partido político a impetrar o mandamus coletivo na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, sem qualquer alusão à defesa dos direitos fundamentais definidos na Constituição, referida tanto no art. 17 desta,[3] quanto no art. 1º da Lei dos Partidos Políticos.
A nova lei do mandado de segurança restringiu, no caput do seu art. 21, inconstitucionalmente, o alcance do art. 1º da Lei dos Partidos Políticos, pois os “direitos fundamentais da pessoa humana” [4]são muitíssimo mais amplos do que, simplesmente, “interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”. E disse mal, porque os interesses legítimos não são relativos aos integrantes do partido político, mas ao próprio partido, porque relativos aos integrantes deste são os diversos interesses individuais (direitos subjetivos) albergados pelos interesses legítimos.[5]

3. Partido político como “garante” dos direitos fundamentais - Em doutrina, Lúcia Valle Figueiredo,[6] escrevendo antes da promulgação da nova lei mandamental, chama a atenção para a amplitude do campo de atuação dos partidos políticos, e, em consequencia, sua competência para a interposição de mandado de segurança coletivo (no seu sentido mais amplo); o que os posiciona como garantes da cidadania, do Estado Democrático de Direito, da separação dos Poderes, dos direitos fundamentais, com competência para provocar a atuação do Judiciário.
A Constituição, no seu art. 5º[7], assegura, explicitamente, aos brasileiros (e estrangeiros) residentes no País os direitos fundamentais: à vida, como a habitação, o emprego, o trabalho; à liberdade de locomoção, de pensamento, de reunião, de associação, de profissão, de ação, de liberdade sindical, de greve; à igualdade de oportunidades sociais, de gozo na prestação de serviços públicos essenciais; à segurança dos direitos subjetivos em geral, materiais e processuais; à propriedade em geral, material e imaterial, artística, literária e científica, etc.[8]
O partido político é um ente legitimado que alcança todos os cidadãos, filiados ou não, em qualquer ponto do território nacional, sendo, por isso, o mais indicado para impetrar mandado de segurança coletivo em defesa de interesses legítimos, quando, na sua base, estejam os direitos individuais (subjetivos) lesados ou ameaçados de violação por ato do poder público.
Em princípio, pode até parecer que a regra do art. 21 tenha alguma legitimidade, na medida em que, apenas para fins de mandado de segurança coletiva, operaria a restrição por ele imposta, que não se aplicaria às demais ações de conhecimento, sendo esta, provavelmente, a exegese que prevalecerá nos tribunais, que considerarão a norma dos partidos políticos uma regra geral, em relação à norma mandamental, que seria uma regra específica. Essa interpretação pode até atender melhor aos interesses do poder público, mas não tem fundamento científico, porque, se o poder de demandar em defesa de determinado interesse brota da Lei dos Partidos Políticos, não pode a Lei do Mandado de Segurança restringir-lhe o alcance, senão apenas dispor sobre a disciplina a ser observada quanto ao procedimento. Se se entender, na prática, que a restrição é apenas para a ação mandamental, não haverá maiores problemas, porque, na atual sistemática processual, as ações ordinárias de conhecimento estão sujeitas às mesmas restrições na concessão de liminares, quando estas forem proibidas em sede jurisprudencial, mas, se se entender que a legitimação do partido político está condicionada a qualquer demanda (mandamental ou não) na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à fidelidade partidária, ter-se-á uma gritante inconstitucionalidade, pois uma lei ordinária (mandamental) estará limitando o poder de demandar reconhecido ao ente político por outra lei ordinária (a Lei dos Partidos Políticos).
Essa distinção é importante, porque, conforme prevaleça uma ou outra interpretação, estará, ou não, o partido político autorizado a agir na defesa de direitos fundamentais da pessoa humana, como seja, por exemplo, a incorporação de índices de reajustamento (147,06%) aos proventos da aposentadoria e benefícios da Previdência Social.

4. Legitimação ativa do partido político para mandamus coletivo - A meu ver, na largueza do art. 5º, LXX, “a”, da Constituição, o partido político com representação no Congresso Nacional pode impetrar mandado de segurança coletivo, tout court, sem qualquer restrição --, ao contrário do disposto na sua alínea “b”, ao legitimar a organização sindical, entidade de classe e associação apenas para defesa dos interesses de seus membros ou associados –, e sem condicioná-lo aos termos de eventual lei ordinária, pelo que é de duvidosa constitucionalidade o art. 21, 1ª parte, da Lei 12.016/09; embora não tenha a menor expectativa de que essa inconstitucionalidade venha a ser proclamada pelos tribunais, e, muito menos, pela suprema corte.
Registra, igualmente, Scarpinella Bueno[9] ser restritivo e destoante da verdadeira função institucional dos partidos políticos no cenário nacional, entendimento que só autoriza a impetração coletiva para a tutela de seus filiados, o que significaria tratar os partidos como meras entidades associativas, o que, a toda evidência, não o são.[10]
Outro não é o entendimento de Lúcia Valle Figueiredo,[11]escrevendo na vigência da lei anterior, para quem, diferentemente das associações e sindicatos, que só podem impetrar mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados, os partidos políticos não conhecem restrições constitucionais, ou, por outra, a proteção não será apenas para os filiados do partido, muito pelo contrário.

5. Culto ao preconceito contra a ação coletiva - A maior utilidade das ações coletivas, pela extensão das sentenças nelas proferidas, resulta, sem dúvida, daquelas ajuizadas por partidos políticos, com atuação em todo o território nacional, e, portanto, legitimação a mais ampliada possível, porque, em se tratando dos demais legitimados, apenas as confederações de trabalhadores ou patronais e as centrais sindicais – para quem as admite no contexto das organizações sindicais -- desfrutam de idêntico poder de fogo.[12]
Talvez por isso, tenha a nova Lei mandamental, no interesse do poder público, restringido a legitimação do partido político, sem que os pretórios se mostrem dispostos a rever o seu posicionamento sobre o tema, tendo o STJ decidido em sentido contrário ao afirmado no texto, no MS 197, nestes termos:
“Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto”, afirmando, nesse mesmo aresto, a “impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles”.
Essa decisão é um culto ao preconceito contra a ação coletiva, um desconhecimento dos fundamentos em que ela se alicerça e, o que é pior, um deliberado propósito de beneficiar o poder público, não dando ao mandamus a extensão que tem no texto constitucional, ainda que para isso, invocando, indevidamente, a própria Constituição.
No que tange à necessidade de autorização expressa para o partido político agir em juízo, em defesa de interesse coletivo (rectius legítimo), espera-se que a jurisprudência se alinhe em dar à expressão “dispensada, para tanto, autorização especial” um alcance que compreenda também os partidos políticos, porque, do contrário, mesmo agindo eles “na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”, como soa o art. 21, 1ª parte, não faltará, nos tribunais, inclusive nos superiores, quem entenda necessária essa autorização, afirmando que a dispensa referida na parte final desse dispositivo só compreende as entidades referidas na alínea “b” do inciso LXX do art. 5º da Constituição (a organização sindical, a entidade de classe e a associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano).

6. Limitações mal postas à legitimação do partido político - As limitações impostas pelos vetustos acórdãos proferidos nos Mandados de Segurança 197[13] e 256,[14] do Superior Tribunal de Justiça, relativamente aos interesses dos filiados a partidos políticos e necessidade de autorização expressa caíram por terra, com a redação dada ao art. 21, parte inicial, mas aquela imposta pelo MS 256, que negou legitimidade ao partido político para defender em juízo cinqüenta milhões de aposentados, por não serem, na sua totalidade,[15] filiados ao partido, recebeu do mesmo art. 21 um discutível e injustificado aval, ao dispor (embora inadequadamente) que cabe ao partido atuar (apenas) “na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”. Foi também avalizada pelo art. 21 da nova Lei mandamental, a limitação imposta pelo MS 197, que entendeu só poder o partido político agir no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas; a meu ver, mal avalizada, mas, infelizmente avalizada.
Como disse alhures, o art. 21 da nova Lei mandamental, dispondo como dispôs, atropelou um dos mais legítimos e constitucionais objetivos do partido político, expresso no art. 1º da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), que lhe impõe como destinaçãodefender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”, e nenhum direito é mais fundamental do que o de milhões de aposentados aos quais manda a lei que se conceda determinado índice de correção monetária, que o Governo o garfou sem o menor constrangimento

7. Equívocos decorrentes de um conceito mal interpretado - Voltando à decisão do STJ, no MS 197, sobre a grande massa dos interesses individuais (verdadeiros direitos subjetivos dos aposentados), de impressionantes cinqüenta milhões[16] de beneficiários, o acórdão deveria conduzir ao resultado diametralmente oposto, a uma porque, o que o partido político defende em juízo é o interesse legítimo – como diz, atualmente, de forma “mal dita” o art. 21 da nova Lei --, isto é, que a Administração pública seja o que ela deva ser, isenta de ilegalidades e de abusos de poder, ou seja, a “legalidade objetiva da Administração pública”, e, a outra, porque, não é necessário, para ter albergo no guarda-chuva do interesse legítimo, que fundamenta a impetração coletiva, que todos os aposentados fossem filiados ao partido, bastando que alguns deles o fossem, para justificar a procedência do mandamus.
Por outro lado, quando presente o interesse legítimo, não cabe ao tribunal pesquisar que interesses individuais estão ou não albergados por ele, porque esses interesses podem até nem existir quando da prolação da sentença, mas existir quando do seu trânsito em julgado. Assim, uma ação coletiva ajuizada por uma Associação de Pais de Alunos contra o aumento abusivo de mensalidades, por exemplo, vai beneficiar inclusive os pais que, após o trânsito em julgado da decisão, tiverem interesse individual (direito subjetivo) envolvido na demanda --, a que as mensalidades se contenham num determinado percentual de aumento --, conforme decidido pela sentença coletiva. A isso se chama proteção reflexa, indireta ou por tabela dos interesses individuais coligados ao interesse legítimo, com o qual não está muito familiarizada a jurisprudência dos nossos tribunais.
Embora Sérgio Ferraz[17] entenda acertada a distinção feita[18] pelo STJ (MS 256)[19] entre o interesse de grupos e o interesse coletivo, assentando que, no primeiro, mesmo contando com a pluralidade de pessoas, o objetivo é comum e limitado, ao passo que, no segundo, está afeta a difusão do interesse, alcançando os integrantes da sociedade como um todo, a meu ver, tal distinção, além de equivocada, é divorciada da Constituição. Para desestabilizar essa distinção, basta considerar que a própria Constituição, no seu art. 8º, inciso III,[20] atribui ao sindicato a defesa de interesses coletivos da categoria, inclusive por mandado de segurança coletivo, e não é de se supor tratar-se de interesses dos integrantes da sociedade como um todo, senão da categoria de trabalhadores representada pelo sindicato-impetrante.    
Contra os arestos no MS 197 e MS 256, manifestou-se, com justa razão, Sérgio Ferraz[21], nestes termos que merecem reprodução:
“Nossa posição no particular, antes exposta, diverge de ambos os julgados acima transcritos, nos quais se detecta uma preocupação de confinar o alcance da legitimação dos partidos políticos (muito em afinação, frise-se, com a linha de pensamento de Calmon de Passos) para a impetração do mandado de segurança coletivo. Fiéis à mesma colocação vestibular, tantas vezes aqui invocada, de proclamar a necessidade de sempre se dar interpretação elástica às normas referentes ao mandado de segurança, por força de sua certidão de nascimento constitucional e sua capitulação dentre as garantias fundamentais da cidadania, não podemos concordar com as teses doutamente apresentadas nos arestos sob comento”.

8. Partido político com representação no Congresso -  Nem todo partido político está legitimado a impetrar mandado de segurança coletivo, mas apenas aqueles que tiverem representação no Congresso Nacional, bastando a presença de um único deputado federal ou um único senador,[22] para fazer nascer essa legitimação.
O Congresso Nacional é integrado por dois órgãos, que são a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, pelo que, se o partido político tiver um representante numa dessas casas, terá preenchido o requisito da legitimação, que, nesse caso, é uma das condições do mandado de segurança coletivo. No entanto, para impetrar mandado de segurança individual, em defesa de direito subjetivo seu, não precisa o partido político ter representação congressual, bastando comprovar a regularidade da sua constituição e funcionamento.
Comparativamente com a sua fonte constitucional, o art. 21 da nova lei do mandado de segurança apenas acrescentou à legitimação do partido político com representação no Congresso Nacional, o objetivo colimado através do mandamus, consistente na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária.

9. Interesse legítimo do partido político - O art. 21 faz supor que apenas o mandado de segurança coletivo impetrado por partido político se apóia num interesse legítimo, vez que, ao tratar da impetração pelos demais legitimados (organização sindical, entidade de classe e associação) fala em “defesa de direitos líquidos e certos [no plural] da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados”, passando a falsa impressão de que essa pluralidade de direitos possa caracterizar uma ação coletiva; mas, na verdade, seja o mandado de segurança coletivo impetrado por qualquer dos legitimados (partido político, sindicato, entidade de classe ou associação), a proteção é conferida, em qualquer caso, ao interesse legítimo, sendo os eventuais direitos subjetivos de seus membros ou associados protegidos indiretamente ou por tabela.
Ao aludir a “direitos líquidos e certos”, o art. 21 ressuscitou outra impropriedade, ao tratar o direito líquido e certo como sinônimo de direito subjetivo material, quando essa concepção já foi, há muito, sepultada pela moderna doutrina processual, ao assentar que a liquidez e a certeza “do direito” não se prendem, como se afirma, ao direito subjetivo, mas à forma como o fato, no qual se embasa, se apresenta no processo, demonstrados mediante prova documental e preconstituída, pondo o juiz em condições de extrair dele as consequencias jurídicas que resultam da lei.
Em outros dois mandados se segurança coletivos (MS 1.235 e 1.252) adota o STJ a mesma orientação, contrária à legitimação do partido político, para a impetração de mandado de segurança coletivo, sendo o primeiro relativo aos 147,06% devido aos aposentados, ao fundamento de que, se o mandado não tem por objetivo direitos subjetivos ou interesses atinentes à finalidade partidária, falta ao partido político legitimatio ad causam para impetrá-lo. Nessa hipótese, o acórdão considerou que o impetrante alvitrava a proteção a direitos subjetivos individuais homogêneos de beneficiários da Previdência Social, ou seja, o pagamento do reajuste de 147,06% a todos os beneficiários em manutenção e de prestação continuada.
Na verdade, os acórdãos proferidos nos MS 1.235 e 1.252 fizeram uma baita confusão, ao falar em direitos individuais homogêneos,[23] porque, em se tratando de mandado de segurança coletivo, o que estava em jogo não era o pagamento de 147,06% aos aposentados --, mesmo porque “o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança” (Súmula 269 do STF) --, mas o interesse legítimo, em que fosse incorporado aos proventos dos aposentados um índice de correção imposto por lei, e garfado pelo Governo. Se assim tivesse decidido o STJ, a Previdência Social teria que fazer a correção dos proventos e benefícios previdenciários, com a inclusão desse índice, para todos os que fizessem jus a ele, mas esse não era, definitivamente, o objeto do mandado de segurança coletivo, porquanto tais direitos subjetivos estariam albergados pelo guarda-chuva a que se denomina interesse legítimo.[24]
Lúcia Valle Figueiredo[25] tangenciou o tema, embora sem aludir ao interesse legítimo, fazendo-o nestes termos:
“Na parte dos direitos sociais, que se constituem também em direitos fundamentais, somente a título de exemplo, tome-se o salário mínimo (art. 7º, IV).[26]
O salário mínimo fixado em lei deve ter, nos termos constitucionais, reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. De conseguinte, se não houver reajuste periódico, pelo contrário, perda do poder aquisitivo, demonstrada de plano, também cabe mandado de segurança coletivo, que poderá ser impetrado não só pelos sindicatos, mas, também, pelos Partidos Políticos.
O instrumental jurídico, o grande meio de defesa, está na própria Constituição de 1988, que não poderia consagrar direitos como meros programas, sem vinculação ao legislador ou ao aplicador. Ou mesmo ao Judiciário, a quem cabe, da maneira mais ampla, em face da ampliação de sua competência no inc. XXXV do art. 5º [27] da mesma Constituição.”
Nessas circunstâncias, o partido político não age motivado pela defesa de direitos subjetivos dos aposentados, mas fundado num interesse legítimo em que a lei seja cumprida, caso em que o mandamus “destina-se à defesa da legalidade objetiva”;[28] sendo os eventuais direitos subjetivos dos aposentados protegidos reflexamente ou por tabela.
Foram decisões como essas que incentivaram a nova mandamental a limitar a atividade do partido político, pela forma como dispôs, no seu art. 21, aludindo inclusive à “finalidade partidária”.[29] 
No particular, Carlos Ari Sundfeld[30] pôs também o dedo na ferida, ao registrar que o mandado de segurança coletivo (impetrado por partidos políticos) “destina-se à defesa da legalidade objetiva”, cumprindo um papel assemelhado ao da ação popular, com a diferença de que, na ação popular, basta que o ato atacado seja ilegal (ou atentatório à moralidade administrativa), sem necessidade de demonstração de lesividade, enquanto, no mandado de segurança coletivo, a prova da ilegalidade deve ser preconstituída.[31]
Esse registro, a meu ver, contém um equívoco, em ter o citado jurista circunscrito ao partido político --, como fez, também, o art. 21 da atual LMS --, a defesa da legalidade objetiva, que alberga um interesse legítimo, porque, na verdade, esse interesse é o móvel de toda e qualquer ação coletiva, qualquer que seja o ente legitimado (partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação).
Se o ente legitimado, no caso, o partido político, em vez de fundamentar a impetração num interesse legítimo, o fizer em defesa de um direito subjetivo seu, contra ato ilegal ou abusivo de poder, o mandado será individual e não coletivo.[32]

10. Ação coletiva: uma instituição tratada por padrastos - Infelizmente, a ação coletiva entrou no ordenamento jurídico brasileiro pela porta dos fundos, e foi tratada por padrastos,[33] sem tempo, sequer, para se fazer conhecer como “instituição”, pelos operadores do direito, e, muito menos, pelos estudantes, pois sequer fazia parte -- como continua não fazendo, na grande maioria -- do currículo das instituições de ensino.
Em sede legislativa, o desconhecimento da ação coletiva é de tal ordem que a Lei 7.347/85 – que disciplina a ação civil pública, de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico – consagra um art. 16, como se todos esses bens pudessem ser coarctados a determinado lugar, dispondo que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.[34]
Essa disposição do art. 16 da ACP[35] demonstra total descompasso entre interesse legítimo e direito subjetivo,[36] como se a sentença proferida na ação civil pública pudesse limitar a proteção ao interesse legítimo dos entes legitimados[37] – Ministério Público, Defensoria Pública, entes da Administração federal, direta e indireta, e associações privadas – restringindo a coisa julgada (rectius a eficácia da sentença)[38] aos limites de competência territorial do órgão prolator, como se os consumidores localizados fora desse limite fossem jurisdicionados de quinta categoria. Em se tratando de proteção ao meio-ambiente, essa restrição é ainda mais insustentável, pois o interesse legítimo se apresenta como um guarda-chuva capaz de abrigar apenas os habitantes de determinado ponto do território nacional, pelo fato de a ação ter sido ajuizada nesse foro e a sentença sido proferida pelo juízo desse foro.[39]
A lei desconhece, também, que a extensão subjetiva dos efeitos da sentença não se identifica com a coisa julgada, podendo a sentença ser imutável para as partes, sem que o seja para quem não participou do processo; distinção esta que foi feita pela doutrina italiana ainda na primeira metade do século passado.
Se o que move a ação coletiva, qualquer que seja a sua modalidade, mandamental ou não, é o interesse legítimo, enquanto “defesa da legalidade objetiva”, não tem o menor sentido que um fato seja reconhecidamente ilegal num determinado foro, por ter sido aí proferida a sentença, e continue sendo legal no resto do País. Foi esse desconhecimento que levou à alteração do art. 16 da Lei 7.347/85, que era originariamente corretíssimo, pois não fazia qualquer alusão ao “limite da competência territorial do órgão prolator da decisão”, excepcionando do alcance da coisa julgada apenas o pedido julgado improcedente.[40] Ao ser modificado, com a elasticidade que lhe deu a Lei 9.494/97, o art. 16 da nova LMS, entrou em rota de colisão com a grandeza das ações coletivas, neutralizando, praticamente, em sua grande extensão a utilidade dessas ações; e --, o que é impossível disfarçar --, com o deliberado propósito de proteger um dos nossos maiores improbus litigator,[41] que é o poder público nacional.

11. Conclusão - Estas considerações foram por mim expostas na minha recente obra sobre o Novo Mandado de Segurança, decorrente da promulgação da Lei 12.016/09, a qual, pelas restrições que consagra em favor do poder público, contrárias ao direito líquido e certo do impetrante, de fundo constitucional, seria mais adequado chamá-la de nova lei do mandado de (in)segurança.


(*) Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas, cadeira n. 35; doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; membro do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.







[1] Para Cretella Júnior, o vocábulo “coletivo”, parte integrante da expressão maior “mandado de segurança”, não se contrapõe ao vocábulo “individual”. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Lei do Mandado de Segurança, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 6.
[2] A Constituição não chega a “definir” os direitos fundamentais, limitando-se a fazer, no seu art. 5º, um elenco deles, depois de dizer que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)
[3] Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos,resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: (...).
[4] Registra, igualmente, Lúcia Valle Figueiredo que, na Constituição de 1988, bem porque os valores da dignidade da pessoa humana e da cidadania, ao lado de outros, fundamentam o Estado Democrático de Direito, o instrumental de defesa há de ser hábil de forma a que, sobretudo, o cerne fixo da Constituição possa ser preservado. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43.
[5] Numa grosseira comparação, é como um foguete com a sua nave espacial, em que se um (interesse legítimo) se perde no espaço, os outros (direitos subjetivos) não chegam, igualmente, ao seu destino.
[6]  FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit.,  p. 43-44.
[7]  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (,,,).
[8] GSCHWENDTNER, Loacir. Direitos Fundamentais. JUS Navigandi.
[9] BUENO, Cássio Scarpinella.  Mandado de Segurança, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 38.
[10] Para mim, a expressão “entidade associativa” em sentido amplo, que foi o empregado pelo inciso XXI do art. 5º da Constituição, compreende toda e qualquer entidade, inclusive o partido político; mas, se todo partido político é uma entidade associativa, nem toda entidade associativa é um partido político, principalmente para fins de defesa de interesse legítimo e direito subjetivo.
[11] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 42.
[12] Na prática, as confederações e centrais sindicais não têm noção do poder de demandar que receberam do art. 5º, LXX, “a”, da Constituição, em defesa do interesse legítimo, porque nem a doutrina e nem a jurisprudência lhes têm feito justiça no particular.
[13]  “Processual – Mandado de segurança coletivo – Partido político – Ilegitimidade.
       Quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim quando autorizado por lei ou pelo estatuto.
       Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles” (MS 197).
[14]    “O interesse de grupos não se confunde com o interesse coletivo. O primeiro, mesmo contando com pluralidade de pessoas o objetivo é comum e limitado, ao passo que no segundo esta afeto a difusão do interesse, alcançando os integrantes da sociedade como um todo. (MS 256).
[15] Esse entendimento bate de frente com o enunciado da Súmula 630 do STF: “A entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse apenas a uma parte da respectiva categoria.”
 [16] Essa cifra, em vez de funcionar em favor dos aposentados, por demonstrar a grande quantidade deles que estava sendo lesada pela Previdência Social, funcionou ao contrário, impressionando o Tribunal superior em benefício do poder público. Essa decisão foi por maioria, o que demonstra que nem todos os julgadores incidiram nesse equívoco. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 48.
[17] FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[18] No particular, Sérgio Ferraz considera acertada apenas a distinção, porque não endossa as conclusões do acórdão. FERRAZ,Sérgio. Op.cit., p. 48.
[19] Para se perceber a importância que têm essas distinções, quando mal feitas pelos pretórios, no caso do Mandado de Segurança 256, o STJ, por maioria, não conheceu do mandado; o que mostra que nem todos os seus integrantes embarcaram na pretendida (e equivocada) distinção. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 48.
[20] Art. 8º (...) III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; (...)
[21] FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 48.
[22] Neste sentido, Sérgio FERRAZ. Op. cit., p. 45.
[23] Os direitos individuais homogêneos só são objeto de tutela coletiva, por questão de conveniência, pois não são substancialmente coletivos, mas apenas acidentalmente tratados como se tratam os direitos coletivos, em decorrência da sua origem comum.
[24] Em ambos os julgamentos, a decisão foi por maioria, o que mostra que nem todos os julgadores estão equivocados, quando se trata de mandado de segurança coletivo. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 49.
[25] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 45-46.
[26] CF, art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. (...) IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (...)
[27] Art. 5º (...) XXXV – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
[28] SUNDFELD, Carlos Ari. Mandado de segurança coletivo na Constituição de 1988, in Revista de Direito Público n. 89, p. 41; apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[29] Registra Sérgio Ferraz decisões de tribunais regionais federais contrárias à orientação firmada pelo STJ, como, por exemplo, AMS  89.01.18276-9, do TRF-1; AMS 91.02.19445-7, do TRF-2; AMS 90.04.02703-3 do TRF-4; e AMS 1.902, do TRF-5. FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 49.
[30] SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 41; apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[31] Nessa mesma linha, Celso Agrícola Barbi (Mandado de Segurança na Constituição de 1988, in RePro 57/7 de ss.); Ada Pellegrini Grinover (in RePro 57/96 e ss.); Ernane Fidélis dos Santos (in Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 18, pp. 1 e ss.); Francisco Antônio de Oliveira (Mandado de segurança e Controle Judicial, Ed. RT, 1992, p. 212); José Lázaro Guimarães (As Ações Coletivas e as Liminares contra Atos do Poder Público, 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, pp. 67 e ss.) e Alfredo Buzaid (Considerações sobre o Mandado de Segurança Coletivo. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 96-97); apud FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 45.
[32]  CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 7.
[33]  Não me refiro aqui aos grandes juristas que cuidaram do tema em nível doutrinário, em busca de uma exegese que amoldasse a linguagem de origem com a nacional; mas àqueles que impuseram à ação coletiva, principalmente em nível legislativo, um perfil que atenta contra a  sua grandeza constitucional.
[34] Esta redação foi dada pelo art. 2º da Lei 9.494/97.
[35] Lei da Ação Civil Pública.
[36] Esse desconhecimento é também uma constante na doutrina e na jurisprudência.
[37]    Art. 5o  Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
[38] A coisa julgada não é “a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”, como soa, equivocamente, o art. 467 do CPC, mas a própria imutabilidade da sentença e da sua eficácia
[39] Modus in rebus, seria como que coarctar a eficácia de uma sentença proferida numa ação de divórcio a determinado ponto do território nacional, pelo fato de ter a sentença sido proferida pelo juízo desse foro, sendo as partes consideradas divorciadas apenas nesse foro, e casadas no restante do território nacional. Tal modo de pensar conduz, também, ao absurdo de o juízo de determinada comarca poder negar o cumprimento a uma carta precatória para penhora de bens pelo simples fato ter a sentença exequenda sido proferida pelo juízo de outra comarca.
[40]  Na sua redação original, era a seguinte o teor do art. 16 da Lei 7.347/85: “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
[41] Ímprobo litigante. 

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