terça-feira, 3 de junho de 2014
Comprometimento musculoesquelético como primeira manifestação de neoplasias
Musculoskeletal involvement as a first manifestation of neoplasm disease
Lúcia Maria de Arruda Campos*; Silvia Goldstein; Rosabraulia Acioly Santiago; Adriana Almeida de Jesus; Lílian Maria Cristofani; Vicente Odone Filho; Clovis Artur Almeida Silva
RESUMO
OBJETIVO: Identificar pacientes portadores de neoplasias encaminhados ao ambulatório de reumatologia pediátrica por apresentarem sintomas musculoesqueléticos como manifestação inicial, bem como apontar os achados clínicos, laboratoriais e radiológicos que contribuíram para o esclarecimento diagnóstico.
MÉTODOS: Foi realizada análise retrospectiva dos prontuários dos pacientes com diagnóstico final de neoplasia, que foram avaliados na Unidade de Reumatologia do Instituto da Criança – FMUSP entre janeiro de 1983 e dezembro de 2006. Foram registrados os dados referentes às queixas musculoesqueléticas, exame físico, provas laboratoriais e procedimentos radiológicos e invasivos realizados.
RESULTADOS: Dos 4876 pacientes, 25 (0,5%) crianças foram estudadas, sendo que 52% apresentavam leucemia linfóide aguda - LLA e 24% neuroblastoma. Vinte crianças (80%) apresentaram artrite e/ou artralgia no início da doença. Todos os pacientes apresentavam sintomas constitucionais, sendo febre o mais prevalente (22 casos - 88%). O hemograma inicial estava alterado em 16 pacientes (64%), mas presença de blastos no sangue periférico foi observada em apenas dois pacientes. Onze pacientes demonstraram alterações evolutivas nos hemogramas seriados. Radiografias simples se mostraram alteradas em 11/14 pacientes, ultra-som em 12/18, cintilografia em 5/5, tomografia em 7/9 e ressonância em 3/3. O mielograma estava alterado em 18/22 pacientes, três deles apenas na repetição do exame.
CONCLUSÃO: Queixas musculoesqueléticas são manifestações iniciais freqüentes das neoplasias, em especial da LLA, que devem ser consideradas no diagnóstico diferencial das doenças reumatológicas. Os hemogramas podem ser inicialmente normais, sendo necessário seu seguimento evolutivo. Exames de imagem e punção de medula óssea demonstraram ser fundamentais no diagnóstico.
Unitermos: Manifestações musculoesqueléticas. Neoplasia. Oncologia. Reumatologia. Artrites. Crianças.
SUMMARY
OBJECTIVE: To describe the clinical and laboratory findings that contributed for the diagnosis of neoplasia in patients with musculoskeletal symptoms at presentation.
METHODS: Retrospective analysis of medical records from patients with final diagnosis of neoplasia attended at the "Unidade de Reumatologia do Instituto da Criança – FMUSP" between January 1983 and December 2006. Data on musculoskeletal complaints, clinical examination, laboratory tests, radiological studies and diagnostic procedures were obtained.
RESULTS: From 4876 patients, 25 (0.5%) children were studied (52% with acute lymphoid leukemia and 24% with neuroblastoma). Twenty children (80%) presented arthritis and/or arthralgia at onset of the disease. All patients presented systemic symptoms, such as fever (22 cases – 88%). The initial blood cell count was abnormal in 16 patients (64%), showing anemia and thrombocytopenia (12 and 5 cases, respectively). Blast cells were present in only two patients and eleven patients developed blood cell count abnormalities during follow-up. X-ray studies showed abnormalities in 11/14 patients, ultrasound in 12/18, scintigraphy in 5/5, CT in 7/9 and MRI in 3/3. Bone marrow smear was abnormal in 18/22 patients, but in three of them the abnormalities were not detected by the first test.
CONCLUSION: Musculoskeletal symptoms are common at the onset of neoplasia, especially for acute lymphoid leukemia, and this possibility should be considered in the differential diagnosis of rheumatic diseases. Laboratory tests may be normal at the onset of the disease, therefore serial exams should be performed. For a correct diagnosis. radiological studies and bone marrow aspiration have proven to be essential.
Key words: Musculoskeletal manifestations. Neoplasm. Oncology. Rheumatology. Arthritis. Children
INTRODUÇÃO
As doenças neoplásicas podem apresentar, como parte de seu quadro clínico, diversas alterações musculoesqueléticas e/ou sintomas sistêmicos (febre de origem indeterminada, exantema, artrite/artralgia, miosite, vasculites, linfadenopatia, hepatoesplenomegalia), tanto no início da doença como durante sua evolução.
Tais manifestações podem ser decorrentes de diferentes situações1,2,3: tumor primário (benigno ou maligno) ósseo, cartilaginoso, fibroso, do tecido conjuntivo ou de origem mista invadindo diretamente o tecido ósseo, articular ou muscular; tumor ósseo metastático; infiltração malígna da medula óssea; síndromes paraneoplásicas induzidas por tumores distantes via mediadores inflamatórios e eventos adversos às medicações antineoplásicas.
Muitas vezes o comprometimento osteoarticular pode se apresentar como a primeira manifestação da neoplasia ou predominar em relação aos demais sinais e sintomas da doença, podendo ser interpretado como manifestação de doença reumatológica, acarretando atraso diagnóstico e comprometendo o prognóstico do paciente.
Na infância, as alterações osteoarticulares secundárias a doenças mieloproliferativas (leucemias e linfomas) são bem conhecidas2, mas apresentações musculoesqueléticas de outras neoplasias são raramente descritas 3,4.
O objetivo deste estudo foi identificar os tipos de neoplasias que foram encaminhados ao ambulatório de reumatologia pediátrica por iniciarem seu quadro clínico com sintomas musculoesqueléticos, assim como apontar os achados clínicos, laboratoriais e radiológicos destes pacientes e como os mesmos contribuíram para a elucidação diagnóstica.
MÉTODOS
Foi realizada a análise retrospectiva dos prontuários de 25 pacientes com diagnóstico final de neoplasia, que foram encaminhados por sintomas musculoesqueléticos à Unidade de Reumatologia Pediátrica do Instituto da Criança - Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, selecionados dentro de um universo de 4.876 pacientes atendidos no período entre janeiro de 1983 e dezembro de 2006.
A idade no início do acompanhamento variou de 1 ano e 8 meses a 11 anos e 4 meses, com média de idade de 5,9 anos. Quinze pacientes eram do sexo masculino e dez do sexo feminino (relação masculino: feminino de 1,5:1).
Artralgia foi definida pela presença de dor articular e artrite por edema articular ou presença de dois dos seguintes: dor à palpação, dor à movimentação passiva e limitação articular. O envolvimento articular foi classificado em relação à: duração aguda (duração até cinco semanas) ou crônica (duração superior a seis semanas), localização e número de articulações acometidas, sendo pauciarticular (acometimento de quatro ou menos articulações) ou poliarticular (acometimento de cinco ou mais articulações).
Cada caso foi revisado quanto à: forma de apresentação da doença, ou seja, quais alterações musculoesqueléticas ou sintomas sistêmicos os pacientes apresentavam inicialmente; exames laboratorias: hemograma, considerando os limites de normalidade de acordo com a faixa etária5, velocidade de hemossedimentação (VHS), proteína C reativa (PCR), desidrogenase lática (DHL), ácido úrico, fator antinúcleo (FAN) e anticorpo anti-estreptolisina O (ASLO); exames radiológicos: radiografias ósseas, de tórax e de abdomen, ultra-sonografia, cintilografia óssea, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética; mielograma e biópsia óssea.
RESULTADOS
De um total de 4.876 pacientes seguidos nesses 24 anos, 25 (0,5%) pacientes oncológicos foram inicialmente encaminhados ao ambulatório de reumatologia pediátrica por apresentarem queixas musculoesqueléticas, sendo elas: artrite ou artralgia em 20 pacientes (80%), um deles também com miosite e dor em membros em quatro pacientes. A artrite foi de apresentação pauciarticular em cinco casos, monoarticular em seis e poliarticular em seis. Cinco pacientes apresentavam quadril doloroso. As articulações mais acometidas em ordem decrescente foram: joelhos, coxofemorais, tornozelos, ombros, punhos, cotovelos, pés, mãos e coluna, sendo em 12 pacientes de forma aguda e em oito de forma crônica.
Como sintomas constitucionais foram observados: febre em 22 pacientes (88%), perda de peso em 16 (64%), palidez em 15 (60%), astenia em 14 (56%) e sudorese em 2 (8%). Sete pacientes (28%) apresentavam manifestações cutâneas: hematomas (quatro), petéquias (dois), púrpura (um) e rash (um). Alterações relacionadas ao sistema retículo-endotelial, como hepatoesplenomegalia (três) e poliadenomegalia (seis) foram observadas em sete casos (28%).
Dezessete pacientes foram encaminhados com algum diagnóstico, que incluía: dor em membros, miosite, febre reumática, artrite reumatóide juvenil forma sistêmica, artrite a esclarecer, artrite séptica, osteomielite, sinovite transitória, processo infeccioso, adenite, discite, psoíte e vasculite (Tabela 1).
Na primeira consulta, com base na história clínica, no exame físico e nos dados laboratoriais presentes até aquele momento, foram feitas as seguintes hipóteses diagnósticas: artrite a esclarecer em seis pacientes, quadril doloroso em cinco, artrite reumatóide juvenil (ARJ) em quatro, neoplasia a esclarecer em seis, leucemia linfóide aguda (LLA) em dois, discite em três, osteomielite em três, processos infecciosos em dois, polimiosite, psoíte, febre reumática (FR), sinovite transitória, hepatoesplenomegalia febril, diátese hemorrágica, trauma e causa mecânica em um paciente cada. O tempo médio entre o início dos sintomas e este diagnóstico inicial foi de 14,7 semanas.
Na investigação laboratorial inicial o hemograma estava alterado em 16 pacientes (64%), sendo anemia (com hemoglobina abaixo de 10g/dl) presente em 12 casos (48%), leucopenia (abaixo de 4.500/µl) em quatro, leucocitose (acima de 15.000/µl) em três, plaquetopenia (abaixo de 150.000/µl) em cinco e plaquetose (acima de 500.000/µl) em três. Blastos na periferia foram observados em apenas dois pacientes.
Em 11 dos 25 pacientes (44%), o hemograma repetido por ocasião do diagnóstico da neoplasia demonstrou as seguintes alterações em relação ao exame inicial: presença de anemia progrediu de dois para oito casos, leucopenia de um para três casos, leucocitose passou a ser identificada em um paciente previamente normal, plaquetopenia progrediu de um para quatro casos e presença de blastos, inicialmente ausente, foi observada em três pacientes no segundo hemograma.
As provas inflamatórias estavam alteradas em 21/23 pacientes (91,3%), com VHS acima de 20mm na primeira hora encontrado em 19/21 pacientes (90,5%) e acima de 50mm na primeira hora em 14 destes casos (66,7%). A PCR estava elevada em 12/14 (85,7%) casos. DHL estava elevada em 13 dos 20 pacientes dosados (65%). O FAN foi realizado em 13 pacientes, sendo negativo em todos. O ASLO foi dosado em oito pacientes, apresentando valores acima de 320UI em dois deles (829 UI e 5.340 UI, respectivamente).
Em relação aos métodos de imagem (Tabela 2), 14 pacientes realizaram radiografias de ossos longos ou articulações, sendo alteradas em 11 casos (78,6%), cujos achados foram: lesões líticas em cinco (um deles associado à osteopenia), osteopenia isolada em quatro, osteoporose em um e osteoma osteóide em um. Um paciente apresentava lesões líticas na radiografia de tórax, outro paciente apresentava tumor calcificado em supra-renal na radiografia de abdômen e em um terceiro caso foi evidenciada listese de L5-S1 na radiografia de coluna. Dezoito pacientes realizaram ultra-sonografia de abdômen que se mostrou alterada em 12 deles (66,7%), sendo diagnosticado hepatomegalia e/ou esplenomegalia em cinco, massa tumoral em três, adenomegalia em cinco casos e ectasia de vias biliares intra-hepáticas com hiperecogenicidade periportal em um. Em seis casos, este exame não apresentava qualquer alteração significativa. A cintilografia óssea foi realizada em cinco pacientes, estando alterada em todos. A tomografia computadorizada foi realizada em nove pacientes, sendo alterada em sete, enquanto que a ressonância magnética estava alterada nos três pacientes em que foi realizada.
Dos 23 pacientes em que foi realizado, o primeiro mielograma apresentava-se alterado em 19 deles (82,6%), com os seguintes achados: leucemia linfóide aguda em 13, neuroblastoma em cinco e leucose não identificada em um. A biópsia óssea foi realizada em cinco casos, sendo evidenciado neuroblastoma em três, linfoma não-Hodgkin em um e tumor de pequenas células em um paciente. A biópsia ganglionar foi realizada em dois casos, apresentando-se alterada em ambos (Tabela 2).
O tempo médio entre a admissão em nosso serviço e o diagnóstico final foi de 2,7 semanas, com os seguintes diagnósticos: leucemia linfóide aguda (LLA) em 13 (52%), neuroblastoma em seis (24%), leucemia mielóide aguda (LMA), linfoma não-Hodgkin, linfoma anaplásico de células gigantes, leucose indiferenciada, neurofibroma e osteoma osteóide em cada um dos demais pacientes (Tabela 1).
Entre os tratamentos realizados previamente ao diagnóstico final, temos: 16 pacientes receberam analgésicos, 16 receberam antiinflamatório não-hormonal, 16 receberam antibióticos e cinco pacientes receberam corticosteróides.
Em relação à evolução, 12 pacientes continuam em seguimento no Instituto da Criança, sete foram encaminhados para outro serviço, cinco pacientes faleceram (destes, dois haviam recebido corticosteróides previamente ao encaminhamento, por erro diagnóstico) e um paciente perdeu seguimento.
DISCUSSÃO
Apesar de alguns achados clínicos característicos de doenças neoplásicas serem pouco comuns em doenças reumatológicas, tais como dor não-articular, dor óssea, dor lombar, sudorese noturna e alterações neurológicas focais, outras manifestações, como os sintomas sistêmicos e constitucionais, são comuns em ambas as situações, dificultando seu diagnóstico diferencial. Diversas doenças reumáticas podem se apresentar com febre, podendo, inclusive, se manifestar inicialmente como febre de origem indeterminada. É o caso de ARJ forma sistêmica, do lúpus eritematoso sistêmico (LES) e de algumas vasculites4. Nessa casuística, todos os pacientes apresentavam sintomas constitucionais, como febre, perda de peso, astenia e palidez, que, por serem sintomas inespecíficos, não auxiliam na elucidação diagnóstica.
Neoplasias malignas relativamente freqüentes na infância, como leucemia, neurobastoma, linfoma e sarcoma de Ewing, podem comprometer o tecido ósseo de forma primária ou secundária. Portanto, é importante que estas afecções sejam incluídas entre os diagnósticos diferenciais aventados para pacientes encaminhados ao reumatologista pediátrico.
Vários mecanismos patogênicos têm sido descritos para explicar as manifestações musculoesqueléticas em doenças neoplásicas3: tumores primários do osso, sinóvia ou músculo, sendo os mais freqüentes: osteoma osteóide (um caso na nossa amostra), osteossarcoma e sarcoma de Ewing; metástases ósseas: na infância, geralmente por neuroblastroma (seis casos nesta casuística) e sarcoma de Ewing; invasão da medula óssea: mais comumente causada por doenças linfoproliferativas (Nesta amostra: LLA – 13 casos, LMA – um caso, linfoma não-Hodgkin – um caso, linfoma anaplásico de células gigantes - um caso, neurofibroma – um caso e leucose indiferenciada – um caso).
Em doenças mieloproliferativas ou tumores ósseos, a dor óssea é referida, principalmente na metáfise dos ossos longos. Inicialmente de caráter intermitente, a dor tende a se intensificar e tornar-se persistente, sendo caracteristicamente noturna3. Comumente a dor da lesão neoplásica é de caráter desproporcional ao achado do exame físico2,6,7,8. Apesar de dor musculoesquelética ser uma queixa reumatológica comum, a dor óssea não articular é sempre preocupante e sugere a investigação de doenças neoplásicas4. Em nosso estudo, cinco pacientes apresentavam dor não-articular, de localização periférica.
Tomas et al.9, em 1961, publicaram um estudo comparando as manifestações esqueléticas provocadas por leucemia aguda em adultos (44 pacientes) e crianças (41 pacientes). Os autores observaram que 59% das crianças e 50% dos adultos apresentaram dor óssea em algum momento da doença. Dor no esqueleto periférico foi duas vezes mais comum nas crianças do que nos adultos, que por sua vez localizavam a dor com maior freqüência em costelas e vértebras. Barbosa et al observaram que 62% das crianças com leucemia manifestavam dores musculoesqueléticas e 13% apresentavam evidência clínica de artrites no início do quadro10.
O comprometimento articular, bastante característico das patologias reumáticas, pode ser encontrado em inúmeras situações, como em doenças infecciosas, hematológicas, imunológicas, neoplásicas, entre outras. Tumores ósseos primários e metástases tumorais podem levar a uma reação sinovial direta, com conseqüente artrite, quando afetam ossos justa-articulares, cápsula articular ou sinóvia. Leucemias e linfomas têm sido, dentre as neoplasias, os principais responsáveis por alterações articulares. Nestes casos, a análise do líquido sinovial pode ser do tipo inflamatório ou não-inflamatório, sendo as células leucêmicas raramente encontradas. A biópsia sinovial também pode não evidenciar células neoplásicas pela natureza focal das lesões leucêmicas na sinóvia, o que torna tais procedimentos de pouco auxílio diagnóstico.
A artrite pode preceder o diagnóstico de doença neoplásica em dias a meses1,2. No presente estudo, 20 pacientes apresentavam artrite e/ou artralgia em número de articulações bastante variável, sendo joelhos, coxofemorais e tornozelos as articulações mais freqüentemente acometidas. O diagnóstico mais freqüente nestes pacientes foi LLA (12 casos). Um dos pacientes com LLA foi submetido à punção do líquido sinovial do joelho, com achados compatíveis com artrite séptica e cultura positiva para Staphylococcus aureus e Klebsiella pneumoniae.
O quadro doloroso em quadril exige a investigação de patologias graves, como doenças infecciosas, neoplásicas e ortopédicas, sendo mais raramente manifestação de doença reumatológica, como ARJ, LES ou FR11. Tumores envolvendo a porção proximal do fêmur são raros, mas podem apresentar-se com o quadro clínico de quadril doloroso. A dor pode ocorrer por perda da integridade estrutural ou cistos ósseos. Sintomas musculoesqueléticos de leucemias comumente incluem dor no quadril12. Em nossa casuística, cinco pacientes apresentavam quadril doloroso, sendo diagnosticado LLA em dois deles, neuroblastoma em outros dois e neurofibroma em um caso.
Quadros musculares podem ser manifestações paraneoplásicas13. Em adultos, 5%-27% dos casos diagnosticados inicialmente como dermatomiosite (DM) ou polimiosite (PM) são portadores de neoplasias, geralmente envolvendo pulmão, ovário, mama ou estômago. Na infância, a DM é raramente associada à malignidade. Num amplo estudo publicado em 1992, nenhum paciente com menos de 16 anos de idade com DM ou PM foi identificado como portador de neoplasia. Há relatos desta associação na infância, mas todos de curso clínico bastante incomum13,14.
No nosso estudo, apenas um paciente apresentou clínica compatível com polimiosite, tendo sido tratado com corticosteróides antes do encaminhamento para o nosso serviço. Porém, o hemograma evolutivo mostrou leucocitose e plaquetopenia importantes, as radiografias ósseas mostraram osteoporose intensa e a ultra-sonografia de abdome evidenciou esplenomegalia. Este paciente evoluiu rapidamente para óbito, menos de um mês após o diagnóstico de leucose indiferenciada, estabelecido pelo mielograma.
Exames laboratoriais como hemograma e provas inflamatórias, apesar de inespecíficos, podem apresentar alterações que suscitem a necessidade de aprofundar a investigação diagnóstica. Nas doenças neoplásicas é freqüente o achado de anemia precoce, que deve ser cuidadosamente monitorada. Nas doenças reumatológicas, anemias menos intensas podem ser encontradas como resultado do processo inflamatório crônico destas patologias. Em relação à série branca, nas neoplasias predominam os achados de linfocitose e/ou leucopenia e menos freqüentemente leucocitose, enquanto na artrite reumatóide juvenil observa-se com maior freqüência leucocitose e neutrofilia. A plaquetopenia também auxilia no diagnóstico diferencial entre neoplasias e ARJ, sendo encontrado freqüentemente no primeiro grupo, enquanto no segundo grupo predomina o encontro de plaquetose4,15,16.
É importante salientar a necessidade de realização de hemogramas seriados nestes pacientes, pois com freqüência exames inicialmente normais podem evoluir com alterações sugestivas de processos neoplásicos, como foi observado em 11 pacientes deste estudo, nos quais foi realizado controle evolutivo. Ostrov et al.15, em 1993, publicaram um estudo comparando os elementos clínicos, laboratoriais e radiológicos úteis para diferenciar ARJ e LLA. Observou-se a importância de acompanhar a evolução dos hemogramas, uma vez que na primeira investigação (no momento das queixas musculoesqueléticas), níveis de hemoglobina, leucócitos e plaquetas nos pacientes com LLA eram praticamente normais e ao diagnóstico, os mesmos parâmetros já haviam se alterado. Jonsson et al.17, em 1990, publicaram um levantamento feito em pacientes com LLA, divididos em três grupos: a) sem dor óssea, b) com dor óssea leve a moderada, c) com dor óssea intensa. Verificou-se que os pacientes com dor óssea tendem a ter contagem de leucócitos menor, com poucos ou ausência de blastos no sangue periférico, e que valores de hemoglobina e plaquetas são geralmente normais ou pouco alterados. Os autores concluem que LLA deve fazer parte da investigação diagnóstica dos pacientes com dor óssea ou queixas musculoesqueléticas, mesmo se o hemograma inicial apresentar-se relativamente normal.
O valor elevado da VHS isoladamente não diferencia neoplasia de doença reumatológica, mas VHS elevada na presença de plaquetas normais ou diminuídas pode levar à suspeita de processo infiltrativo4,15. Em nossa casuística, chama à atenção os altos títulos de VHS (acima de 50 mm na primeira hora) encontrados na maior parte dos casos (66,7%).
Em 1996, foi publicado um estudo18 comparando os níveis de DHL em crianças com neoplasias malignas e dor articular. Concluiu-se que DHL sérico normal não afasta neoplasia maligna em pacientes pediátricos, porém artrite associada a aumento de DHL merece investigação diagnóstica mais profunda à procura de malignidade (ultra-sonografia abdominal, cintilografia óssea, mielograma). Diversos autores concordam que a concentração de DHL não pode ser considerada como um marcador confiável na diferenciação entre ARJ e LLA4,15,16. Em nossa casuística, o nível sérico de DHL apresentava-se elevado em 13 dos 20 pacientes em quem foi dosado (65%).
A dosagem de ácido úrico elevado, tido como marcador de doenças neoplásicas, foi observada em apenas um dos 11 casos em que foi realizada.
A pesquisa do FAN tem se revelado positiva em adultos portadores de neoplasias como carcinomas e linfomas19, porém não há uma investigação sistemática sobre sua incidência em crianças com neoplasias8. No presente estudo, o FAN foi negativo em todos os casos em que foi dosado.
O ASLO, freqüentemente solicitado em casos de artrite a esclarecer, deve ser analisado criticamente, relacionando-o com as características clínicas de cada caso. ASLO elevado pode ser um achado concomitante, sem relação com o quadro, o que freqüentemente ocorre em países com alta incidência de infecções estreptocócicas na faixa etária pediátrica. Isto acarreta graves erros diagnósticos, podendo a febre reumática ser superdiagnosticada, enquanto a identificação de uma possível doença neoplásica fica postergada, comprometendo seu prognóstico. Vale ressaltar, nesta casuística, a dosagem de ASLO no valor de 5340 UI em um paciente com neuroblastoma e de 829 UI em outro caso diagnosticado como portador de LLA.
Os achados radiológicos de crianças com doenças mieloproliferativas e queixas musculoesqueléticas podem revelar uma grande variedade de alterações. As mais freqüentes são: rarefação óssea generalizada, lesões osteolíticas corticais e em periósteo, bandas radioluscentes e linhas de parada de crescimento9. Apesar da etiologia da dor óssea não ser completamente conhecida, esta tem sido atribuída a uma variedade de fatores: pressão intramedular elevada, lesões periostais, lesões osteolíticas e osteoporose. Nas crianças, lesões corticais e periostais são as maiores responsáveis pela dor9. Na nossa amostra, os exames radiológicos mostraram-se essenciais na investigação. As radiografias de articulações e ossos longos apresentaram alterações em 78,6% dos pacientes submetidos a esses exames (11/14). Alterações radiológicas também puderam ser observadas em outros sítios como tórax, coluna e abdomen. A ultra-sonografia, a cintilografia óssea, a tomografia computarizada e a ressonância nuclear magnética também demonstraram, neste estudo, índices de positividade elevados, de 66,7% (12/18), 100% (5/5), 77,8% (7/9) e 100% (3/3), respectivamente.
Frente a exames preliminares que suscitem a hipótese diagnóstica de doença neoplásica, a realização de procedimentos diagnósticos mais invasivos, como mielograma e biópsia óssea, torna-se fundamental. No entanto, alguns autores demonstraram que análises iniciais da medula óssea podem falhar em estabelecer o diagnóstico, especialmente em casos de leucemia20. Neste estudo, um paciente com lesões osteolíticas difusas nas radiografias e cintilografia óssea alterada realizou dois mielogramas que foram normais, antes de realizar a biópsia óssea, que demonstrou linfoma não-Hodgkin. Em outros dois casos, com alterações observadas à ultra-sonografia, tomografia e ressonância nuclear magnética, os mielogramas iniciais foram normais e ao serem repetidos diagnosticou-se LMA e neuroblastoma, respectivamente.
É fundamental que a instituição de terapêutica com corticosteróides aguarde a definição correta do diagnóstico, pois está bem estabelecido que este grupo farmacológico piora o prognóstico das doenças neoplásicas3,15. Na amostra estudada, cinco pacientes receberam corticosteróides para tratamento de suposta doença reumatológica antes do encaminhamento para nosso serviço. Destes, dois foram a óbito, um apresentou recorrência da doença após o tratamento inicial da neoplasia, um mantém acompanhamento neste serviço e um foi encaminhado para seguimento em outro hospital.
Uma das limitações deste estudo foi a avaliação retrospectiva de prontuários de um único serviço terciário de reumatologia pediátrica ao longo de 24 anos consecutivos. A presença predominante de manifestações como artrite, artralgia e dores em membros determinou o encaminhamento prioritário ao reumatologista, mas não corresponde à caracterização clínica dos pacientes com doenças neoplásicas de modo geral. Estudos prospectivos determinando manifestações musculoesqueléticas em populações de crianças e adolescentes com neoplasias, assim como comparando manifestações clínicas e laboratoriais entre pacientes com ARJ e leucemias, estão em andamento em nosso serviço.
CONCLUSÃO
Sintomas musculoesqueléticos e constitucionais podem ser as primeiras manifestações de doenças neoplásicas. É importante que esta possibilidade seja investigada, evitando a introdução de terapêuticas inadequadas, atraso no diagnóstico e comprometimento prognóstico. A investigação deve valorizar sintomas clínicos como dor não-articular, quadril doloroso e artrite com dor desproporcional aos achados do exame físico. Exames subsidiários como hemograma e provas de atividade inflamatória devem ser realizados seriadamente, enquanto que a investigação radiológica e particularmente a medula óssea são essenciais para o diagnóstico.
Conflito de interesse: não há
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Artigo recebido: 20/05/07
Aceito para publicação: 26/11/07
Trabalho realizado nas Unidades de Reumatologia e Oncologia Pediátricas do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr-HC-FMUSP), S. Paulo, SP
* Correspondência Rua Tucuman, 177 apto 181B - São Paulo – SP Cep 01455-010 Tel/Fax: 3081-7373 Cel: 8322-0327 lmacampos@terra.com.br
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