terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A sátira e os limites da liberdade de expressão





O texto discute os limites da liberdade de expressão, especialmente no que tange às sátiras com conteúdo religioso.

Sempre que se depara com uma bárbara agressão a um importante princípio consagrado pela sociedade, como a liberdade de expressão, surge a tendência de querer enxergá-lo como absoluto e intangível. Ao querer, porém, dar-lhe o estigma de intocável, acaba-se involuntariamente exterminando-o. Para discutir juridicamente a situação por trás do  ataque ao periódico francês, é preciso tentar colocar as emoções de lado.
Nada justifica o terrorismo e a intolerância. Discutir os limites da liberdade de expressão para sátiras religiosas não é, contudo, uma tarefa fácil. A questão, sob a perspectiva jurídica, é bastante complicada.
Ao ver um ataque terrorista causado pelo exercício (lícito ou não) da liberdade de expressão, quer-se automaticamente alçar a liberdade de expressão a princípio intangível não só do ordenamento jurídico, mas da sociedade. Este pensamento, contudo, destrói séculos de evolução e consagração dos direitos fundamentais.
É essencial à sobrevivência dos direitos fundamentais o seu caráter de relatividade. Por mais essencial que seja um direito fundamental, como o direito à vida e à livre manifestação do pensamento, ele ainda assim mantém o seu caráter relativo. E a relatividade de um direito fundamental não contribui para a sua fraqueza, pelo contrário, garante a sua força e estabilidade no mundo jurídico.
Os direitos fundamentais, ao longo do tempo, ampliaram-se não só em função, mas também em número. O rol de direitos fundamentais, atualmente, é extremamente amplo e está consagrado não só nas Constituições dos Estados, mas também em tratados internacionais (garantindo, assim, o seu caráter universal). Não há direito fundamental (ou liberdade, que é sobre o que se está discutindo aqui) que seja menos importante do que outro. A ausência de hierarquia entre os direitos fundamentais garante que todos eles sejam igualmente respeitados, uma vez que protegem aspectos distintos, porém, essenciais para a manutenção de uma vida digna.
Seria possível escolher entre a honra ou a liberdade de expressão? Entre a liberdade religiosa ou a intimidade? Entre a liberdade de imprensa ou a vida privada? Não, obviamente que não. A ausência de hierarquia entre direitos fundamentais não é, portanto, uma escolha das Constituições, mas sim uma impossibilidade. Não há como estabelecer uma hierarquia entre direitos fundamentais, sem diminuir o seu âmbito de proteção.
Sendo todas as liberdades públicas igualmente importantes, é logicamente impossível que todas sejam aplicadas e garantidas em sua integralidade, sem risco de conflito. Se não fossem considerados relativos, os direitos fundamentais desapareceriam na primeira colisão que sofressem com outro direito fundamental.
Por mais que seja chocante o ataque em Paris, não se pode esquecer que sim a liberdade de expressão é um direito relativo e assim deve continuar para a sua própria sobrevivência.
A liberdade de expressão talvez seja o direito que mais se choque com outros direitos e liberdades. Não são raros os casos em que a liberdade de expressão colide, por exemplo, com o direito à honra e à vida privada ou com a dignidade da pessoa humana. Em famoso caso de (aparente) colisão entre liberdade de expressão e princípio da dignidade,  há que se citar o Caso Ellwanger, em que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a liberdade de expressão não deveria prevalecer ante a agressão que certos livros causaram à dignidade do povo judeu.
Entender que a liberdade de expressão (assim como qualquer outro direito fundamental) não se aplica num determinado caso, não significa dizer que ela desapareceu do mundo jurídico ou que está sendo violada. Exatamente em razão de seu aspecto relativo, a liberdade de expressão pode ceder para garantir a aplicação de outros direitos fundamentais.
Por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais importante o direito protegido, mais flexível, ou relativo, ele deverá ser. Afinal, somente com essa característica, ele poderá sobreviver.

Se a liberdade de expressão não fosse relativa, não se poderia falar hoje em crime de racismo, em danos morais, em proteção à intimidade, ou seja, em diversas conquistas à proteção da dignidade da pessoa humana.
As manifestações vistas em reação ao atentado terrorista em Paris que têm bradado pela intangibilidade da liberdade de expressão e sua ausência de limites nada mais estão (mesmo sem saber) que condenando a liberdade a uma morte rápida. A liberdade de expressão, para ser amplamente garantida, deve sim ser relativa e ter limites. Afirmar isso não implica censura ou agressão à democracia, pelo contrário, garante a sua existência enquanto princípio.
Tratando especificamente do periódico Charlie Hebdo, é de se questionar quais os limites da liberdade de expressão para sátiras religiosas. O tema, que renderia uma tese de doutorado, certamente não tem resposta fácil. Seja qual for a conclusão alcançada, o que se deve admitir é que uma solução possível e democrática seria  a restrição da liberdade de expressão em casos específicos.
Parece razoável defender que, em se tratando de sátiras, os limites da liberdade de expressão devem ser maiores. Afinal, é intrínseco a elas um certo grau de ridicularização ou de crítica exacerbada. Isso contudo não impede eventual responsabilização em caso de excesso. E entenda-se responsabilização, por atos juridicamente previstos, tais como retratação, indenização, entre outros.
O limite das charges e sátiras deve ser definido de acordo com os valores de cada Estado. E uma sátira com conteúdo religioso não deve merecer tratamento jurídico diferenciado daquelas que tratam de outros temas. Se a sociedade admite ou tolera críticas exacerbadas a instituições sociais ou religiosas, não cabe ao Estado intervir de modo a obstaculizar tais manifestações do pensamento. Essa afirmação não significa que todas e quaisquer manifestações serão permitidas num Estado Democrático.
Uma democracia não pode e não deve tolerar discursos de ódio. E para se caracterizar um discurso como atentatório às liberdades e aos direitos fundamentais, é preciso cuidadosa analise do caso concreto e dos valores envolvidos.
Saliente-se que é inevitável que o caráter abusivo ou não de uma sátira ou de um discurso dependerá dos valores do Estado em que se dá a publicação, o que eventualmente pode conflitar com o entendimento que a instituição ou o povo satirizados têm. No caso do Charlie Hebdo, cabe ao Estado francês entender qual o grau de crítica aceitável às religiões e às demais instituições.
Se a mensagem transmitida pelas sátiras ocorresse numa reportagem jornalistica, pouca dúvida haveria em enquadrar tal manifestação como um exercício abusivo da liberdade de expressão. Afinal, não pode direito fundamental abarcar condutas criminosas e atentórias à dignidade de outros povos.
Ao se referir a uma sátira, contudo, a análise é distinta. O direito de crítica está certamente incluído no âmbito de proteção da liberdade de expressão e, portanto, deve permitir uma flexibilidade maior nos seus limites. A depender do conteúdo da sátira (e não é possível falar em abstrato), é possível que sequer se vislumbre uma colisão de direitos fundamentais. Revestindo-se de um caráter humorístico, é razoável considerar que não há ofensa a outro direito fundamental. Ou em se reconhecendo tal colisão, é possível entender que deve prevalecer a liberdade de expressão (após a aplicação do princípio da proporcionalidade, em seus três aspectos).
Apesar de os direitos fundamentais não terem hierarquia, todo Estado é fundado em alguns valores fundamentais e basilares, dos quais não pode se afastar. Assim como o respeito à diversidade cultural não pode servir para permitir tradições regionais de mutilação, também o respeito à diversidade religiosa e cultural não pode ser usado para violar o exercício da livre manifestação do pensamento.
Este tema retona o embate entre universalismo e relativismo. O universalismo dos direitos fundamentais gera o risco de violação das diversidades culturais e religiosas, ao mesmo tempo em que o relativismo, pelo menos noo caso em análise, leva ao risco de extermínio de liberdades consagradas, tais como a liberdade de expressão.
Neste sentido, defender, ou melhor, tolerar as sátiras do periódico Charles Hebdo não significa reconhecer que a liberdade de expressão está livre de quaisquer limites ou exceções, mas sim admitir que a sociedade não enxerga ofensa na realização de uma sátira, uma vez que ela não é dotada de seriedade.
Ainda que se vislumbre um abuso na liberdade de expressão, a democracia e o Estado Constitucional admitem e preveem mecanismos para reparação do dano.
O estudo dos direitos fundamentais é sempre difícil e angustiante, afinal nunca se tem uma solução distanciada do caso concreto. O que não se pode olvidar, no debate do tema, é que os direitos fundamentais são relativos e devem continuar a sê-lo. Pode soar mais poético afirmar que a liberdade de expressão nunca irá ceder, mas será mais eficaz, em termos de garantia, reconhecer que a liberdade de expressão é direito fundamental consagrado na Constituição, que encontra limites no exercício lícito dos demais direitos fundamentais. E quais são esses limites? Esta é a parte angustiante, já que somente será decidida na análise do caso concreto.


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