Christian Ingo Lenz Dunker
O Brasil vive um hiato jurídico no interior do qual se tornou esporte legislativo propor leis que protegem interesses particulares e facultam a produção de novos condomínios simbólicos. Neste clima de “pegue o seu enquanto é tempo”, reedita-se a proposta do Ato Médico – que veta o diagnóstico nosológico, a prescrição terapêutica, a aplicação de injeções entre outras práticas aos profissionais não médicos – foi reapresentada para ser novamente arquivada no fim de outubro.
Na mesma linha pode-se incluir o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 439/2015, proposto pelo senador petista Donizeti Nogueira, de Tocantins, que “estabelece que cargos e funções com atribuições voltadas para os campos da administração (…) somente poderão ser providos por tecnólogos e administradores profissionais regulares na forma da lei”. Que motivo haveria para simplesmente excluir o trabalho de psicólogos dos departamentos de recursos humanos, dos tradicionais procedimentos de seleção, recrutamento e treinamento, sem falar nas tarefas que prestam no âmbito das relações humanas e da vida institucional, nas grandes e pequenas organizações?
Desconfio que além da mania de golpe, que faz cada qual tentar sua sorte como síndico, há razões mais profundas e mais interessantes. Já há dez anos o ambiente corporativo vem se transformando de uma maneira muito curiosa. Há certa consciência de que as habilidades técnicas específicas são cada vez mais fáceis de adquirir e que a competição entre os de mesmo nível se torna cada vez mais indiscernível, sob critérios meramente objetivos de currículo, experiência e qualificação educacional. A “financeirização” dos negócios, que cada vez dependem menos de seu produto básico e mais de suas ações, debêntures, fusões ou aquisições, tornou a relação entre pessoas um fato-chave de qualquer carreira. Não é por outro motivo que os manuais de gerências se expandiram vertiginosamente, os palestrantes profissionais cresceram e as práticas de coaching e mentoring se tornaram norma e padrão. O que habitualmente se chama “política”, que agora se tenciona com as práticas de “compliance”, junto com a valorização de termos-chaves como “potencial”, “talentos” e “gestão de emoções”, nada mais é do que a institucionalização de habilidades psicológicas e das atitudes, condição de crescimento na carreira.
Se olharmos para o outro lado da cadeia alimentar, veremos que as posições menos qualificadas também estão sujeitas a um fato de impacto psicológico tangível. Os que trabalham em regimes precários dependem, cada vez mais, de suas capacidades psicológicas de sobrevivência: domínio infinito do cansaço, resiliência a jornadas e relações impiedosas e contenção de ansiedade e agressividade.
A psicologização do trabalho tornou-se tão generalizada e tão presente em suas atividades e preocupações diárias que certos administradores podem interpretar que na prática já são como psicólogos. Se isso é verdade, por que não nos reservarmos o mercado que nos é de direito? Como aquele técnico de futebol que não precisa de psicólogo esportivo em seu time porque ele mesmo “já é um psicólogo”, ou aquele pastor ou padre que “já sabe tudo o que é necessário neste ramo”. Podemos dizer que não é por falta de informação que tais tolices são proclamadas, mas porque, como dizia Lacan “a impotência em sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”.
Este artigo foi publicado originalmente na edição de dezembro de Mente e Cérebro, disponível na Loja Segmento: http://bit.ly/2guA4d3
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