Carlos Otávio Reis de Sousa
A incriminação das hipóteses eutanásicas constitui uma mostra de paternalismo estatal injustificado, que, impondo omissão ao eutanasista (paternalismo indireto), vulnera reflexamente a dignidade da pessoa afetada.
RESUMO: É lugar comum aludir à transcendente polêmica derredor da disposição da vida pelo próprio titular. No contexto de discussão desta espinhosa dicotomia “vida/morte” situa-se o presente ensaio, o qual propugna por uma reflexão acerca da disponibilidade da vida pelo próprio titular em um contexto em que viver implica violar-lhe a dignidade humana. Trata-se fundamentalmente de analisar o conteúdo, os limites e o âmbito de tutela jurídica à vida em um sistema alicerçado em uma concepção humanista, de realização da pessoa humana. Empreende-se, para tanto, estudo sobre o tratamento conferido pela doutrina nacional ao tema e, especialmente, traz lições hauridas nas doutrinas espanhola e alemã. Questiona-se, no bojo desta investigação, a clássica afirmação da indisponibilidade da vida e da inexistência de um direito sobre a vida e perscruta-se fundamentalmente sobre a existência de um direito constitucional a dispor da própria vida.
ABSTRACT: It is a cliché to allude to the transcendental and controversial discussion around the ending of one´s life. This is in context of the discussion about the uncomfortable life/death dichotomy presented on this essay which argues in favour of a reflection regarding the disposal of one´s life, when continuing with this life compromises the person’s dignity. The main focus of this study is an analysis of its contents, the constitutional legal limitations which favours the preservation of the human being. Therefore studies realized by national doctrines about this matter specially bring lessons from Spanish and German doctrines. This also raises questions around common held beliefs regarding the ownership of one´s life and the absence of rights over that life. And it mainly speculates on the existence of a constitutional right to end one´s life.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Vida; Disponibilidade; Direito Penal.
SUMÁRIO: 1. Da Disponibilidade da Própria Vida: 1.1 Notas Introdutórias: A Constitucionalização da Dignidade da Pessoa Humana: uma Contextualização: 1.2 Da (In) Disponibilidade da Vida: Paternalismo Estatal e Perspectiva Constitucional: 2. Da “Disponibilidade” do Direito à Vida: 3.1 Antecedentes Históricos e Discussão Conceitual da Eutanásia Consentida: 3.2. Eutanásia Pura ou Genuína: 3.3. Eutanásia Consentida por Omissão: 3.3.1 Rechaço de Tratamento Vital por Motivos Religiosos: 3.3.2. Eutanásia omissiva por ação (comissão): 3.4 Eutanásia Ativa Indireta: 4. Considerações Finais:
1. DA DISPONIBILIDADE DA PRÓPRIA VIDA:
1.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO:
O capítulo recente da História legou profundas marcas na Humanidade, refletindo-se em Declarações Internacionais[1] e no constitucionalismo de diversas nações. O século XX foi pródigo em barbáries. Os ecos do Holocausto e das atrocidades perpetradas sob umbral dos regimes totalitaristas ainda se fazem ouvir e não devem ser olvidados, “singelamente porque a memória é um dos mais preciosos bens de um povo[2]” (VALLE MUÑIZ, 1987, p. 155).
O diálogo histórico mantido entre Estado e indivíduo, expressando uma reação à maneira ensimesmada como se concebia aquele ente, fortemente calcada (a concepção) em uma supremacia de interesses da coletividade sobre a pessoa, a ponto de negar os direitos das minorias, inclusive, dando azo a exterminá-las, passa a uma fase de (re)afirmação do Homem. Não se deve ao acaso o fato de, posteriormente à Segunda Guerra Mundial e à medida do colapso das diversas expressões de totalitarismo (do Nazismo, na Alemanha; do Franquismo, em Espanha; Salazarismo, em Portugal e a Ditadura Militar brasileira), ter-se erigido a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de diversos ordenamentos jurídicos[3].
É neste contexto que a Lei Fundamental da República alemã, de 1949; a Constituição portuguesa, de 1976 e a espanhola, datada de 1978, inserem-se, servindo de inspiração para o constituinte pátrio, sendo oportuna a afirmação de José Manuel Cardoso da Costa[5] (1999, p. 191) sobre o ordenamento português:Em uma palavra, “sem Auschwitz talvez a dignidade da pessoa humana não fosse, ainda, princípio matriz do direito contemporâneo[4]” (ROCHA, Carmen Lúcia, 2004, p. 33).
Trata-se [a constitucionalização do princípio citado] de uma afirmação enfática e peremptória da maior importância e significado (como, de resto, imediatamente se infere da circunstância, não casual, de vir inscrita logo na abertura do texto constitucional). É óbvio que ela tem o propósito e o alcance de inequivocamente marcar a Constituição portuguesa daquele profundo sentido humanista e personalista do Estado – o Estado existe por causa do homem, e não o homem por causa do Estado.
Primeiramente, reconheceu-se a pessoa como centro da ordem normativa, a um só tempo fundamento e objetivo do Estado; instituindo-lhe um limite e uma incumbência (dever de prestação). Ademais, constituiu uma sociedade pluralista, que há de primar pela harmônica convivência com as diferenças; de possibilitar o livre desenvolvimento da personalidade; fazendo consignar o direito a ser diferente.
Fundamentalmente, pode-se conceber a pessoa como um processo histórico em evolução, que traz consigo suas vivências e, no presente, traça para si as metas que haverão de guiar sua existência. Fixa para si uma ideia pessoal de existência digna, a partir de uma eleição subjetiva dos valores que hão de norteá-la. Constrói um projeto existencial como reflexo de sua personalidade. Cabe aqui uma delimitação. Se é verdade que as pessoas têm potencialmente autodeterminação, neste trabalho, parte-se da possibilidade concreta deste exercício, sendo sujeito responsável aquele que - numa definição de Carmén Tomáz-Valiente Lanuza - pode fixar-se valores e metas, identificar as distintas alternativas de ação, compreender a informação relevante proporcionada pelos demais e pelo contexto e ser capaz de eleger entre as distintas alternativas a maneira que mais se adequar a tais pessoais valores e metas.[6]
Destarte, infere-se do princípio em cotejo que o sujeito responsável – é deste que se está a tratar – tem direito de conduzir sua vida em direção a atingir fins próprios e, assim, realizar-se. Decorre, pois, deste vetor normativo um direito fundamental: a autodeterminação, no esteio do entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet[7]:
Verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).O princípio do respeito à pessoa é óbice a uma tentativa de impor standards, projetos objetivos que podem espelhar a concepção de uma maioria, não tendo em conta a individualidade de cada ser.Constitui-se, neste contexto, imperativo negativo categórico à atuação estatal de, por meios coercitivos, submeter a pessoa a perspectivas coletivistas (mas não a dela), perfeccionistas ou moralistas. O Estado não pode, pois, perseguir, restringindo a liberdade individual, fins desta natureza (moralistas, perfeccionistas[8]).
Há de se ressaltar especialmente a realidade normativo - penal. Por um lado, um Código Penal de 1940, com influência de um totalitarismo, com inclinação antidemocrática e profundamente paternalista-coletivista. Por outro, uma Constituição Federal, alicerçada no respeito à pessoa, que se erige como uma reação ao período totalitário precedente (Ditadura Militar). Do princípio da dignidade da pessoa humana, centro do sistema constitucional, pode-se extrair um seu viés positivo – o direito fundamental à autodeterminação – e um viés negativo (direito de ninguém sofrer torturas e de poder rechaçar condições desumanas).
É neste conflituoso cenário que se faz imperiosa uma interpretação do Código Penal vigente em conformidade com a Constituição, não olvidando que a história constitucionalista recente deita raízes em fatos que repercutiram globalmente, permitindo traçar um paralelo entre os sistemas espanhol e alemão e haurir na doutrina estrangeira ensinamentos compatíveis com o ordenamento nacional.
A constitucionalização do direito à vida e da dignidade da pessoa humana como princípio conformador da ordem jurídica e do Estado fazem necessário, para compreender-se o conteúdo e os limites da tutela jurídica daquele bem, proceder-se uma interpretação consentânea com a coexistência de direitos de igual relevância e com a concepção neopersonalista do sistema normativo. Já não cabe, como outrora, concebê-lo (direito à vida) como realidade normativa isolada, simplesmente prevalente sobre os demais; há de ter-se em consideração que “a dignidade da pessoa se configura como princípio dinâmico que articula e sistematiza todos e cada um dos direitos fundamentais” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 166), sendo estes concretizações inexoravelmente informadas e dotadas de sentido pelo sobredito vetor fundamental[9].
Consagrou-se na doutrina pátria o entendimento de ser indisponível o direito à vida, merecedor que seria de tutela absoluta, inclusive contra a vontade do titular, alicerçado ora em uma óptica teológica, ora em uma óptica utilitarista das relações indivíduo-Estado ou indivíduo-sociedade. Nega-se qualquer validade jurídica ao consentimento direcionado a terceiro, seja para este causar-lhe (ao titular) a morte, seja para impor-lhe a abstenção de evitar a superveniência deste resultado.
Neste diapasão, já asseverou Nelson Hungria[10]que “tutelando esses bens físicos (vida e integridade corporal) do indivíduo, a lei penal está servindo ao próprio interesse do Estado”, sendo, pois, bens “inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis por parte do indivíduo,” donde o suicídio não seria, no dizer de Frederico Marques (1999, p. 85), “ato lícito e secundum ius”, para concluir-se, com arrimo em João Mestieri[11] (apud 1999 CARVALHO, 2001), ser “irrelevante o consentimento da vítima no homicídio; o bem jurídico não é disponível, o seu titular é sujeito do direito à vida e do direito de viver, mas não do direito sobre a vida[12].”
A dignidade da pessoa humana, içada ao nível de princípio fundamental da República, faz desvelar a instrumentalidade estatal visando à satisfação dos objetivos que lhe (ao Estado) são constitucionalmente outorgados, em última análise, em prol do Homem, sendo este fim em si mesmo, razão porque “a pessoa humana não pode ser ultrapassada pelo Estado em favor de nenhum interesse coletivo” (CARVALHO, 2001, p. 113). A realidade constitucional vigente obsta uma concepção utilitarista-coletivista de sujeição do indivíduo, que conduziria à despersonalização deste bem “altamente pessoal[13]” e à afirmação de um dever de viver.
1.2 DA (IN)DISPONIBILIDADE DA VIDA: PATERNALISMO ESTATAL E PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL:
A concepção de indisponibilidade da vida funda-se em perspectivas paternalistas do Estado projetadas sobre o cidadão, ora exaltando que este é mero depositário de um dom divino[14], ora firmando o homem como instrumento à satisfação de interesses coletivos, conforme magistério de Tomás-Valiente Lanuza (1999, p. 1):
As razões a que dita indisponibilidade podem obedecer não são, sem embargo, uniformes para todo tempo e lugar; pois, há de ter-se em conta que, à medida que o Direito penal se perfilha – através da Constituição – como a mais clara tradução normativa do tipo de Estado que se promulga e dos princípios básicos sobre os quais se assenta, disposições penais de igual ou similar conteúdo podem obedecer a concepções muito diferentes do poder público e da relação entre este e o indivíduo.
Elucidando a autora que:
em um modelo confessional de Estado, como o existente em Espanha antes da promulgação da Constituição de 1978, as normas relativas à indisponibilidade da vida poderiam ser consideradas um reflexo do dogma cristão que faz dela um dom divino por inteiro subtraído ao poder de decisão do homem; de igual modo, em regimes também totalitários mas não confessionais, esta classe de preceitos poderiam ser interpretados como expressão de uma desmedida submissão do cidadão ao Estado, que chega até o extremo de desvestir a vida do súdito de seu caráter de bem exclusivamente individual e atribuir-lhe uma pertinência social ou coletiva.
Perspectivas de um paternalismo forte (utilitarista-coletivista) que, reduzindo o indivíduo a um meio para consecução de interesses de dada comunidade, por um lado, firmam defesa intransigente da vida sem observância à sua personalidade. Por outro, historicamente, alicerçaram a eliminação de seres humanos etiquetados de “desprovidos de valor vital[15]” em face de contingências políticas e econômico-sociais, haja vista que, em um sistema totalitarista, é o Estado um fim em si, tendo interesse na vida dos súditos apenas como “fonte de prestações positivas para a comunidade ou como o pressuposto mesmo de sua subsistência” (LANUZA, 1999, p. 13).
Se a razão da tutela conferida a bens altamente pessoais era servir a interesses coletivos, personificados no Estado, para cumprir “uma função social[16]” (NELSON HUNGRIA, 1979 apud BITENCOURT, 2001, p. 115), contrariu sensu, quando determinados grupos humanos não puderam desempenhar sua função em prol da comunidade, sendo, pois, uma carga social, foram, sob império do regime nazista, consideradas vidas desprovidas de valor vital. A proteção à vida não dizia com a pessoa; esta era mero instrumento de realização de fins externos; o valor vital residia em sua utilidade para a comunidade; era-lhe extrínseco.
Expressões daquele paternalismo não se coadunam com a Carta Magna, contrastantes com a dignidade humana, seja porque a (a pessoa) concebem como instrumento à consecução de fins que lhe são alheios (reificação), seja restringindo-lhe arbitrariamente a autodeterminação, supondo-se que “o cidadão desconhece seus próprios interesses e que a sociedade e o Estado sabem melhor o que é bom para ele.[17]” “Estamos deveras longe daquele entendimento de que o indivíduo, sendo um ‘bem’ do Estado, deveria ter sua vida salva e sua saúde tratada mesmo que contra sua vontade.[18]”
É sabido que a norma fundamental preceitua a inviolabilidade do direito à vida (C.F. art. 5o caput), consubstanciado, com arrimo em Carlos Maria Romeo Casabona (apud CARVALHO, 2001, p. 119), na “exigibilidade do cumprimento dos deveres que do mesmo derivam para os demais: o de respeito por parte do Estado e dos particulares e o de proteção pelo primeiro; vale dizer, comporta uma referência aos terceiros sobre os quais esse direito – e os conseqüentes deveres - se projeta”. A proscrição da norma tem caráter relacional, destina-se a terceiros (Estado e particulares), não ao próprio titular do bem. A função, pois, é de garantia ante hetero-lesões. Tão-somente. O que não significa instituir-lhe um dever de viver, sendo imperioso notar que dispor do direito à vida (da exigibilidade perante outros) não se confunde com a disposição da vida mesma. Afirma-se, com Gonzáles Rus, “que a vida é um bem disponível, ainda que esta disponibilidade se encontre limitada drasticamente e quede ‘restringida a comportamentos do próprio titular sobre si mesmo, mas que não poderia autorizar lesões procedentes de terceiros[19][20]” (apud RIVACOBA, 2001, p. 46).
Pressupondo-se ser a conduta humana essencialmente liberdade, ao perpassar (a conduta) um contínuo de licitudes, só excepcionalmente, há de reputar-se ilícita (sob influxo do principio ontológico do direito, pelo qual “tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido”). Salientando-se, sem embargo, constituir a intervenção penal a mais drástica incursão estatal sobre direitos fundamentais, tão-somente se legitima uma restrição quando, se e à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos fundamentais perante relevantes condutas lesivas alheias (princípio da transcendência), eis que as condutas circunscritas à própria esfera de direitos remanescem no âmbito da liberdade, do autogoverno pessoal. Já em 1859, John Stuart Mill[21] enunciava o princípio básico a ensejar legitimamente a limitação da liberdade individual (harm to others principle):
Este princípio consiste em afirmar que o único fim por que é justificável à humanidade, individual ou coletivamente, se intrometer na liberdade de ação de qualquer de seus membros é a própria proteção. Que a única finalidade pela qual o poder pode, com pleno direito, ser exercido sobre um membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é evitar que prejudique aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente. Ninguém pode ser obrigado justificadamente a realizar o não realizar determinados atos porque isto é melhor para ele, porque o faria feliz, porque, na opinião dos demais, fazê-lo seria mais acertado e mais justo.
Concluindo Stuart Mill (2000, p. 116) que “a única parte da conduta de cada um pela qual se é responsável ante a sociedade é a que se refere aos demais. Na parte que concerne meramente a ele, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e espírito, o indivíduo é soberano[22].”
A norma constitucional implícita da transcendência, em observância à autodeterminação ínsita ao viés positivo da dignidade humana, obsta categoricamente a incriminação por parte do legislador ordinário de condutas não-lesivas a terceiros. Vislumbram-se, destarte, duas razões concernentes à atipicidade penal de condutas auto-referentes, expendidas no magistério de Paulo de Souza Queiroz[23], quais sejam: por política criminal, revela-se absolutamente inútil a cominação de penas, como meio de prevenção, com fito de demover os que danosamente disponham de interesse próprio. Por seu turno, a razão jurídica consiste em que, in verbis:
a toda pessoa civilmente capaz assiste, ao menos do ponto de vista do direito penal, a faculdade de dispor, por ato próprio, de sua vida, de seu corpo, de sua saúde e de seus bens, como melhor lhe aprouver. Como dizem, Morris e Hawkins, pelo menos para a lei criminal, todo homem tem o direito inalienável de ir para o inferno como quiser, desde que, no caminho, não prejudique as pessoas ou a propriedade alheia[24].
A atipicidade de condutas autolesivas não obedece somente a considerações político-criminais, pois denotam a livre condução da própria vida, saúde e bens em conformidade com os fins por si almejados, desde que observados os direitos alheios; idéia sintetizada por Carbonell Mateu (apud NUÑEZ PAZ, p. 278): “tudo o que não está expressamente proibido está permitido e se tem direito a fazê-lo, tão somente podendo proibir-se aquilo que resulte transcendente para as liberdades alheias”.
Como restou consignado, a regra de inviolabilidade (função garantista) do direito à vida, por ser oponível perante terceiros, não fundamenta nem se confunde com a indisponibilidade deste bem por seu titular[25]. Não se dessume daquele (direito à vida) um dever de viver, razão porque autodeterminação pessoal faz depreender da Lex Suprema um direito constitucional de dispor manu propria da vida. No exercício deste, pode-se tentar cometer diretamente o assassínio de si mesmo (sui et caedere) ou é possível, encontrando-se em situação de perigo iminente de morte, o rechaço de intervenção alheia destinada à própria salvação; conduzindo-se à morte, exercendo, pois, o direito de deixar-se morrer.
Dispor seriamente da vida é, pois, emanação da liberdade geral, mediante a qual se orienta o próprio destino vital em consonância com os objetivos para si traçados; é expressão de individualidade, de uma relação peculiar de si para com o mundo, a ressaltar as concepções pessoais que permeiam cada ser humano. Conquanto se representasse a possibilidade ou probabilidade do término de sua existência biológica, o suicida (mediante manifestação livre, informada, séria, emanada de sujeito capaz) assume-lhe o risco, antepondo aos demais (sociedade e Estado) liberdades específicas, seja a religiosa, seja a ideológica, seja ainda à incolumidade física, concretizando-se – no dizer de Romeo Casabona - no direito à “não intromissão sobre a decisão de dispor sobre a própria vida” (apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 287).
Ao afirmar Zulgadía Espinar (apud VALLE MUÑIZ, 1989, p. 156) que “os limites do dever de tratamento médico não podem estar determinados unicamente pelas possibilidades técnicas de manutenção da vida,” permite-se a inferência de que, apesar de haver possibilidade técnico-médica ou fática de um interceder salvador, a oposição faz erigir um óbice jurídico, a saber: o dever de abstenção, o qual tem o condão de elidir o dever de atuar alheio, inclusive a posição de garante. A omissão afigura-se como involuntária, é cumprir uma obrigação emanada do exercício de autonomia (constitucionalmente assegurada) do suicida/enfermo, sendo, pois, penalmente irrelevante. A superveniência da morte é exclusivamente imputável àquele (suicida). Compartilha Hans Joachim Hirsch[26] desta compreensão:
Legalmente, deve ter-se em conta, em primeiro lugar, que o médico não está obrigado a atuar prolongando a vida contra a vontade do paciente expressada na situação concreta. Por causa da vontade contraposta, decai o dever de garante do médico e não há um imperativo de curar. A obrigação do médico ao tratamento não existe se o paciente o rechaça por livre decisão. Especialmente, no campo que aqui nos interessa - a prolongação por parte do médico – tal rechaço há de respeitá-lo como expressão da autodeterminação do paciente.
A intervenção que despreza a contrariedade de uma vontade válida reputa-se uma arbitrária restrição de direitos fundamentais, em que pese o esforço de um setor da doutrina nacional em argüir um estado de necessidade com efeitos de impedir a adequação típica de constrangimento ilegal, porquanto, entende-se, impelir-se-ia um mal menor (à liberdade) para elidir-se um maior (a superveniência da morte)[27].
Entretanto, o sistema constitucional erigido em 1988 - especialmente em os arts. 1º, III e 5º, III da C.F. – faz mais uma vez imprescindível uma interpretação conforme a constituição dos incisos I e II, § 3º do art. 146 do Código Penal, notadamente para excluir de sua égide a oposição emanada de sujeito competente. Assinala-se, com arrimo em Kaufmann, que “uma autorização legal para o tratamento coativo pelo médico” redundaria em uma ofensa à autonomia individual “e tal lesão do direito à autodeterminação é intolerável em uma sociedade liberal” (1987, p. 48).
O discurso que confere legitimação à imposição de tratamento vital contra vontade (séria, livre, consciente, expressa) manifestada por sujeito capaz – “o mal causado (violação da liberdade pessoal) é menor do que aquele que se pretende evitar (morte)” (PRADO, 2000, p. 272/3) – autorizaria, por aplicável o mesmo raciocínio[28], outras tantas situações absurdas, como adverte Miguel Bajo Fernández[29]:
La tesis de que tanto el juez que autoriza como el médico que ejecuta, actúan amparados por el estado de necesidad porque el mal causado es menos que el evitado, es una simplificación denunciada por la doctrina. Según este critério llegaríamos a la absurda situación de justificar comportamientos como los siguientes: un particular (o un médico, o un juez com ayuda de la fuerza pública, que para el caso es lo mismo), someten a una mujer contra su voluntad a un aborto para salvar su vida; o con el mismo fin y sin consentimiento amputan el miembro canceroso de un paciente o le abren el pecho para instalarle una vávula en el corazón o le instilan en los ojos el colírio que evitará su ceguera o, por poner ejemplos en que el necesitado y quien sufre el mal son personas distintas, para salvar la vida de un accidentado que ingresa en el servicio de urgencias se extrae un riñon sano a quien, en el quirófano de al lado, está sometido a una operación de apendicitis, o un trozo de piel o de hueso para hacer un injerto; o se extrae sangre de un tipo muy especial a quien se niega a ello para una urgente transfusión. En todos estos casos, el mal causado es menos que el evitado. (grifos no original)
Data maxima venia, então, firma-se que da tutela jurídica ao bem em comento “não se deriva em nenhum caso o direito à intervenção contra a vontade de seu titular” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 22) e, ressaltando-se “que o texto constitucional não permitiria uma interpretação do direito à vida incompatível com a dignidade humana, supondo esta um rechaço a qualquer intento de instrumentalização em aras a salvaguardar o livre desenvolvimento da personalidade” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 167), limitar-se a liberdade in casu equivaleria a impor o prosseguimento de um mero processo biológico dissociado das razões pessoais de ser; em última instância, é submeter-lhe a tratamento degradante, reificando a pessoa humana com vistas a fins que espelham uma concepção dominante (mas não a dela), que lhes são alheios, portanto; é violar-lhe, enfim, a individualidade e dignidade.
2. Da “Disponibilidade” do Direito à Vida:
Firmada a premissa de o direito à vida ser necessariamente relacional, uma garantia anteposta aos demais, forçoso é o reconhecimento de os contornos da tutela jurídica a este bem (de sua inviolabilidade, reitere-se) não se espraiar ao ponto de afirmar-se que o ser humano teria “frente à comunidade a obrigação de viver[30]”. Enfim, não cabendo aludir acerca de um superior interesse coletivo projetável contra o próprio titular, o conteúdo desta tutela não há de subjugar a pessoa, quando é esta, em toda sua complexidade, o centro da ordem normativa.
Saliente-se que o direito a viver, conforme art. 5º, caput da C.F., expõe apenas a faceta positiva deste exercício, não se defluindo dele per se a afirmação ou vedação da faculdade de dispor da vida. Mister se faz apreender na autodeterminação o supedâneo constitucional desta faculdade (inclusive, para deixar-se morrer).
Contudo, não é conseqüente necessário desta faculdade o envolvimento legítimo de outrem.
Lógica diversa preside a “disponibilidade” do direito à vida. Se é verdade que cada sujeito competente tem, adstringindo-se à esfera somente a si concernente, a livre condução de seus interesses e bens pessoais como melhor lhe aprouver, outrossim verdadeira é a assertiva de a regra de inviolabilidade aprioristicamente vincular terceiros, projetando-lhes dever de respeito e relativa proteção; a conduta de alguém, ao interferir no bem alheio em comento, não é indiferente; para tanto, há de revestir-se de legitimidade.
Especificamente neste ponto, ousa-se divergir de Paulo Queiroz, porquanto o autor, ao que parece, assenta a amplitude da faculdade que conforma o princípio da lesividade além de seus contornos; é dizer, ao tratar da repercussão do sobredito principio no uso e tráfico de drogas ilícitas, confere-lhe (à conduta autorreferente) inexoravelmente uma eficácia justificante de incursões alheias, por compreender que:
Finalmente, não se deve pensar que tais considerações sobre o princípio de lesividade não são válidas para o tráfico de entorpecentes, embora o fosse para o uso. Não. E isto por uma razão simples e muito lógica: o que a lei permite, ou vier a permitir, pela via direta (o uso), não pode, nem deve proibir ou vir a proibir, pela via indireta (a produção e o comércio). Uma coisa sem a outra é um contra-senso, algo absolutamente ilógico, além de socialmente danoso.[31]
Se se considera o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes potencialmente ofensivo a bem jurídico, o poder de consumo (uso) de tais substâncias por um sujeito não faz dessumir per se a legitimidade da transposição de outrem em relação a seu dever de respeito àquilo que se protege. Eis que do harm to others principle (princípio do dano), em sua perspectiva constitucional, podem ser inferidas duas dimensões: partindo da perspectiva do indivíduo (garantista), assegura-se-lhe a imunidade ante intromissões[32], quando as conseqüências de uma sua eleição circunscrevam-se ao estrito âmbito privado; por outro lado, hetero-lesões consentidas ou colaboração à auto-lesão podem dar azo a um legítimo paternalismo estatal. Poder-se-ia haurir nas palavras de John Stuart Mill (1991, p. 137) a ideia deste argumento:
o primeiro de tais preceitos é que o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser ele. Conselho, ensino, persuasão, esquivança da parte das outras pessoas se para o bem próprio a julgam necessária são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do individuo. O segundo preceito consiste em que, por aquelas ações prejudiciais aos interesses alheios, o indivíduo é responsável, e pode ser sujeito à punição.
A realidade constitucional brasileira parece propugnar por um mais restrito conceito de autorreferência, excluindo inicialmente de sua seara o exercício manu alius daquilo que alguém determina para si. É indicação desta valoração sistêmica o explícito preceito autorizando a criminalização do tráfico de substâncias entorpecentes (C.F. art. 5º XLIII). Se do princípio da transcendência (que permite, por via direta, o uso) defluisse inexoravelmente a permissão do tráfico, haver-se-ia de sustentar a inconstitucionalidade de norma constitucional originária. Sequer se alude desta extrema medida por se harmonizarem as duas dimensões da noção de ofensividade, fazendo integrar no conceito de autorreferência (strictu sensu) a pessoalidade em concretizar os planos autolesivos, excluindo-se interceder externo.
Deveras, constata-se que o exercício da autodeterminação não é dotado, em regra, de transcendência/transferibilidade aos demais; tem caráter pessoal, não significando, sem mais, que “esse direito de disponibilidade permita a intervenção de terceiros” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 288). Assim, o consentimento não é suficiente, v.g., para elidir a tipicidade do homicídio comissivo, se bem, pela menor reprobabilidade do injusto, enseja apenação atenuada em relação ao homicídio comum[33].
Doutrinadores espanhóis advogavam a necessidade de ter-se em conta a autodeterminação no homicídio consentido, já que não seriam situações valorativamente equivalentes matar alguém conforme ou contra a vontade da vítima, refletindo-se num menor grau do injusto, o que fora finalmente assimilado pelo Código Penal espanhol de 1995. Comparativamente, cumpre assinalar que o Código Penal brasileiro parece estar inserto naquela fase jurídica espanhola pós-Constituição de 1978, que alberga a dignidade como valor superior de sua ordem jurídica, fazendo saliente a importância do (auto)governo da pessoa sobre seu existir, e pré-Código Penal espanhol de 1995.
A inércia do legislador pátrio em proceder a uma reforma da legislação penal consentânea com a nova ordem constitucional não obsta, antes autoriza, que se engendre uma interpretação neste sentido, sabendo-se que “a norma não é o que está escrito no dispositivo” (CARNEIRO, 2004, p. 19), pois, como adverte Wálber Carneiro[34]:
Do dispositivo pode ser possível extrair uma ou mais normas jurídicas, sendo que, muitas vezes, dele não se extrai nenhuma norma, isto porque a norma jurídica será, necessariamente, extraída do ordenamento como um todo. (...) A norma, portanto, representa um enunciado comunicativo construído pelo intérprete a partir do sistema. Sendo linguagem, a norma não é nada em si mesma, logo, será somente aquilo que for resultado de sua interpretação.
Cotejando-se a regulação do auxílio ao suicídio, por seu turno, percebe-se que, embora lícito o suicídio (ao expressar a eleição do indivíduo sobre seu destino vital), o ordenamento brasileiro optou por restringir interferências alheias, à medida de um sopesamento legislativo entre a liberdade (e uma possível aptidão de envolver licitamente terceiros) e o respeito à vida de outrem. Óbice constitucional não haveria em proceder-se a descriminalização in abstracto da conduta referida, o que refletiria uma prevalência, ao ponderar-se, da autodeterminação e do controle exercido pelo titular do bem jurídico sobre a execução do fato lesivo, como já ocorre na Alemanha[35].
As disposições incriminadoras em comento (homicídio e auxilio ao suicídio) são pontos de partida de interpretação/aplicação do Direito, devendo ser submetidas a um inafastável juízo acerca de sua aplicabilidade em casos históricos ou simulados e, pois, de sua constitucionalidade in concreto.
Se se pretende conceber o sistema jurídico como um todo hierarquizado, harmônico e coerente, ao analisar-se uma conduta sob influxo do Direito, há de observar-se a gama de princípios e regras aplicáveis em tese, por vezes se instaurando uma aparente antinomia que, mediante técnica de ponderação de interesses, desnudará (argumentar-se-á) a norma jurídica aplicável ao caso. Os dispositivos legais não são realidades normativas desconexas, isoladas, integram um contexto uno e racional, cumprindo asseverar, firme no escólio de Eros Roberto Grau[36], que:
Não se interpreta o direito em tiras. A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao interprete sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum.
Por ter a Constituição Federal de 1988 albergado a dignificação humana como razão de existir do Estado constituído, prescrevendo que ninguém seja submetido a tratamento degradante ou penoso, há de se fazer uma releitura dos tipos legais de suicídio assistido e homicídio em um contexto eutanásico; “é preciso uma interpretação dos tipos penais acorde com a Constituição,” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 159) já que esta contempla “os limites do poder punitivo e os princípios fundamentais informadores do Direito penal” (COBO DEL ROSAL, M; T.S. VIVÉS ANTÓN apud VALLE MUÑIZ, 1989, p. 158).
A eutanásia strictu sensu,[37]objeto da presente análise, pode ser compreendida como a conduta comissiva ou por omissão de um terceiro, mediante consentimento e no interesse de alguém que padece enfermidade, lesão ou invalidez (geralmente mortal) irreversível e sofrimentos físicos ou psíquicos atrozes, cuja finalidade é aliviar, não adiar ou antecipar o trânsito da vida à morte, colaborar com o suicida eutanásico ou, ainda, causar-lhe a morte, em não sendo o sofrimento de outro modo evitável. A hipótese eutanásica afigura-se como uma situação extrema na qual a postergação do processo existencial-biológico significa (implica) um trato desumano. Neste ponto, o princípio da dignidade da pessoa humana deixa de convergir com o princípio de respeito à vida. Exsurge, então, o conflito entre interesses constitucionais.
Oportunamente, cumpre esclarecer a inexistência da suscitada colisão quanto à denominada eutanásia consentida por omissão,[38] haja vista que, entendendo-se o suicídio como ato lícito a expressar o livre-arbítrio humano, poder-se-á intentá-lo diretamente, pôr-se em risco de morte (v.g., greve de fome) ou, estando nesta situação, solicitar a não submissão ou interrupção de tratamento vital (exemplo de negativa de transfusão de sangue por Testemunha de Jeová). Em este caso, o autogoverno individual, constitucionalmente assegurado, impera, já que, inexistindo dever de viver, a proteção dispensada pelo Direito não pode ser imposta a sujeito responsável.
Naquel’outros, entretanto, far-se-á absolutamente necessário superar o dever de respeitar o viver alheio. Embora se tenham os direitos a dispor da vida e a não padecer tratos degradantes, não os podendo concretizar manu propria, inexoravelmente haverá de compartilhar dita efetivação. Eis a questão lapidarmente exposta por Gonzalo Rodrígues Mourullo (apud LANUZA, 1999, p. XXVIII):
A regulação da participação no suicídio de outro (...) pressupõe um duplo reconhecimento: por um lado, confirma a disponibilidade da própria vida por seu titular, na medida em que não castiga (como poderia) o suicídio em suas formas imperfeitas; por outro, que a disponibilidade da vida por parte de seu titular não pode ser compartida com os demais. Mas o que fazer quando ao titular da vida, a quem se reconhece a disponibilidade da mesma, não está em condições de fazer efetiva por si mesmo tal disponibilidade? Não se esta reconhecendo uma disponibilidade vazia de conteúdo? Não se lhe está colocando, sob esta perspectiva, em uma situação de desigualdade frente àqueles que estão em condições de executar por si mesmos sua própria morte?
O dilema afirma-se quando o único meio de assegurar a dignificação ou cessar a degradação seja abreviar ou causar o trânsito derradeiro. Apesar de parecer paradoxal (e paradoxal não o é), quando a existência humana se resume a um martírio e “seja imposta como se fora uma pena[39][40]” (FÖPPEL, 2004, p. 20), como morte severina, que se morre de sofreguidão um pouco por dia, e quando o então direito à vida digna haja se transmutado em um sobreviver desumano, pode-se erigir um último propósito: morrer com dignidade. Ante a impossibilidade de valer-se por si para concretizá-lo, “não deixaria de ser um certo contra-senso admitir a licitude do suicídio causado por própria mão e denegar ao suicida as experiências alheias necessárias em não poucas ocasiões, suicidio longa manus”, segundo Quintano Ripollés (apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 44).
A expressão suicidio longa manus, ao significar o assassínio de si por interposta pessoa, decerto representaria uma contradictio in terminis se não pudesse ser compreendida a sua relevância e inteligência. Na eutanásia em sentido estrito, o consentimento exterioriza o querer (frustrado) de conduzir o destino vital de modo a afastar um estado desumanizante. Intervir redundaria em lesar naturalisticamente aquele processo biológico. Por outro lado, a passividade alheia relegaria o enfermo a uma espécie de tortura, não se olvidando que, por vezes, convertem-se as unidades de cuidados intensivos “numa câmara de tortura; ou mesmo que algumas enfermidades podem provocar padecimentos superiores aos que têm sua origem num exercício de sadismo policial.[41]”
A conflituosa situação faz doutrinadores suscitarem, por fundamentos diversos, que se exima a responsabilidade penal do eutanasista. Argüi-se, como causa de exculpação, a inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que, “sem dúvida, não se pode esperar de um parente que, ao ver seu familiar padecendo – algo que muito se aproxima da tortura – com isso concorde e nada faça para alterar. A irresignação e o instinto são inerentes às pessoas, fazem parte da estrutura do ser humano” (FÖPPEL, 2004, p. 22). Em palavras de Valle Muñiz, é fácil advertir, nas hipóteses de eutanásia, uma alteração emotiva importante que poderia influir consideravelmente no processo motivacional do autor, em razão do que, fazendo referência à posição firmada por Del Rosal Blasco, se há falado “de inexigibilidade de conduta em casos em que, por exemplo, o filho não pode suportar mais o sofrimento do pai, enfermo incurável” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 177).
“Não me parece que haja objeção alguma a tais considerações” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 177), assevera o autor, sustentando, todavia, que a eutanásia ativa direta consentida possa ser uma conduta justificada pela eximente de estado de necessidade[42].
Compreendendo-se os direitos fundamentais como realidades dinâmicas que se articulam para materializar o livre desenvolvimento da pessoa, é a conclusão do doutrinador espanhol sob a égide do anterior Código penal espanhol:
Não parece necessário insistir em que a configuração constitucional dos direitos e liberdades fundamentais, à medida que são expressão e concretização dos valores superiores do ordenamento jurídico, devem ser relevantes para o Direito penal. E, desde logo, devem conformar e incidir diretamente no juízo de antijuridicidade. (...) Assim, pois, entendo que a modalidade consentida de eutanásia ativa direta é enquadrável no tipo do inciso 2º do artigo 409 C.P[43]., mas sua realização poderia estar justificada pela eximente de estado de necessidade. (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 181)
Resta objetável, entretanto, a solução supra indicada.
A aplicação do Direito penal, instrumento institucionalizado de violência, reclama racionalidade com o todo normativo; sendo longa manus de um Estado Democrático de Direito, seus fins e limites são invariavelmente conformados por princípios que estruturam o ente e o exercício de seu poder.
É verdade – trazendo à colação os ensinamentos de Paulo Queiroz – que, para desincumbir-se de sua missão e prezar pelo princípio da reserva legal, o legislador formula taxativamente esquemas, tipos em que se descrevem, com possível clareza e brevidade os comportamentos humanos passíveis de repressão penal, afirmando-se “que o legislador trabalha com tipos e pensa com tipos. É só delituosa a conduta humana que se lhe amolde rigorosamente” (QUEIROZ, 1998, p. 121).
De uma outra perspectiva, a subsidiariedade lógico-sistêmica do Direito penal permite conceber o delito como resultado de uma especial valoração de ilícito pré-existente no ordenamento jurídico; é cediço, então e ainda colhendo lições deste autor, que o ilícito nasce originariamente na Constituição do país e somente derivadamente na ordem infraconstitucional, como concretização do ilícito “constitucional-originário;” o ilícito penal conecta-se subsidiariamente aos demais ramos do direito, em razão de ser o mais rigoroso e extremado modo de tutela jurídica. Ressalta-se, “em conclusão: o ilícito, latente ou manifesto, preexiste à sistematização do direito penal; significando dizer que todo ilícito penal é, antes, um ilícito não penal” (QUEIROZ, 1998, p. 76).
Tudo isto para afirmar que mera subsunção formal da conduta a um tipo descritivo (legal) não exaure o juízo de tipicidade penal.
Se se analisa a possibilidade de valoração penal sobre um fato e a resultante responsabilidade, há de, preliminarmente e sob influxo do cânone nullum crimen sine lege, perquirir-se acerca da existência de um concernente tipo abstrato. Por vezes, poderá constituir ilícito civil ou administrativo sem que se o preveja in abstracto como crime ou contravenção, cessando neste ponto a averiguação proposta.
Casos outros há, no entanto, em que, conquanto uma conduta fosse passível, em tese, de amoldar-se a uma dada descrição legal, a co-incidência e primazia in concreto de outra regra ou princípio, geralmente constitucional, haurida no sistema tem a eficácia de obstar, desde logo, a ingerência penal; enfim, a tipicidade penal.
Verbi gratia, o Código Penal incrimina a subtração de coisa alheia móvel para si ou para outrem (art. 155 caput). Não se podendo, todavia, apreender em esquemas abstratos a multitude dos fatos da vida, a intensidade e extensão da lesão ao bem jurídico tutelado, restam subsumidas formalmente mínimas diminuições ao patrimônio alheio a contrastar com a drasticidade penal. Sob império do princípio da proporcionalidade, que delimita o atuar estatal, impede-se proceder um juízo positivo de tipicidade penal, embora se tenha implementado a referida subtração[44]. Com razão, Carlos Augusto Canêdo e Lúcio Chamon Júnior (2001, p. 78) advertem o seguinte:
O fato, quando ocorre, já nasce típico ou atípico, não existindo, nesse caso, uma tipicidade que será posteriormente excluída. Apesar de toda doutrina tradicional e contemporânea se referir à exclusão do tipo e do “injusto”, trata-se, na verdade, de postulado inadequado, visto que, como em matéria da ilicitude, não há exclusão, mas sim, quando muito, impedimento do juízo de tipicidade e de ilicitude por incidência de uma norma prima facie aplicável que impede a adequação de outras.
A hipótese de eutanásia caracteriza-se pela aparente colisão entre princípios/interesses constitucionais do respeito à dignidade da pessoa e, d’outro lado, do respeito à vida.
Se se parte de uma visão humanista (neopersonalista) da ordem normativa, segundo a qual os direitos e liberdades fundamentais se articulam dinamicamente para dotar de conteúdo e eficácia o primeiro (da dignidade) e isso com o único objetivo de salvaguardar o livre desenvolvimento da personalidade (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 180); em se concebendo que a vida não é um fim absoluto, mas um meio; que o término da existência pessoal não necessariamente contradiz a ideia de pessoa (JAKOBS, 2003, p. 13) e, mais precisamente, que a personalidade se manifesta não somente em como se vive, mas também em como se morre (GIMBERNAT ORDEIG, 2004, p. 5); salientando, afinal, que a vida tem um conteúdo de dignidade que não pode ser ignorado (NUÑEZ PAZ, 1998, p. 21), caberá a retórica indagação formulada de modo contundente por Francis Delpérée[45]: “para que serve o direito à vida, se esta for desprovida da mais elementar dignidade?”
Diante desta ponderação, inclina-se a balança para admitir gradativamente a prevalência do respeito à pessoa em detrimento da observância à sua sobrevivência. A existência biológica há de ser meio dotado de sentido para realização humana. Todavia, sob contexto eutanásico, a postergação do processo vital reverte-se em uma “humilhante escravidão; viver é um direito, não uma obrigação” penosa a ser suportada, sentencia Ramón Sampedro[46]. Em tais casos, o ser humano se torna escravo de sua própria vida, não podendo, sem ajuda alheia, pôr fim ao seu martírio, efetivar o único propósito que expressa sua personalidade: morrer dignamente.
In casu, a primazia daquele tido como valor superior da ordem jurídica parece desvendar no sistema uma norma permissiva adequada também aos casos de eutanásia ativa consentida, sendo objetável – aqui se retoma a crítica a Valle Muñiz – que logre incidência apenas no juízo de antijuridicidade como estado de necessidade.[47]
A concepção humanista do sistema constitucional há de ser observada não apenas no modo de se executarem as penas, como conseqüência do ius puniendi; primordialmente, conforma os fins e seu conteúdo, no esteio da explanação de Luiz Flávio Gomes:[48]
Os princípios, normas e valores típicos do Estado Constitucional e Democrático de Direito condicionam os fins legitimadores do Direito penal, que por sua vez condicionam o conteúdo e a estrutura das normas penais, que por seu turno condicionam o conteúdo e a estrutura da teoria do fato punível. É nesse sentido que se pode falar numa teoria constitucional do fato punível.
Nesta senda, quando protrair-se a existência redunde irremediavelmente em violar a condição humana, impelindo-se a alguém uma situação desumana (C.F. art. 5º, III), a conduta de terceiro, apesar de poder findar (homicídio eutanásico) ou colaborar (auxílio eutanásico ao suicídio) com o término do curso vital, ao concretizar o fundamento normativo da República Federativa do Brasil em promover a dignificação humana (C.F. art. 1º, III) ou fazer cessar, a pedido, a degradação, sequer deveria ser reputada penalmente típica. Eis que o Estado de Direito preconizado pela Carta política estrutura-se como instrumento a determinados fins; existe tão-somente para cumprir as funções e atingir os objetivos para os quais foi concebido, não poderá, pois, insurgir-se e fulminar, direta ou indiretamente, o fundamento jurídico sobre o qual se assenta.
Sendo a tipificação penal ato emanado do Estado, não poderia este reputar susceptível de adequação típica conduta estritamente direcionada à concreção do objetivo ao qual está jungindo e pelo qual deve velar de oficio. D´outro modo, estaria a instituir “um arsenal de normas jurídicas que lesam reflexamente a dignidade da pessoa humana” (ROMEO CASABONA), fulminando, paradoxalmente, seu alicerce jurídico - no dizer de Tércio Sampaio Ferraz Júnior - “sua conditio per quam e conditio sine qua non,” fator sem o qual “a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável” (apud GRAU, 2003, p. 190).
Sublinhe-se que nem toda ofensa naturalística a um bem (in casu a vida) há de revestir-se de tipicidade penal, haja vista que esta não se circunscreve a um formal silogismo do fato à simples descrição incriminadora. Deve-se perscrutar no sistema, no todo harmônico e coerente, como se posiciona este ante ao acontecimento em apreço e qual a norma jurídica (não apenas o dispositivo legal) a ele adequada. Consoante assevera Wellington Cezar Lima e Silva, se o “cotejo da globalidade autoriza, permite a conduta, não estaria confirmada a tipicidade legal”, pois esta “só existiria após análise global” (2004, informação verbal).[49] Poder-se-ia, trazendo à colação um exemplo corriqueiro analisado pela doutrina, cogitar que as intervenções cirúrgicas com finalidade terapêutica, em conformidade com a lex artis, ao causarem lesões corporais seriam típicas, mas sobre tais condutas incidiria uma causa de justificação. Face a uma lógica sistêmica, não se pode olvidar que os tipos legais estão inseridos em um contexto pretensamente coerente, cabendo então ao intérprete proceder, como restou consignado, uma análise global acerca do posicionamento do sistema em relação ao fato sub examine. Oportuna a explanação de Zaffaroni e Pierangeli:[50]
Não obstante, dizer que o cirurgião age ao amparo de uma causa de justificação é tão pouco coerente como afirmar que o oficial de justiça comete furto justificado. Além do fato de que o direito, eventualmente, obriga o cirurgião a praticar certas intervenções, não há dúvida de que as intervenções cirúrgicas, com finalidade terapêutica, são altamente fomentadas pela ordem jurídica, o que pode ser comprovado por uma ligeira consulta à legislação sanitária. Como, conforme os princípios que regem a tipicidade conglobante, resulta inadmissível que uma norma proíba o que outra fomenta, dentro da mesma ordem normativa, o problema deve ser resolvido neste nível, sem pretender a inexistência do tipo legal, nem cometer a incoerência de explicá-lo em nível de justificação.
O crime não tem existência ôntica, não é uma realidade meramente fenomenológica, mas normativa, regida por racionalidade própria. Dessarte, o juízo de tipicidade penal de uma conduta não é simplesmente transladar o acontecimento no mundo dos fatos (causação de lesões corporais e da morte alheia) e promover uma subsunção a um esquema abstrato. Há de proceder-se uma valoração jurídica necessariamente sistêmica. “Não se interpreta o direito em tiras” (GRAU, 2003, p. 40).
Se colaborar com o suicídio ou matar alguém sob a hipótese de eutanásia é absolutamente necessário à efetivação do princípio que representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, o qual irradia “efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, conferindo unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na ideia de respeito irrestrito ao ser humano” (SARMENTO, 2003, p.59-60), exsurge, ao primar-se pela realização do vetor normativo multicitado, uma eficácia imunizante, impediente de conformação típico-penal.
Nestes lindes, é possível argüir-se a aplicabilidade de norma permissiva a envolver legitimamente a conduta do agente eutanasista. Na eutanásia passiva consentida, a negativa em iniciar ou prosseguir um tratamento consubstancia a afirmação de um direito fundamental do ser humano em conduzir sua integridade física, sua liberdade ambulatorial e sua vida, inclusive para deixar-se morrer.
A eutanásia ativa consentida “é um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana (...) significa o desejo de reapropriação de sua própria morte[51]” (BAUDOUIN e BLONDEAU apud BORGES, 2001, p. 285); enfim reivindicar o direito a morrer com dignidade é, em última instância, franquear espaço de legítimo interceder alheio para concretizar ou viabilizar a disposição (frustrada por absoluta impossibilidade) da vida in extrema ratio, por não se poder de outro modo elidir a desumanização representada pelo processo existencial em este contexto.
É, pois, conceder gradativamente maior amplitude aos explicitados contornos de autorreferência quando o indivíduo, “estando prostrado, deseja dar-se morte a si mesmo, mas sua prostração o impede fazê-lo por própria mão ou, podendo fazê-lo, o método seria sumamente doloroso ou denigrinte.[52]” Diz-se gradativamente porque a harmonização do conflito de interesses (dignidade e vida) há de pautar-se por uma proporcional redução do alcance daquele que restou prejudicado. Assim, far-se-á preferível a colaboração ao suicídio relativamente ao homicídio eutanásico, constituindo este medida de extrema excepcionalidade, já que, tendo em conta o caso de Rámon Sampedro, verifica-se a possibilidade de alguém que padeça de tetraplegia dar-se morte ingerindo uma substância letal[53].
A diferença básica entre tais condutas é que a execução (e eventual desistência) do ato fica em mãos do suicida, sendo uma garantia a mais da seriedade do seu propósito de ultrapassar o trânsito final. Dizendo com Claus Roxin, no auxílio ao suicídio a decisão de quem é titular do domínio do último ato que, irremediavelmente, conduz à morte reside no suicida; se residir em um estranho, se trata de homicídio a pedido. “Existe, pois, uma importante diferença entre aquele que se dispara um tiro na cabeça e aquele outro que pede que se o disparem,” já que “quem se dispara com sua própria mão se manteve firme em sua ultima decisão” (ROXIN, 2001, p. 27-49).
O paternalismo estatal indireto[54], consubstanciado nas disposições legais tratadas, prescrevendo que terceiros se omitam, sob pena de intervenção penal, reputa-se, nessas situações, carente de lastro normativo ao pôr-se em antagonismo completo com o princípio que lhe (ao Estado) conforma a existência e uma válida atuação.
Conquanto a colaboração ao suicídio e o homicídio fossem formal e abstratamente previstos, permite-se inferir da análise da globalidade que, diante das especialidades das hipóteses em comento, o sistema constitucional autorizaria tais condutas absolutamente necessárias a possibilitar uma morte de feição humana, já que, reitere-se, distanciando-se desta perspectiva e dos seus fins legitimadores, a ordem reconhecida deixaria de ser aquela preconizada, ela “passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável” (FERRAZ JUNIOR apud GRAU, 2003,p. 190), para compartir da opinião de Tomás-Valiente Lanuza (1999, p. 152/3), segundo a qual:
Em um contexto eutanásico, no qual o desejo de terminar com o sofrimento através da morte pode ser perfeitamente racional, desde um ponto de vista interno dos valores e preferências últimas do indivíduo, concluímos que a privação da colaboração alheia através de sua proibição penal supõe uma mostra de paternalismo forte indireto que não encontra justificação ética – tenha-se em conta que a um sujeito que se faça em este tipo de circunstancias frequentemente lhe é muito difícil suicidar-se de forma humana se não for com alguma ajuda -, menos ainda em uma sociedade que – coincidindo com a percepção do próprio paciente – rechaça a dor e o sofrimento sem esperança de cura como um mal que é desejável evitar.
E arremata:
Sem embargo, foram sugeridas algumas ideias que induzem a pensar que tais riscos [do levantamento da proibição] (que. de serem certos. legitimariam a proibição) poderiam ser controlados, o que abundaria na conveniência de descriminalizar as condutas eutanásicas solicitadas pelo paciente, descriminalização esta que, de chegar a produzir-se, deveria restringir o homicídio admissível unicamente aos casos nos quais o paciente não possa sequer ingerir por si mesmo a dose de medicamentos necessários para terminar com sua vida.
Expendidas estas considerações, pode-se concluir com a síntese pertinente e precisa de Mercedes García Arán[55]:
Em suma: desde o ponto de vista constitucional, cabe perfeitamente admitir a licitude de executar a própria morte, mas estabelecer que a disponibilidade somente é exercível por terceiros (substituível) no caso de impossibilidade do titular da vida ou em outras hipóteses excepcionais.
3.1 Antecedentes Históricos e Discussão Conceitual da Eutanásia Consentida:
O vocábulo “euthanasia” deve sua origem a estudo semântico empreendido pelo filósofo inglês Sir Francis Bacon, consignado em sua obra Historia Vitae y Mortis, datada de 1623, compreendendo etimologicamente o prefixo eu (adjetivo: bom, boa) e o substantivo thanatos (morte). Outrossim, firmou para o termo um conceito, segundo o qual há obrigação de o “médico evitar as dores não somente procurando a cura do enfermo, senão provocando inclusive a morte, quando aquelas se façam insuportáveis e careçam de tratamento[56]” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 31).
Originariamente, o então neologismo já punha em relevo que o dever do facultativo não se cingiria a proceder a tratamentos curativos, subsistindo, ademais, uma obrigação de cuidar do enfermo, de paliar-lhe os padecimentos.
Apesar da relativa recentidade do termo, antiqüíssima é a prática da eutanásia.
Sucintamente e a título de ilustração, cabe gizar que, entre os antigos povos eslavos e escandinavos, os filhos precipitavam a morte de seus pais, quando estes estivessem em extremo estado de ancianidade; entre os Karens na Birmânia, quando alguém padecia uma enfermidade penosa e incurável, o pedido do afetado para que fosse enforcado era autorizado instantaneamente (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 37); os espartanos davam morte às criaturas desprovidas de vigor ou defeituosas, por serem consideradas um inútil encargo para o Estado (ASÚA, 2003, tomo 1, p. 20); na idade média, “chamou-se ‘misericórdia’ ao curto punhal afiadíssimo, que servia para rematar os que caíam nas lutas multitudinárias ou nos chamados Juízos de Deus.[57]”
Pode-se ainda haurir referências a este respeito em pensadores clássicos, asseverando Lorenzo Morillas Cueva ser “conhecida a dura afirmação de Platão, em sua obra A República” de que “estabelecerá no Estado uma disciplina e uma jurisprudência que se limite a atender aos cidadãos sãos de corpo e alma; aos que não estejam sãos de corpo, deixe-los morrer;” Sêneca, por seu turno, afirma ser “preferível quitar-se a vida, a uma vida sem sentido e com sofrimento.[58]”
Historicamente, acolheu-se uma multitude de significados sob a denominação “eutanásia,” envolvendo-se as mais diversas perspectivas e motivações, albergando desde o ritual de extrema unção como forma de suporte psicológico na proximidade do trânsito final (tratando-se de eutanásia pura) até uma visão utilitarista-coletivista explicitada por Platão, perpetrada pelos espartanos e revivida, no século XX, com a eliminação de seres humanos realizada pelo denominado Projeto de Eutanásia.
O Nacional-Socialismo implantado na Alemanha, à conseqüência da subida de Adolf Hitler ao poder, parece configurar um caso histórico de uma tirania da maioria, sob a égide do qual se implantou um sistema de eliminação com motivações políticas e eugênicas (de purificação da “raça” ariana) de minorias e daqueles etiquetados de seres desprovidos de valor vital ou cujas vidas seriam indignas. Deve observar-se que a utilização pelo Nazismo do termo em apreço, ainda que pudesse se referir à provocação de mortes indolores, não legitima a inserção de propósitos genocidas tampouco que transcendam à pessoa[59].
Ante a necessidade de firmar um conceito atinente à eutanásia, cumpre notar primeiramente que o seu conteúdo semântico construído historicamente parece opor-se diametralmente às motivações alheias ao indivíduo, assimilando-se aqui a lição de Claus Roxin:[60]
A assim chamada eliminação de vidas indignas de viver está completamente fora de qualquer forma considerável de eutanásia. Trata-se, aqui, de matar, no interesse da coletividade, pessoas capazes e com vontade de viver, mas que sofram de doenças mentais incuráveis. A discussão a respeito foi impulsionada pelo inglório e até hoje conhecido escrito de Binding/Hoche, do ano de 1920: “a permissão da eliminação das vidas indignas de viver”. Estas propostas, até 1933, encontraram preponderantemente repúdio e foram retomadas posteriormente pelos nacional-socialistas. (...) O chamado programa de eutanásia do Estado nacional-socialista, que na prática foi além de tudo que já fora proposto por qualquer autor, reportava-se a um decreto confidencial de Hitler, datado de 1º de setembro de 1939.
Para fixar-se um conceito colimando proporcionar um adequado tratamento jurídico às modalidades de eutanásia a serem analisadas, cumpre vincar que a idéia básica a informar esta prática é a do respeito à pessoa. “Falar de eutanásia implica sempre e em todo caso falar de morte digna”(VALLE MUÑIZ, 1989, p. 156), devendo servir de instrumento para resolver um extremo conflito experimentado por alguém e no interesse deste.
A motivação da conduta, pois, há de revestir-se de caráter humanitário, piedoso e solidário (sempre em prol do afetado), de sorte a restarem excluídas desta conceituação as que forem impulsionadas por motivações racistas, eugênicas, seletivas (v.g., eliminação de determinadas minorias, de pessoas consideradas perigosas, com tendências criminais); as egoísticas (com interesse em proveito econômico, v.g., por causa de herança); as solidárias[61], porém em benefício de outrem. Por conseguinte, interrompe-se ou sequer se inicia a aplicação dos recursos que poderiam prolongar a vida de um dos necessitados, porquanto se vislumbra um prognóstico mais favorável ao outro.
A par de dissentir-se da inserção do caso retro-referido no rol das espécies de eutanásia (solidarística ou passiva[62]), uma vez que não se tem como escopo possibilitar um morrer misericordioso no interesse de quem sofre de forma insuportável, discorda-se também da solução jurídica advogada por um setor doutrinário, segundo o qual se estaria diante de estado de necessidade exculpante[63] ou justificante (GIMBERNAT ORDEIG, 2004, p. 8).
Para afirmar a tipicidade por homicídio omissivo impróprio haveria de se pressupor, além da existência do dever de evitar a superveniência do óbito, a possibilidade concreta de ação, o que não se afigura nesta situação. In casu, seja pela insuficiência de órgãos destinados a transplante, seja pela limitação de aparatos técnicos, o facultativo, sabendo impossível a salvação de todos os desamparados, administra recursos escassos. Omite-se por não poder agir, sendo esta inação penalmente irrelevante.
Outrossim, constitui elemento configurador da hipótese eutanásica a existência de uma situação de profundo sofrimento psíquico ou físico de difícil suportabilidade (equiparável a uma espécie de tortura), que pode se materializar em uma enfermidade incurável com previsão próxima de óbito (estado terminal) ou em caso de invalidez, não necessariamente letal.
Há de considerar-se, consoante leciona Díez Ripollés, a morte como um componente imprescindível,[64] mormente em razão de a relevância penal da eutanásia dizer com a intersubjetividade[65], com a repercussão no Direito de como alguém se posiciona em relação ao término do processo vital alheio. Isto é, não se podendo elidir ou amenizar satisfatoriamente o sofrimento por outro modo e nem sem interferência alheia, a conduta (omissiva ou comissiva) do agente eutanasista poderá antecipar, não adiar, causar ou possibilitar a causação da morte do afetado. Cabe, enfim, conceituar com arrimo em Díez Ripollés[66]:
Por eutanásia, em termos genéricos, deve entender-se aquele comportamento que, de acordo com a vontade ou interesse de outra pessoa que padece uma lesão ou enfermidade incurável, geralmente mortal, que lhe causa graves sofrimentos e/ou afeta - lhe consideravelmente a sua qualidade de vida, dá lugar à produção, antecipação ou não adiamento da morte do afetado.
O consentimento - por exteriorizar o projeto existencial traçado pela pessoa, a partir de uma ponderação subjetiva de valores e metas que a norteiam, por refletir sua personalidade e ser manifestação do direito fundamental à autodeterminação – goza de extrema relevância na análise do tema, tendo normalmente repercussão diferenciada em relação às hipóteses de eutanásia não consentida (v.g., de menores, inconscientes em estado comatoso, incapazes)[67].
Decerto, a caracterização do consentimento válido em casos deste jaez há de observar alguns requisitos mínimos, em razão da transcendência da eleição.
Deve ser pessoal, por não se admitir disponibilidade da vida alheia e por se tratar, neste ensaio, de disposição da própria vida; há de ser emanado de sujeito capaz e que tenha capacidade específica diante da situação que se lhe apresenta (excetuados, pois, casos de alguém que, ainda que sujeito capaz, esteja com a capacidade de exercer a autodeterminação diminuída, v.g., por ter ingerido bebidas alcoólicas); ocorrendo no bojo de uma relação entre médico e paciente, há de ser amplamente informado. Deve, ainda, ser inequívoco, sério, refletido, livre (v.g., não decorrente de uma coação), expresso (não presumido nem tácito)[68].
Sobre o consentimento na hipótese de eutanásia passiva consensual, Ferrando Mantovani enuncia, em síntese, seguintes requisitos:
No que tange à eutanásia passiva consensual, ou voluntária, na verdade se trata de recusa da cura por parte do paciente, de modo que deva ser considerada lícita, não com base em um poder do médico de deixar morrer, mas com base em um poder do sujeito de não se curar ou de deixar-se morrer. (...) Deve, pois, tratar-se de ato de vontade: a) pessoal, porque a ninguém é dado autorizar o sacrifício de outrem; não pode fazê-lo seu representante legal, em face de certos perigosos equívocos, conceituais e operativos, porque o consentimento está adstrito às intervenções favoráveis, e, portanto, jamais envolvendo prejuízo à saúde do representado (...); b) real, vale dizer, deve o ato ser manifestado de forma expressa, não podendo, por isso, ser presumido ainda que diante de impossibilidade material; em outras palavras: não se pode presumir, jamais, o consentimento do doente em face de sua situação pessoal (angústia e incurabilidade da enfermidade, iminência de morte etc.); c) informado, isto é, o ato há de estar fundado na clara e indiscutida conscientização do doente quanto a seu próprio e verdadeiro estado, não podendo, em consequência, se desinformado, praticar um ato de vontade. (...); d) autênticos, deve tratar-se de uma resistência ou oposição à cura, de modo não “aparente” ou fruto de motivações irracionais (p. ex. : medo); o ato há de ser consciente, ponderado, firme, de convicção, livre dos tradicionais vícios, e derriscar as formas de coação ou sugestão, direta ou indireta, do médico ou de terceiros. Não se olvide, ademais, a hipótese de ocorrência do delito de induzimento ou instigação a suicídio; e) válido, isto é, o ato de vontade pressupõe sujeito capaz, não só em razão da idade, mas, outrossim, com condições psíquicas para, na situação específica, poder exprimir validamente a própria vontade; f) atual, vale dizer, não basta uma vontade expressa em período anterior, dada a mutabilidade de pareceres quanto ao mérito, bem assim sob impulso do imperioso instinto de conservação e as conseguintes ambiguidades do médico quanto à persistência da vontade precedentemente manifestada, porquanto subsiste uma certa diversidade de valor entre uma opção, expressa pelo paciente ainda no senhoria de seu intelecto e de sua vontade (quando completamente consciente de suas condições adversas) e aqueloutra opção, em que, confiante em um momento distanciado de qualquer bem-estar, descrê na iminência do evento letal e se permite, já agora, uma valoração abstrata, destacada das reais angústias da vida que lhe foge[69].
A eutanásia consentida, portanto, constitui uma conduta omissiva ou comissiva de alguém (médico ou não)[70] que, consoante uma válida manifestação de vontade emanada de um sujeito que padece sofrimentos físicos ou psíquicos insuportáveis decorrentes de uma enfermidade ou invalidez de difícil reversibilidade, propicia uma morte condizente com a condição humana, em não se podendo amenizar o martírio ou fazê-lo cessar por outro modo.
Consignada esta conceituação geral, é possível destacar quatro espécies básicas do instituto ora sob comento, a saber:
a) eutanásia pura ou genuína: consiste em proporcionar ao enfermo os meios paliativos, lenitivos para apaziguar o sofrer, sem engendrar encurtamento do processo vital;
b) eutanásia passiva ou por omissão: trata-se da não-iniciação ou da interrupção de tratamento que possibilitaria prolongar a vida do afetado;
c) eutanásia ativa indireta: consiste na subministração de meios lenitivos (v.g. substâncias analgésicas) com o fito de paliar o sofrimento humano, entretanto, como efeito colateral, culmina por repercutir no curso vital do paciente, antecipando-lhe ou causando-lhe a morte;
d) eutanásia ativa direta: consubstancia-se em um ato diretamente direcionado a ajudar alguém que esteja sob uma situação eutanásica a morrer, seja disponibilizando os meios necessários ao suicídio (eutanásico), seja em casos ainda mais excepcionais, executando a morte.
3.2 Eutanásia Pura ou Genuína:
Usualmente se destaca que esta modalidade se circunscreve a uma ação de ajudar no morrer, diversamente, pois, daquel’outras em que a intervenção tem repercussão no curso vital. Pode materializar-se sob a forma de subministração de fármacos com efeitos meramente lenitivos, analgésicos, sem implicar diminuição da vida e em assistência básica (suporte/acompanhamento psicológico, cuidado corporal, alimentação adequada), viabilizando-se um mais tranqüilo trânsito final.
Por ser inócua (não ofensiva) em relação a bens protegidos pelo Direito, reputa-se penalmente irrelevante, merecendo referência em razão de duas situações a ela correlatas, quais sejam: a ministração de paliativos ou a sua não-aplicação contra a vontade do enfermo.
O significado originário de euthanasia cunhado por Bacon já afirmava ser obrigação do médico buscar a cura do doente e, não sendo esta mais possível, franquear uma morte tranqüila. No bojo de uma relação médico-paciente, podem subsistir duas obrigações de natureza terapêutica: encaminhar um tratamento de finalidade curativa ou cujo objetivo seja mitigar dores. Assim, estando sob compromisso de garante e devendo, consequentemente, zelar pela saúde do enfermo, se o facultativo omitir os remédios (substâncias e recursos) capazes de elidir padecimentos desnecessários, esta conduta caracterizará lesão corporal por omissão[71].
Por sua vez, a negativa a submeter-se à subministração de paliativos desautoriza a atuação médica. Se, a despeito desta oposição, são forçosamente aplicados, constitui-se um tratamento arbitrário, configurando também lesões corporais. A propósito, afirma Roxin (2000, p. 12):
Pode o doente ter razões teológicas ou filosóficas para tanto, ou ser simplesmente uma pessoa sobremaneira corajosa, que deseje comunicar -se com os que lhe são íntimos, ou regular problemas sucessórios. De qualquer maneira, seu desejo deve ser respeitado. Se for ministrada ao doente uma injeção, talvez porque o médico considere a recusa algo irracional, ter-se-á uma intervenção não permitida na integridade física alheia.
Cabe assinalar, então, a atipicidade legal da simples ajuda no morrer, contrariamente ao que sucede nas duas outras hipóteses supra-analisadas (a ministração de lenitivo ou a sua não-aplicação contra a vontade do paciente). Estas, a rigor, sequer configuram eutanásia pura, haja vista que desprezam a liberdade de alguém em decidir sobre submeter -se ou não a determinada terapia médica.
3.3. Eutanásia Consentida por Omissão:
Se o cotejo da modalidade pura de eutanásia (ajuda no morrer) não faz aportar marcadas controvérsias jurídico-penais, decerto não se poderá declinar a mesma assertiva derredor da espécie sub examine, de sorte que uma conclusão acerca da (a)tipicidade penal desta demanda um mais profundo perscrutar.
É cediço que a eutanásia consentida por omissão se consubstancia em a conduta de terceiro de, sempre em consonância com a vontade emanada por sujeito responsável que se encontra sob hipótese eutanásica, não iniciar ou de interromper um tratamento vital ou, ainda, de não prestar auxílio (socorro) desta natureza, que, se prestado fosse, teria o condão de elidir ou postergar o advento do óbito alheio.
Se a ratio da proteção normativa à vida basear-se em uma sua (da vida) pertinência coletiva; se for concebida em razão da função a ser desempenhada pelo indivíduo para satisfação de interesses da sociedade e do Estado, por conseguinte, admitir-se-á a indisponibilidade do bem jurídico, a antijuridicidade do suicídio e a legitimidade de tutelar a vida contra a pessoa (e a dignidade dela), notadamente para impor-lhe ou facultar que se lhe imponham procedimentos terapêuticos vitais ainda quando exista válida negativa ao tratamento.
Segundo este tradicional posicionamento, a conduta eutanásica em apreço configuraria delito de homicídio, quando se estivesse sob posição de garante, ou omissão de socorro.
Em conformidade com as premissas fixadas ao longo deste trabalho, cabe reiterar que o direito a viver tem função de garantia ante hetero-lesões; da inviolabilidade deste direito fundamental per si não se dessume a indisponibilidade da vida mesma tampouco o contrário, sendo que a afirmação (fundamentação) do direito constitucional de dispor da própria vida há de derivar da autodeterminação individual.
Na condução do próprio destino vital com fito de atingir metas firmadas para si, pode-se, expressando uma responsável eleição pessoal, cometer diretamente suicídio; pode-se, nas situações de iminente perigo de morte ou naquel’outras em que a manutenção de uma função vital depende de um aparato, rechaçar o tratamento, exercendo o direito de deixar-se morrer; isto é, o término da existência biológica se apresenta como conseqüência necessária ou eventual de determinada opção posta à escolha do indivíduo, que, apesar das consequências possíveis, ainda assim este assume o risco, consoante pensamento externado por Günther Jakobs[72]:
Em um intento sério de suicídio, a concludente negativa a deixar-se ajudar deve ser respeitada enquanto durar esse intento. Isto não tem nada a ver com a eutanásia por omissão de um tratamento,[73] senão que é o desenvolvimento do direito do que não quer viver mais, a decidir sobre si mesmo,quer se trate de um suicídio direto ou – em caso da negativa a deixar-se tratar de uma enfermidade – de um suicídio indireto[74].
Substancialmente, a eutanásia consentida por omissão é expressão da faculdade de decidir-se sobre a própria vida, o corpo, a saúde; enfim, é decidir sobre o se e o até quando (em quais circunstâncias e condições) submeter-se a determinados procedimentos terapêuticos e possibilitar deixar-se ajudar.
Trata-se, afinal, do direito a não ser submetido a tratamento contra a vontade, ainda que a morte seja efeito da oposição, já que, para dizer com Roxana Cardoso Brasileiro Borges, “o paciente tem o direito de não se submeter a tratamento, ou de interrompê-lo, se esta for sua decisão, após um esclarecimento completo, compreensível, dado pelo médico sobre seu estado e as perspectivas do tratamento cabível.[75]”
Em uma sociedade constitucionalmente preconizada como pluralista, múltiplas podem ser as razões (de matriz religiosa, ideológica, simplesmente pessoal) para opor-se a uma intervenção vital.
O exercício de um direito albergado na Constituição Federal faz erigir um limite à atuação alheia. Por conseguinte, desfaz-se o compromisso do garante de evitar especificamente um resultado (a morte)[76] e, sem embargo, descaracteriza-se a situação de desamparo, obstando a tipificação da conduta também como delito de omissão de socorro.
Neste contexto, reputa-se necessário proceder uma interpretação conforme a constituição do § 3º do art. 146 do Código Penal, excluindo-se do alcance deste dispositivo as hipóteses de suicídio (e de deixar-se morrer) responsável. Devendo partir-se de que do direito à vida “não se deriva em nenhum caso o direito à intervenção contra a vontade de seu titular” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 23) e que o “ato de suicídio é expressão do exercício de um direito constitucionalmente amparado” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 167), somente há de ser considerado lícito (legalmente atípico) o constrangimento exercido para obstar suicídio não-responsável.
Nos casos de iminente perigo de morte (C.P. art. 146, § 3º, inciso I), a licitude da intervenção médica ou cirúrgica há de ser restrita aos casos de ausência de consentimento válido, seja por tratar-se de sujeito incapaz (v.g. menor); seja por tratar-se de pessoa inconsciente, seja ainda porque, diante da urgência e da irreversibilidade do dano (do periculum in mora), não se faz possível prestar as devidas informações para que o paciente possa eleger uma opção.
Entretanto, se houver contrariedade válida (séria, informada e emanada de sujeito capaz) ao procedimento terapêutico, intervir significará a imposição de tratamento arbitrário, constitutivo dos delitos de lesões corporais e/ou constrangimento ilegal.
3.3.1 Rechaço de Tratamento Vital por Motivos Religiosos:
É de casuística recorrente a problemática envolvendo a negativa de tratamento salvador lastreada em motivação religiosa. Já clássico é o caso de oposição à transfusão de sangue por parte de Testemunha de Jeová[77], sabendo-se esta eleição individual conduzirá muito possivelmente a seu falecimento.
É de rigor notar que parece não se tratar de hipótese de eutanásia, especialmente por inexistir um sofrimento atual. Mais se assemelha a uma simples situação de disponibilidade da vida.
Quase despiciendo é gizar que a realidade constitucional propugna por uma sociedade pluralista, livre, respeitosa das diferenças. In casu, trata-se de uma escolha pessoal de cunho religioso e em razão da qual se guia a própria existência em direção às metas firmadas e em acordo com os valores que informam seu existir e manifestam sua personalidade.
Se o fundamento da ordem normativa é a dignidade da pessoa humana, ora se ressaltando o direito à autodeterminação, ora se salientando a não submissão à degradação, a reificação e se o objetivo desta ordem é constituir uma sociedade livre, há de inferir-se que o indivíduo, no âmbito somente a si concernente, é livre para decidir o que é melhor para si. Uma vida digna é uma vida livre – assevera Francisco Bueno Arús – e “livre é quem pode autodeterminar-se e decidir sobre sua própria vida, sem outros limites essenciais que a liberdade e os direitos dos demais”(ARÚS, 1991, p. 395).
A negação de um sujeito responsável – capaz de autodeterminar-se – a submeter-se a determinado tratamento faz emergir um limite à atuação alheia, quaisquer que sejam os motivos. O que se pode fazer é analisar as preliminares, os pressupostos do exercício da autonomia (consentimento sério, informado, expresso, emanado de pessoa capaz), mas não o mérito de uma escolha pessoal, ou seja, se a interpretação de alguém sobre um texto religioso é razoável ou não.
Intervir, por entender-se irracional uma determinada doutrina religiosa, é expressão de uma ingerência arbitrária na personalidade de outrem, uma inconcebível ofensa no âmago de uma sociedade que se pauta (pelo menos se pretende) na tolerância das diferenças; enfim, constitui tratamento degradante, além de delito de lesões corporais e/ou constrangimento ilegal.
Sobre a recusa de tratamento vital por Testemunhas de Jeová, Miguel Bajo Fernández[78] legou escólio preciso:
Se sostiene en ésta ya constante jurisprudencia, que ni el juez que autoriza ni el médico que realiza la transfusión cometen delito alguno por estar amparados en el estado de necesidad o cumplimiento de un deber. Pues bien, yo sostengo que la transfusión de sangre realizada contra la voluntad del paciente constituye un trato inhumano y degradante que, salvo excepciones, no queda amparado por causa de justificación alguma.En la medida que la transfusión de sangre 1) implica una agresión física, aunque sea mínima; 2) provoca riesgos, por leves que sean, para la salud; 3) no procede de quién se encuentra en estado de necesidad, sino de un tercero, y 4) se realiza contra la voluntad del agredido, no puede quedar exenta de responsabilidad criminal por aplicación del número 7 del artículo 8, aunque se realice para evitar otro mal, incluso la muerte. La razón estriba en la falta de adecuación con valores elementales indispensables para la convivencia social, como es la necesidad de respeto a la voluntad ajena, la necesidad de no otorgar a nadie poderes excepcionales de intervención en los intereses ajenos y la necesidad de no practicar tratos inhumanos y degradantes. De ahí que quien, contra la voluntad del paciente, realiza una transfusión de sangre para salvar su vida, comete, al menos, un atentado contra la liberdad (si no una lesión o, al menos, un maltrato de obra) no amparado por la eximente del estado de necesidad.
E prossegue o autor espanhol, reconduzindo a discussão às razões que presidem a imposição – ilegítima – de transfusão de sangue neste contexto:
Entonces ¿por qué se puede agredir al Testigo de Jehová en sus convicciones religiosas, incluso físicamente, para salvar su vida? Qué duda cabe que juega aqui un papel importante el ‘hecho diferencial’, la marginalidad religiosa, el ser distinto de la mayoría.
3.3.2. Eutanásia omissiva por ação (comissão):
Oportuno é referir que a observância do direito de não se submeter a tratamento médico para se realizar pode exigir (geralmente se exige) a prática de condutas comissivas, a exemplo da retirada de aparatos que conferem suporte vital.
Do ponto de vista naturalístico, efetivamente se evidencia uma ação neste caso.
Entrementes, o referido ato é instrumentalmente necessário ao cumprimento do interrupção da terapia médica, donde – sob a perspectiva de valoração jurídica da conduta – deve ser considerada como omissiva (por ação) a conduta em referência.
Sobre o tema, elucidativas mais uma vez as lições de Miguel Bajo Fernandez:
Disiento de esta tesis dominante, porque entiendo que no prolongar artificialmente la vida del enfermo equivale a un supuesto de omisión (eutanasia pasiva) que debe considerarse impune conforme al artículo 409 del Código Penal. Entiendo que la desconexión de medios artificiales que mantienen con vida al sujeto han de considerarse como supuestos de omisión (101) en cuanto que el aparato artificial que mantiene con vida es una ‘longa manus’ del médico, quien al interrumpir el funcionamiento del mismo está realizando un comportamiento omisivo. El derecho del enfermo a la muerte natural, a no sufrir tratos inhumanos y degradantes, y el derecho a que sea respetada su voluntad, son argumentos suficientes como para entender que los supuestos de eutanásia pasiva no están incluídos en el artículo 409 del Código Penal[79]. (BAJO FERNANDES, 1993, p. 736)
O dever de abstenção (conduta omissiva, pois) do médico pode consistir em não instaurar um procedimento terapêutico ou em suspendê-lo, caso iniciado, o que pode exigir (como sói ocorrer) uma conduta ativa imprescindível para viabilizar a omissão do tratamento. Claus Roxin, sobre este aspecto, expõe:
Deve admitirse que toda voluntad responsable del paciente se corresponde con la eutanásia pasiva. Um caso de esta naturaleza también existe, y com ello entro em um problema amplia y extensamente discutido, cuando um comportamiento dirigido a la omisión de la continuidad de um tratamiento está conectado com um hacer positivo. El supuesto clásico es aquel em el que por deseo del paciente es desconectado um aparato de respiración artificial, donde la presión sobre el interruptor es um hacer positivo. A pesar de ello, no se trata de uma eutanásia activa punible generalmente como homicio a petición (§ 216 StGB). Y es que de acuerdo com su significado social el suceso se muestra como la interrupción del tratamiento y, por tanto, como la omisión de uma actividad adicional. La frontera entre uma eutanásia activa punible y la pasiva impune no debe extraerse del critério naturalístico consistente em el desarrollo o no de movimientos corporales. Más bien depende de si normativamente es interpretable como um cese del tratamiento, pues entonces existe uma omisión em sentido jurídico que, al apoyarse em la voluntad del paciente, resulta ser impune. La opinión de enjuiciar como uma omisión la denominada interrupción técnica del tratamiento es em la actualidad dominante[80].
3.4 Eutanásia Ativa Indireta:
Eutanásia indireta é a conduta de subministração de recursos, fármacos, visando a mitigar os insuportáveis padecimentos alheios, singularizando-se por ser dotada de duplo-efeito, ou seja, a par de amenizar as dores, traz consigo, reflexamente, o abreviar da existência humana; na prática – aponta Hans Hirsch - incluem-se, sobretudo, casos em que, durante uma medicação analgésica, produz-se um círculo vicioso entre tolerância e aumento contínuo de dose, assim que tampouco se exclui, como efeito secundário, um dano vital tóxico. Ainda mais, também é imaginável um caso mais extremo, quando, na fase terminal, pode causar-se a morte com uma única injeção (HIRSCH, 2000, p. 348).
Conquanto antecipasse o fim da vida, a mencionada ação é avaliada, em regra, pelos doutrinadores como penalmente atípica, pairando uma notória divergência em relação à fundamentação deste ponto de vista. Sobre tal aspecto, explicita Roxin:
A fundamentação traz dificuldades, porque a diminuição da vida provocada comissiva e dolosamente (ou seja, ao menos com dolo eventual) em todos os demais casos configura um homicídio (§212 do StGB) ou um homicídio a pedido da vitima (§ 216 do StGB). Por que aqui deve ocorrer algo diverso? Segundo uma opinião, a eutanásia indireta permitida exclui já o tipo dos §§ 212 e 216 do StGB (logo, qualquer caso de homicídio), por ser socialmente adequada e não estar compreendida pelo sentido destes dispositivos. De acordo com a outra opinião, hoje dominante, haverá, sim, um homicídio, que, porém, é impunível em virtude do consentimento ou do consentimento presumido.
Criticando decisão proferida pelo BGH[81] a este respeito, conclui o autor alemão:
O BGH deixou a questão em aberto. Ela deveria, porém, ser respondida. Pois só quando uma das duas soluções for reconhecida como correta, poderá excluir-se com segurança a terceira – e antes defendida – opinião de que haveria um homicídio punível. Considero correto o posicionamento hoje dominante. Pois a adequação social, o sentido ou fim de uma norma são critérios demasiado vagos para fundamentar a impunidade de homicídios[82]. (ROXIN, 2000, p. 15)
Outros argumentos são suscitados em favor da atipicidade, a saber: a inexistência de dolo; estrito cumprimento de dever legal e ausência de imputação objetiva da conduta.
Por definição, a ação eutanásica indireta colima paliar um atroz sofrer humano, representando-se, porém, o morrer do paciente como efeito necessário (dolo direto de segundo grau[83]) ou possível (dolo eventual), o que se pode inferir da elucidativa explanação de Gómez Sancho:
Que pode passar nos casos muito concretos e em situações muito avançadas, muitas vezes pré-agônicas ? Sim, é verdade que, em casos de dor muito intensa, na melhor das hipóteses, ao final, tem-se que fazer uma escalada de doses de morfina que, provavelmente, como efeito secundário, estará reduzindo a vida deste enfermo. (...) O que define a categoria moral de um ato é a intenção de quem o aplica e, se ponho doses muito altas de morfina a um enfermo para controlar-lhe a dor, esse é o meu único objetivo: quitar-lhe a dor. Se, com independência disto, se está encurtando a vida, esse é um efeito indesejável do que estou fazendo com toda a melhor vontade do mundo, como médico e como ser humano, que é tentar abreviar-lhe a dor. Isto aceita até Pio XI (apud RIVAS, 2001, p. 162).
Salvo melhor juízo, a dificuldade em proceder-se a uma mais firme fundamentação do ponto de vista jurídico parece dever-se, em alguma medida, à sua ampla aceitação moral[84], daí porque é suscitada a adequação social como supedâneo para afastar a tipicidade, posicionamento este rechaçado por Roxin, por considerar esta teoria demasiadamente vaga.
De outra parte, embora se tenha por inequívoca a intenção do médico de apaziguar o sofrimento, patente resta a presença de, no mínimo dolo eventual,[85] o que representa um obstáculo ao intento de basear a atipicidade na inexistência do dolo de matar.
Imperioso é ressaltar que – como já fora percebido por Francis Bacon – há obrigação do facultativo não somente em perseguir a cura do enfermo, senão também em amenizar-lhe os sofrimentos, dando-se concreção, inclusive, ao direito que cada um tem de rechaçar uma condição desumana, penosa. Deste modo, o dever do médico e a finalidade terapêutica de seu interceder compreendem “a conservação ou o restabelecimento da saúde, ou então a prevenção de um dano maior ou, em alguns casos, a simples atenuação ou desaparecimento da dor” (ZAFFARONI, 2004, p. 529).
A intervenção médica consentida que busca o alívio do sofrimento humano, mediante a necessária e adequada (conforme a lex artis) ministração de remédios, embora possa implicar uma redução ou supressão do tempo de vida do paciente, implementa estritamente um dever legal[86]. Não se poderia aqui, entretanto, olvidar uma imprescindível análise lógico-sistêmica, um cotejo da globalidade.
Poder-se-á indicar como supedâneo da atipicidade penal da eutanásia indireta a teoria da (a)tipicidade conglobante, haja vista que, por ser lógico o sistema normativo, não se poderia considerar proibida uma conduta que é imposta ou, quando menos, fomentada pelo Direito.
Sob outro prisma, afirmar-se-á, ainda cotejando a subsidiariedade lógico – sistemática do Direito penal, a ausência de criação de um risco proibido, fazendo alicerçar na teoria da imputação objetiva a atipicidade da eutanásia indireta[87]. Por todos, cabe transcrever uma vez mais o lapidar magistério de Valle Muñiz, verbum ad verbum:
Não entendo justo afirmar a tipicidade de comportamentos que, dentro do mais excelente respeito à lex artis, não fazem mais que cumprir com o mandato constitucional de não infligir tratos desumanos, de respeitar a dignidade da pessoa, de, enfim, fazer possível o direito de todo ser humano a uma morte sem sofrimento, a uma morte digna. (...) A meu juízo, a conduta do médico não será típica. Pois a administração de analgésicos nas situações descritas não supõe a criação de um risco não permitido. Isto é, a conduta será atípica por ausência de imputação objetiva. (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 183)
A permissividade do tratamento médico consentido que enseja risco de morte do paciente pode ser haurida no Direito brasileiro a partir do art. 15 do novel Código Civil, segundo o qual: “ninguém poderá ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento ou intervenção cirúrgica.” Procedendo um raciocínio contrariu sensu, tem-se por lícita a ação médica voluntária (de acordo com a vontade do enfermo) que tem finalidade terapêutico – paliativa, em que pese trazer ínsito o perigo de provocar a morte daquele (paciente).
Sucintamente, a eutanásia consentida indireta, por consistir em uma obrigação do facultativo em prestar os recursos necessários para mitigação dos padecimentos do enfermo (dever de cuidar, finalidade terapêutico-paliativa), apesar de resultar um risco de morte, representa um perigo albergado (permitido) pelo Direito pátrio. Consectariamente, como a conduta não produziu situação que exorbitasse os lindes do risco permitido ao bem jurídico tutelado, não se lhe poderia imputar a responsabilidade penal pelo resultado lesivo (morte), não exsurgindo um juízo positivo de tipicidade penal derredor de si (do ato).
Quiçá, tecidas todas estas ponderações, se tenha conseguido alcançar um objetivo fundamental: suscitar uma mais profunda reflexão sobre o tema do que a que comumente tem tido lugar na doutrina nacional.
4. Considerações Finais:
Superado o estudo derredor dos aspectos mais relevantes da disponibilidade da própria vida em um contexto de eutanásia, cabe aduzir as seguintes conclusões:
1. A constitucionalização da dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica faz imperiosa uma interpretação do Código penal vigente (em especial em relação ao direito à vida) em conformidade com uma concepção neopersonalista do sistema jurídico.
2. A dignidade da pessoa humana informa os limites e conteúdo dos direitos fundamentais. Estes se articulam de forma dinâmica para viabilizar o livre desenvolvimento da personalidade. Já não cabe perquirir sobre a primazia in abstracto da vida em detrimento de outros bens também fundamentais, como se fosse este direito uma realidade normativa isolada.
3. Em um sistema impregnado por uma visão humanista, não se cogita de um dever de viver para com a coletividade nem, por conseguinte, da antijuridicidade de suicídio ou ainda da absoluta ineficácia do consentimento para dispor da vida.
4. O direito à vida tem função de garantia ante hetero-lesões. Não se infere da inviolabilidade do direito a indisponibilidade da vida mesma tampouco o contrário.
5. A disponibilidade da vida fundamenta-se na dignidade da pessoa humana (especialmente, no direito à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da personalidade). Rechaça-se a indisponibilidade da vida manu própria. Afirma-se um direito constitucional de dispor da própria vida. O suicídio (direto ou indireto) é expressão de um direito amparado na Constituição.
6. Da faculdade que se tem de dispor manu propria da vida não decorre necessariamente a legitimidade de intervenção alheia. Em regra, há uma valoração destinada às condutas auto-lesivas e outra atinente à colaboração à autolesão e hetero-lesão consentida.
7. A disponibilidade do direito à vida na eutanásia ressalta um aparente conflito de interesses constitucionais: dignidade versus vida; respeito à pessoa versus respeito à existência biológica da pessoa.
8. Uma ponderação entre o respeito à dignidade da pessoa e ao respeito à vida faz inclinar a balança em favor da realização da pessoa, porquanto os direitos fundamentais são instrumentos para manifestação da personalidade.
9. A solução para a ponderação havida na hipótese eutanásica há de pautar-se na gradualidade; na proporcional permissão de atuação alheia. É preferível a colaboração eutanásica ao suicídio à prática do homicídio eutanásico, em razão do domínio do fato lesivo pelo titular da vida.
10. Diferentemente do que se propala, a eutanásia geralmente dá-se na modalidade de auxílio ao suicídio.
11. A eutanásia, medida extrema e única para fazer cessar uma degradação e pôr término a sofrimentos atrozes, vislumbra-se penalmente atípica. O Estado não poderia considerar típica uma conduta estritamente dirigida a realizar seu fundamento jurídico.
12. A incriminação das hipóteses eutanásicas constitui uma mostra de paternalismo estatal injustificado, que, impondo omissão ao eutanasista (paternalismo indireto), vulnera reflexamente a dignidade da pessoa afetada.
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Notas
[1] A exemplo da Carta das Nações Unidas, datada de 1945 e Declaração dos Direitos do Homem, de 1948.
[2] VALLE MUÑIZ, José Manuel. Relevância jurídico-penal de la eutanásia. Cuadernos de Política Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 37, p. 155, 1989.
[3] Daniel Sarmento salienta que “a sincronia entre a instauração de uma nova ordem política democrática e a consagração máxima do princípio da dignidade da pessoa ocorreu também na Alemanha, na Espanha e em Portugal. Nestes três países, as Constituições surgidas após o ocaso de regimes totalitários – nazismo na Alemanha, franquismo na Espanha e salazarismo em Portugal – proclamaram como fundamento da ordem constitucional o princípio em questão” (SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 58). De forma convergente, explicita Flávia Piovesan que a atual feição do Direito Constitucional brasileiro foi influenciada,“principalmente, pelas Cartas alemã de 1949, portuguesa de 1976 e espanhola de 1978” (PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2ª edição. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 356), consideração extremamente relevante para este trabalho, por recorrer frequentemente às doutrinas alemã e espanhola.
[4] ROCHA, Carmen Lúcia A. O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 33.
[5] CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição e na Jurisprudência Constitucional Portuguesas. In: Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Organizadores: Sérgio Resende de Barros e Fernando Aurélio Zilvete. São Paulo: Dialética, 1999, p. 191.
[6] LANUZA, Carmen Tomás-Valiente. La disponibilidad de la propia vida en derecho penal. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999, p. 23.
[7] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 45.
[8] São mostras de condutas paternalistas moralistas, segundo Lanuza, a incriminação de determinadas práticas sexuais entre adultos que consentem, a exemplo de práticas sadomasoquistas, além da proibição do consumo de pornografia e, em tempos mais recuados, da prostituição (LANUZA, 1999. p. 19).
[9] Deduzindo Valle Muñiz que o ponto-chave “na interpretação do alcance e limites de proteção dos direitos fundamentais é o entendimento dos mesmos como realidades normativas dinâmicas configuradoras da dignidade da pessoa. Não cabe uma interpretação dos direitos e liberdades alheia aos valores constitucionais e especialmente à dignidade da pessoa” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 167).
[10] HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou Eutanásia por Omissão. Revista dos Tribunais. Vo. 752, ano 87, 1998, p. 750.
[11] CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001.
[12] Considerável setor doutrinário pátrio ainda repete à exaustão a fórmula proferida por João Mestieri. Por todos, Carlos Alberto Bittar (apud PAMPLONA FILHO e STOLZE, 2003, p. 158) entende dever-se “enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um direito sobre a vida. Constitui-se direito de caráter negativo, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. Com isso, tem-se presente a ineficácia de qualquer declaração de vontade do titular que importe em cerceamento a esse direito, eis que não se pode ceifar a vida humana, por si, ou, por outrem, mesmo sob consentimento, porque se entende, universalmente, que o homem não vive apenas para si, mas para cumprir uma missão própria da sociedade.” Permissa venia, a referida síntese parece confundir os conceitos de inviolabilidade do direito e de indisponibilidade da vida em si. Apesar de gizar o caráter negativo daquele, uma sua função de garantia anteposta a terceiros, culmina por envolver a pessoa para a satisfação de fins coletivos. Parece compartilhar, então, do entender de Christian Wolff, citado por Jakobs (2003, p. 8), para quem “o mais importante direito a viver que se pode imaginar é, na consideração de Wolff, o dever de viver, pois, segundo seu entendimento, os direitos se concedem para possibilitar o cumprimento do dever.” As conseqüências de uma perspectiva de tutela da vida em razão da utilidade que a pessoa representa para a coletividade (não em função da pessoa) são “universalmente” conhecidas e ensejaram, como reação histórica às práticas de sistemas totalitaristas, a constitucionalização do princípio do respeito à pessoa como fundamento do Estado.
[13] KAUFMANN, Arthur. Relativización de la protección jurídica de la vida? In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 31, p. 39-55, 1987, p. 51.
[14] Em sua obra Historia del derecho a morir, Nuñez Paz apresenta três motivos expendidos por São Tomas de Aquino para, à luz da filosofia cristã, condenar o suicídio, que representaria um atentado contra o amor devido a si mesmo; ofensa e desprezo para com a comunidade e “um atentado contra o direito exclusivo de Deus sobre a vida do homem. Se trataria, portanto, de uma usurpação do poder de Deus” (NUÑEZ PAZ, Miguel. Ángel. História Del Derecho a Morir: Análisis, Histórico y Antecedentes Jurídico-penales. Oviedo, Espanha: Fórum, 1999, p. 51). Decerto é que uma tal concepção não se harmoniza com uma sociedade pluralista e um Estado que se pretende laico. O intérprete há de ser obsequioso com a ordem normativa, já que, até onde se sabe, a doutrina católica “não é fonte do Direito em nosso país” (RIVAS, 2001, p. 168).
[15] Consigna Nuñez Paz, em sua obra Historia del derecho a morir, que, em 1920, Carl Binding e Alfred Hoche publicaram a obra “A autorização para exterminar vidas carentes de valor vital,” entendendo estes autores que as vidas assim qualificadas haviam perdido “todo valor tanto para si mesmas como para a sociedade.” O Nacional-Socialismo utilizou-se desta tese para instituir o que denominou Programa de Eutanásia, consistindo em sacrificar “a los niños com malformaciones, retrasados, idiotas, enfermos mentales, paralíticos em el ‘último período de su estado’ y todos los ‘resíduos humanos’ que pudieran constituir uma ‘carga econômica’ onerosa para la comunidade y mantenidos com vida sin ninguna finalidade útil, aún cuando arriesgan afectar el provenir y la ‘pureza’ de la raza, em tanto que posibles generadores de uma pesada y larga herencia degenerativa,” cuja finalidade precípua era poupar recursos para os repatriados de “raça” ariana e para os feridos de guerra (NUÑEZ PAZ, 1999a, p. 87-88).
[16] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 115.
[17] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 272.
[18] CAÑEDO, Carlos Augusto; JÚNIOR, Lúcio CHAMON. Eutanásia e Dogmática Penal: Por uma interpretação paradigmaticamente adequada através de uma teoria da adequabilidade normativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n.º 36, p. 68/88, outubro-dezembro de 2001, p. 84. Convém, então, afirmar com Albin Eser (apud VALLE MUÑIZ, 1989, p. 160): “se fosse dada absoluta preeminência ao preceito de santidade [da vida], a pessoa que se quitasse a vida quedaria reduzida praticamente a objeto, pois seu dever de manter-se com vida se fundaria exclusivamente na vontade da sociedade. Se não se quer converter o Estado em fideicomissário da divindade que dá a vida, então dificilmente se pode negar ao homem todo poder configurador de sua vida e sua morte.”
[19] RIVACOBA Y RIVACOBA, Manuel de. Nuevo sentido de la protección penal de la vida humana. In: PIERANGELI, José Henrique (coord.). Direito criminal - vol. 2. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 46.
[20] Sobre o pensamento de Bustos Ramírez, Valle Muñiz expõe que “a previsão constitucional tem um sentido garantista que em nenhum caso poderia limitar a vontade do sujeito. Único mandato dedutível é, portanto, o dever do Estado de favorecer a vida e não de impedir a livre disposição por seu titular (...), sem embargo, não pode ter interferência nenhuma, isto é, que não se pode influir sobre a consciência do sujeito a respeito de tal disponibilidade” (1989, p. 161).
[21] MILL, John Stuart. A Liberdade/ Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 116.
[22] Sobre a aplicação do pensamento de John Stuart Mill na discussão a respeito da disponibilidade da vida, Albert Calsamiglia (apud GARCIA RIVAS, 2003) afirma que a “eutanásia es un caso típico de conflicto entre el interés colectivo y el individual” e que “el argumento de Mill contra la intervención del Estado en las acciones de los ciudadanos que no dañan a otros es el argumento más poderoso que justifica la eutanásia voluntaria... Los ciudadanos pueden decidir cómo morir y es asunto suyo el decidir si continúan viviendo con sufrimiento o indignidad o mueren suavemente. Cualquier intervención estatal en este asunto supone un paternalismo injustificado.” (GARCIA RIVAS, Nicolás. Despenalización de la eutanasia en la Unión Europea : autonomía e interés del paciente. In Revista penal, n. 11, Madrid, 2003, p.22)
[23] QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 109.
[24] Idem, ob. cit., p. 109.
[25] Ao analisar as questões de indisponibilidade e inviolabilidade do direito à vida na realidade espanhola, Bernardo Del Rosal Blasco enuncia raciocínio aplicável à realidade pátria. Veja-se: “Comenzaremos por decir, que, en nuestra opinión, de la Constitución española de 1978 no se puede deducir ni el caráter absoluto de la protección a la vida ni el de su indisponibilidad. Es cierto, y nada hay que objetar a ello, que el derecho a la vida del art. 15 tiene el sentido de una garantia frente al Estado, que debe proteger y respetar ésta, pero lo que no podemos compartir es que de dicho precepto se pueda deducir, de una parte, que el carácter de dicha protección sea absoluto y, de outra, que el sujeto no tenga la libre disposición sobre su propia vida. (...) Em resumen, pues, de nuestra Constitución lo que realmente parece deducirse es el derecho que toda persona tiene a la libre disposición de la vida. No obstante, dada la inmensa importância del bien jurídico al que ahora nos estamos refiriendo – la vida -, así como la gravedad que implica el acto de disposición del mismo, y dada la ineludible obligación que tiene el Estado de proteger la vida, lo que si debe hacer este es establecer una regulación de la prestación del consentimiento y unos limites a la eficácia del mismo.” (BLASCO, Bernardo Del Rosal. Política criminal de los delitos contra la vida humana independiente en el anteprojecto de codigo penal español de 1992. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 1, n.º 4, outubro-dezembro de 1993, p. 13)
[26] HIRSCH, Hans Joachim. Interrupción del tratamiento y eutanasia. In: Derecho penal: obras completas. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, p. 335-361, 2000, p. 338-339.
[27] A juízo de Luiz Régis Prado, “não há constrangimento ilegal na coação exercida para impedir a prática de uma conduta antijurídica (v. g. suicídio)”, entendendo que “o mal causado (violação da liberdade pessoal) é menor do que aquele que se pretende evitar (morte).” (PRADO, Luis Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Especial, Volume 2. São Paulo: Revista dos tribunais, 2000, p. 272/3). No mesmo sentido, Damásio de Jesus: “como vimos no crime de participação em suicídio, este, embora não constitua ilícito penal, não deixa de ser conduta antijurídica. Assim, impedir, mediante violência ou grave ameaça, que uma pessoa pratique ato antijurídico não pode constituir constrangimento ilegal. Trata-se de estado de necessidade de terceiro elevado à categoria de causa excludente da tipicidade” (JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal: Parte especial, dos Crimes Contra a Pessoa e Dos Crimes Contra o Patrimônio. 24ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 251), e Bitencourt, para quem, “intervenções médicas ou cirúrgicas justificadas por iminente risco de vida ou a coação exercida para impedir o suicídio independem de consentimento de quem quer que seja (§ 3º). A presença da precisão legal dessas circunstâncias exclui a própria tipicidade do fato” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 426).
[28] Ubi eadem est ratio, ibi ide jus: a mesma razão autoriza o mesmo direito.
[29] BAJO FERNANDEZ, Miguel. Prolongación Artificial de la Vida y Trato Inhumano o Degradante. In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 51, p.709-740, 1993, p. 720.
[30] “A menudo se arguye que la vida humana es también un bien jurídico de la comunidad, de modo que el individuo no podría disponer sobre ella. Pero esto no es correcto. En cualquier caso, en la Constitución alemana (art. 2, párrafo 2, de la Ley Fundamental) la vida se concibe como un derecho altamente personal. De modo que no se comprende por qué tal derecho ha de ser juridicamente – y subrayo lo de juridicamente – irrenunciable. A la objeción de que esta postura lleva a un individualismo extremo cabe oponer que la tesis de que el hombre está obligado frente a la comunidad a manternerse con vida apoya a un cuestionable coletivismo de proveniencia conocida. Cierto que el individuo tiene obligaciones frente a la comunidad, pero sólo en tanto que vive; sin embargo, no tiene frente a la comunidad la obligación de vivir” KAUFMANN, Arthur. Relativización de la protección jurídica de la vida? In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 31, p. 39-55, 1987, p. 51.
[31] QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 116.
[32] Conclusivamente, a incriminação de condutas autorreferentes e que não observam o princípio em cotejo, como o porte de substâncias entorpecentes ilícitas para uso próprio e as contravenções de vadiagem e mendicância (Lei de Contravenções Penais, arts. 59 e 60) não foram recepcionadas pela Constituição vigente. De igual sorte, não se reputa legítima a imposição de multa administrativa (de trânsito) a condutor que não usa cinto de segurança (art. 167, do Código de Trânsito Brasileiro), somente sendo exigível no caso de passageiro que não o utiliza (paternalismo estatal indireto).
[33] “En definitiva, creemos que existe un menor contenido de injusto en cuanto no se lesiona la autodeterminación do sujeto pasivo. (...) Y, si bien el consentimiento no puede constituir una causa de justificación, es de apreciar al menos la constatación por el legislador de 1995 de la diferencia valorativa esencial respecto del acto cometido contra la voluntad (lo que fue ignorado – con la justa desesperación de la doctrina científica – durante muchos años por la legislación derogada.” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 27). “Yo no creo que desde el plano constitucional se deduzca necesariamente la despenalización total sin más del homicídio, aún cuando el reconocimiento del consentimiento – particularmente en los supuestos eutanásicos que no puedan acompañar al homicídio consentido – pueda tener cabida en el ordenamiento jurídico penal. Tampoco creo que para superponer el derecho a al libertad, la autodeterminación y la dignidad del hombre al derecho a la vida, pueda tomarse como base sin más a la Constitución ya que, por lo que se refiere a la disponibilidad de la vida, el derecho a morir es una faceta negativa del derecho a la vida no contemplada por las funciones de garantía del art. 15 CE y que no implica que el legislador autorice o despenalice determinadas conductas, v.g. por consideraciones político criminales.” (NUÑEZ PAZ, Miguel Ángel. Reflexiones en torno a la Relevancia del Consentimiento del Sujeto Pasivo en el Artículo 143 del Código Penal. In: Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos in memorian. Vol. II, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, Cuenca, 2001, pgs. 447/448)
[34] CARNEIRO, Wálber Araújo. Escassez, Eficácia e Direitos Sociais: em busca de novos paradigmas. 2004, Projeto de Dissertação de Mestrado em Direito – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, p. 19.
[35] Neste sentido, Nuñez Paz (1999, p. 288): “não seria inconstitucional que a lei sancionasse as condutas daqueles que participem na morte de outro com seu consentimento, v.g., auxilio ao suicídio (castigado no artigo 409 CpA [Código penal espanhol anterior], hoje artigo 143 Cp), o que implica que a posição atual do código penal é não reconhecer que terceiros possam intervir em privações de vida alheia ou na ajuda à eutanásia, como tampouco o é que se rebaixe consideravelmente a pena ou inclusive se opte pela não apenação. Se devem estar proibidas estas condutas é decisão que corresponde ao legislador ordinário, pois a Constituição espanhola não se pronunciou a respeito; é dizer, o marco interpretativo da Constituição espanhola admite ambas as respostas.”
[36] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 40.
[37] Ante a ampla diversidade de significados que graça na doutrina, importa gizar que a expressão assinalada denota eutanásia consentida, diferentemente, por exemplo, do conceito de Claus Roxin (ROXIN, Claus et al. Eutanasia y Suicídio. Cuestiones Dogmáticas y de Política Criminal. Granada: Dezembro, 2001, p. 3) para quem “a eutanásia em sentido estrito existe quando a ajuda é subministrada depois de que o sucesso mortal haja começado, pelo qual a morte está próxima com ou sem tal ajuda.”
[38] Se o direito a viver não implica uma obrigação de viver pelo titular e se a omissão é efeito da manifestação válida da vontade daquele e um seu direito constitucional, enfim, há de convir-se que a eutanásia consentida por omissão é, em verdade, suicídio indireto e não subsiste um dever do garante de evitar o resultado morte; o contrario, existe um imperativo constitucional de inação (de respeito à autonomia).
[39] FÖPPEL, Gamil. Direito à Vida. Disponível em: < http://www.unifacs.br/revistajuridica/ediçãosetem- bro2004/docente/doc03.doc> Acesso em: 11.set. 2004, p. 20.
[40] Em não sendo pena em sentido formal-jurídico, decerto o é substancialmente; uma pena desumana, uma aflição profunda que confina a pessoa a seu próprio corpo. “Sou uma cabeça sem corpo,” dizia Ramón Sampedro (apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 35). Como conseqüência do ideário liberal clássico estribado em um Estado absenteísta, pelo individualismo e isonomia meramente formal, preconizou-se: quando a liberdade escraviza, a lei liberta. Diante de uma “humilhante escravidão” (http://www.eutanasia.ws/ramtest.html) da qual o homem já não pode se libertar por mão própria, quiçá se possa invocar que quando a vida escraviza, a morte liberta. Para realização humana se necessitará in casu de um interceder alheio, a concretizar, inclusive, o objetivo fundamental de se constituir uma sociedade solidária, parecendo inadmissível que contra aquela pena (a situação eutanásica) não se autorizasse uma defesa por outrem, mediante remédio heróico, para assegurar a efetividade da frustrada autodeterminação e a não perduração da desumana sobrevivência.
[41] ORDEIG, Enrique Gimbernat. Vida e Morte no Direito Penal. Barueri, São Paulo: Manole, 2004, p. 6. Em sentido convergente, Arthur Kaufmann: “(...) no cabe desconocer que un recurso excesivo a las técnicas médicas puede transformar la misión curativa del médico en el ‘terror de la humanidad’ o en ‘un crimen de lesa humanidad’, según apunta el teólogo Helmut Thielicke (5). La humanidad y la dignidadel hombre aparecen así en forma de ‘cabeza de Jano’; no se lesionan sólo cuando el médico realiza demasiado poco o prácticamente nada en pro de la conservación de la vida, sino que también pueden verse afectadas por el empleo excesivo de técnicas médicas.” (KAUFMANN, 1987, p. 41).
[42]Em síntese: “Com efeito, no estado de necessidade existe um conflito de interesses que exige uma ponderação. A regulação legal supõe a presença de um ‘mal’ que somente pode ser evitado mediante o ocasionamento de outro ‘mal’ jurídico-penalmente relevante, de tal forma que o mal causado não será maior que o que se trate de evitar (...). Estes males são expressão de interesses juridicamente apreciáveis. Assim, por uma parte, o direito da pessoa a dispor livremente de sua vida, o direito a não suportar tratos inumanos ou degradantes, o direito a uma morte digna; pela outra, o interesse jurídico de proteger a vida contra a vontade de seu titular” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 179-180).
[43] Art. 409 do Código Penal Espanhol antecedente: “El que prestare auxilio o induzca a otro para que se suicide, será castigado con la pena de prisión mayor, si se lo prestare hasta el punto de ejecutar el mismo la muerte será castigado con la pena de reclusión menor.”
[44] Daí porque se afirma que o princípio da insignificância tem o condão de “excluir” a tipicidade. Não se concebendo o Direito como um sistema fechado, um repositório de normas encontradiças em dispositivos nem como um dado que se apresenta ao sujeito cognoscente como coisa em si, mas que as normas são enunciados comunicativos construídos argumentativamente pelo intérprete a partir de pontos de um sistema aberto, melhor dizer-se-ia que, diante do fato “subtração de quantia insignificante,” incide uma norma que impede a sua consideração como típica já que o exercício do ius puniendi há de ser proporcionado, o que não ocorre neste caso.
[45] DELPÉRÉE, Francis. O direito à dignidade humana. In: Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Organizadores: Sérgio Resende de Barros e Fernando Aurélio Zilvete. São Paulo: Dialética, 1999, p. 152.
[46] Disponível em http://www.eutanasia.ws/ramtest.html.
[47] Mister se faz reiterar as palavras do autor: “não parece necessário insistir em que a configuração constitucional dos direitos e liberdades fundamentais, à medida que são expressão e concretização dos valores superiores do ordenamento jurídico, devem ser relevantes para o Direito penal. E, desde logo, devem conformar e incidir diretamente no juízo de antijuridicidade” (VALLE MUÑIZ, p. 181). Incumbe questionar se poderia o Estado considerar típica a conduta necessária à efetivação do fim para o qual foi constituído.
[48] GOMES, Luiz. Flávio. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos tribunais, 2003, p. 83.
[49] LIMA e SILVA, Wellinton César. Tipicidade Conglobante, palestra proferida na II Jornada de Direito Penal, 2004. Salvador: Prédio de Aulas 4, Universidade Salvador (UNIFACS).
[50] ZAFFARONI, E. R; PIERANGELI, J. H. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 529.
[51] BORGES, Roxana C. Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, analise constitucional e penal e direito comparado. In SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (coord.). Biodireito. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 283-305, 2001, p. 285.
[52] SILVESTRONI, Mariano H. Eutanasia y muerte piadosa: la relevancia del consentimiento de la víctima como eximente de la responsabilidad criminal. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal. Buenos Aires, v.5, f. 9ª, p. 557-573, set. 1999, p. 557.
[53] Fato, aliás, para o qual parece não ter atentado Arthur Kaufmann. Analisando a peculiar legislação alemã, a qual prevê a impunidade da participação ao suicídio e a punibilidade (atenuada) do homicídio a pedido, o autor faz referência a um “caso (real) de um homem que está irreversivelmente paralítico da cabeça para baixo,” considerando o caso “tãconsiderando o caso "(atenuada) do homicnça entre aquele que se dispara um tiro na cabeça e aquele outro que pede que se o dispo trágico porque o sujeito não se pode dar morte a si mesmo” (1987, p. 49). Cabe gizar que Ramón Sampedro, após 29 anos tetraplégico, suicidou-se ingerindo cianeto de potássio que lhe fora disponibilizado. Esta apreciação tem extrema relevância na Alemanha, como consignado, ressaltando-se, por derradeiro, que os casos que configurariam eutanásia ativa direta na modalidade homicídio são raríssimos, sendo exemplificado por Roxin: “isto pode ocorrer quando se tratar de uma pessoa completamente paralisada e ameaçada por uma morte por asfixia,” (2001, p. 35) que não poderia, pois, sequer ingerir referida substância.
[54] Conforme conceituado por Tomás-Valiente Lanuza, o paternalismo indireto consubstancia-se em que a proteção de um sujeito pode ser conseguida mediante a previsão de sanções jurídicas destinadas a terceiras pessoas. “Assim, atuariam por exemplo, as leis que criminalizaram o auxílio ao suicídio, o homicídio consentido ou o tráfico de drogas” (1999, p. 27).
[55] GARCÍA ARÁN, Mercedes. Eutanasia y disponbilidad de la propia vida. Revista Peruana de Ciencias Penales. Lima, f. 7/8, 749-780, 1999, p. 761.
[56] O conceito formulado por Bacon albergava, como exposto, a possibilidade de dar morte para evitar o prolongamento da situação. Diversamente, pois, da opinião de Roxana Brasileiro Borges para quem, “o primeiro sentido de euthanatos fazia referencia a facilitar o processo de morte, sem, entretanto, interferência nesta. (...) Ou seja, a eutanásia não visava à morte, mas a deixar que esta ocorresse da forma menos dolorosa possível. A intenção da eutanásia, em sua origem, não era causar a morte, mesmo que fosse para fazer cessar os sofrimentos da pessoa doente” (2001, p. 285)
[57] ASÚA, Luis Jiménez. Liberdade de Amar e Direito a Morrer: Tomo 2, Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 27.
[58] ROXIN, Claus et al. Eutanasia y Suicídio. Cuestiones Dogmáticas y de Política Criminal. Granada: Dezembro, 2001, p. XVII (prefácio).
[59] As barbaridades perpetradas sob cetro do regime nazista fizeram que os alemães evitassem o emprego do vocábulo “eutanásia”, utilizando-se geralmente a expressão ajuda a/no morrer. Em nota de tradução do texto “Relativización de la protección jurídica de la vida,” Jesús Maria Silva Sánchez assevera: “Pese a que Kaufmann se sirve reiteradamente del término ‘Sterbehilfe’ (ayuda a la muerte), lo traduzco por ‘eutanasia’, del mismo modo que si el término alemán es ‘Euthanasie’. Ello, por entender, que la palabra ‘eutanasia’ es la más expresiva en nuestra lengua. Además, sucede que el término ‘Sterbehilfe’ se emplea con frecuencia en Alemania para eludir las resonancias hitlerianas del ya mencionado ‘Euthanasie’” (KAUFMANN, 1987, p. 44).
[60] ROXIN, Claus. A Apreciação Jurídico Penal da Eutanásia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n.º 32, outubro-dezembro de 2000, p. 37/38.
[61] Arturo Zamora Jiménez, ao tratar da eutanásia solidária, rememora o soturno caso La mignonette: “Eutanásia solidária. Se puede definir como la muerte sin dolor de seres humanos con la finalidad de salvar la vida de otros seres humanos. En este sentido, podemos recordar aquellos típicos supuestos de estado de necesidad de los sobrevivientes de los Andes o del yate La mignonette en que se propició la muerte de uno (el que pasaba por un estado de inconsciencia y el más débil, respectivamente) para salvar la vida de otros. (...) El 5 de julio de 1884, el yate La mignonette había salido de Southampton, navegaba rumbo a Sidney (Australia). Se hundió durante una fuerte tormenta junto a las costas de Madeira. Varios náufragos consiguieron subir a un bote salvavidas. En él permanecieron durante veinte días, cuando llevaban ya ocho días sin comer y seis sin beber, el capitán Dudley, de acuerdo con el piloto Stephen, decidió (sic) matar al más débil de todos ellos, que estaba a punto de morir, el grumete Parker. Una vez muerto éste, se alimentaron de su carne y bebieron su sangre. De esta manera, sobrevivieron cuatro días más después de los hechos (la sentencia del Tribunal Inglés que los juzgó los condenó a la pena de muerte, que posteriormente, fue conmutada por la Reina de Gran Bretaña a una pena de privación de libertad de seis meses.” (JIMÉNEZ, Arturo Zamora. La Eutanasia y el Consentimiento en el Derecho Penal. In: Iter Criminis: Revista de Derecho y Ciencias Penales. México: Instituto Nacional de Ciencias Penales, fascículo 2, 1999, p151)
[62] Segundo Roxana Brasileiro Borges, eutanásia solidarística seria a que “visa a salvar a vida de outra pessoa” (BORGES, 2001, p. 288). Para Enrique Díaz-Aranda “a conduta do médico que não aplica ou interrompe o funcionamento dos meios extraordinários somente se desculpa quando ditos meios são empregados para salvar outra vida com melhor prognóstico (estado de necessidade exculpante), é dizer, quando o médico se encontra ante dois pacientes e somente conta com os meios para prolongar a vida de um deles,” (DÍAZ-ARANDA, 2002, p. 160) seria, a juízo do autor, caso de eutanásia passiva.
[63] DÍAZ-ARANDA, Enrique. Eutanasia: propuesta de solución jurídica en México. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais. Porto Alegre, v.3, f. 5, p. 157-165, 2002, p. 160.
[64] DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Eutanasia y derecho. Eguzkilore: cuaderno del Instituto Vasco de Criminología. San Sebastián, f. 9, p. 113-139, 1995, p. 115.
[65] Há quem afirme a existência de eutanásia autônoma que se diferenciaria do suicídio, porquanto este “consiste em privar-se a si mesmo da vida por qualquer motivo e em circunstâncias distintas da eutanásia,” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 58) todavia, restringindo-se o foco da questão à conduta do suicida eutanásico, tal distinção não se faz dotada de qualquer significância jurídica, assemelhando-se no que tange aos efeitos. No mesmo sentido e a este respeito, Gisele Mendes de Carvalho consigna que “esses mesmos doutrinadores [Carlos Maria Romeo Casabona e Luis Fernando Niño] admitem que a eutanásia perpetrada pelo próprio moribundo, do ponto de vista jurídico-penal, há de ser assimilada ao suicídio” (CARVALHO, 2001, p. 19).
[66] DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Eutanasia y derecho. Eguzkilore: Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología. San Sebastián, f. 9, p. 113-139, 1995, p. 114.
[67] Apesar de a ausência de manifestação válida de vontade não obstar a caracterização de uma conduta como eutanásia latu sensu, estando motivada pelo interesse do enfermo, tais casos, não se tratando de disponibilidade da vida pelo próprio titular, extravasam o alcance da análise aqui empreendida.
[68] Despiciendo sublinhar a ausência de regulação legal específica sobre a matéria, razão pela qual se alude a requisitos reputados como mínimos.
[69] MANTOVANI, Ferrando. Aspectos Jurídicos da Eutanásia. In Fascículos de Ciências Penais, v. 4, nº 4, outubro-dezembro de 1991, p. 42/43.
[70] Em estudo sobre a regulação da eutanásia na Holanda anteriormente a 2002, Carmen Tomás y Valiente Lanuza destaca: “Rasgo importante de la configuración de esta causa de justificación por parte del Tribunal Supremo – y uno de los más criticados por parte de la doctrina – es la manera en que su enfoque de la misma, al menos en las primeras sentencias, la convierte en gran medida en una cuestión propia de la Medicina, a pesar del rechazo de la ‘excepción médica.’ En efecto, en varias sentencias se refiere el Tribunal Supremo a los estándares de la ‘ética médica’ o a la ‘opinión médica objetiva’ como medidas con las que enjuiciar la presencia de una situación de necesidad en el caso concreto. Varios autores han criticado la jurisprudência en este punto, con los argumentos de que ni la ética médica es unánime respecto del problema de la eutanásia activa ni, aunque lo fuera, es ésta una cuestión exclusivamente médica, sino un problema de ética general cuyo debate se plantea a toda la sociedad. El hecho de que estas situaciones se den por su propia natureleza em el âmbito de la Medicina no quiere decir que sean sin más actos médicos, cuya práctica deba ser enjuiciada por las normas profesionales correspondientes, sino deben ser situados en un contexto ético y legal general.” (LANUZA, Carmen Tomás y Valiente. La Regulación de la Eutanasia en Holanda. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Tomo L, MCMCVII, Madrid, 2000, p. 307) Em 2002, a Holanda e a Bélgica editaram leis que descriminalizaram algumas hipóteses de eutanásia, mas – seguindo a orientação jurisprudencial antecedente, no caso da Holanda – sua disciplina jurídical somente se aplicaría aos médicos, conforme estudo de Nicolás Garcia Ríbas: “Se hubiera podido optar por una legalización que permitiera a cualquier persona auxiliar a otra para llevar a cabo la decisión de morir de esta última, pero el legislador ha obrado con precaución al circunscribir el ámbito de aplicación de la justificación al entorno médico-hospitalário, que desde luego no es el único en el que se practica la eutanasia, pero sí ofrece más garantías que ningún otro.” (GARCIA RIVAS, Nicolás. Despenalización de la eutanasia en la Unión Europea : autonomía e interés del paciente. In Revista penal, n. 11, Madrid, 2003, p.17)
[71] Neste sentido, Claus Roxin: “Possui maior importância prática o caso oposto, em que o anestésico não é ministrado ou o é em quantidade insuficiente, apesar de o moribundo o requerer de modo expresso. Também este comportamento consubstancia, em regra, lesões corporais, e através de omissão” (ROXIN, 2000, p. 13).
[72] JAKOBS Günther. Suicídio, Eutanásia Y Derecho Penal. Valencia, Espanha: Tirant Lo Blanch,1999, p. 39.
[73] Diversamente de Jakobs, entende-se que tais casos de rechaço podem configurar hipótese eutanásica (se houver uma situação de profundo sofrimento psíquico ou físico de difícil suportabilidade) ou não. Consideração esta que em nada impedirá afirmar que a eutanásia passiva consentida seja manifestação do direito de decidir sobre submeter-se ou não a determinado tratamento.
[74] Aqui, mais uma vez, Miguel Bajo Fernández enuncia crítica com precisão singular: “Entiendo que el suicídio sólo se produce en el caso en que el sujeto ‘tiene intención de morir.’ Para que exista suicídio es imprescindible que el sujeto dirija su voluntad a la producción de la muerte. Es este sentido, no hay voluntad suicida cuando el sujeto se pone en peligro grave de muerte con diversos fines desplegando médios, aunque sena mínimos, para conservar la vida. Por ejemplo, no es suicida quien participa en un duelo, ni el Testigo de Jehová que, sin desear su muerte, sino pretendiendo permanecer vivo, se niega a la transfusión de sangre consintiendo en la utilización de cualquier outro medio de asistencia que pueda evitar el resultado letal. Tampoco es suicida el soldado que realiza una actividad arriesgada en cumplimiento de sus deberes militares, ni el torero, ni el trapecista. Al igual que en estos casos, el Testigo de Jehová no es un suicida porque no quiere su propia muerte, tratándose más bien de una persona que quiere vivir, aunque no a toda costa, ni a cualquier precio, como tampoco es suicida la mujer católica que no quiere abortar prefiriendo correr los riesgos de muerte que auguran los médicos o quien se niega a la amputación del miembro canceroso. Esta actitud, ni sicológica ni jurídicamente, puede calificarse de suicida.”(BAJO FERNANDEZ, Miguel. Prolongación Artificial de la Vida y Trato Inhumano o Degradante. In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 51, p.709-740, 1993, p. 722/723)
[75] BORGES, Roxana C. Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, analise constitucional e penal e direito comparado. In SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (coord.). Biodireito. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 283-305, 2001, p. 290.
[76] Comunga desta opinião, Hans Hirsch: “a vontade do paciente livre, responsável e atualmente emitida de que se suprima o tratamento, se tem que considerar como expressão de autodeterminação e, portanto, a posição de garante, que resulta da assunção do tratamento, cessou.” (HIRSCH, 2000, p. 339). No mesmo sentido, Ferrando Mantovani: “Negar esse direto [de não se curar] e afirmar o dever jurídico de curar-se (dever que se situa no outro, indeterminado e incontido) é criar perigosa perspectiva de apossamento totalitário, não só ideológico, mas igualmente físico, do ser humano: de um sistema de imposições, de deveres e de controles que pode comprometer o inteiro modo de vida do sujeito em suas diversas manifestações (alimentação, vestuário, sexualidade, trabalho, fumo etc), que podem resvalar até uma abominável realidade. O direito, segundo o qual não pode o médico intervir sem o consentimento do paciente, assegura o poder de rejeitar a cura. (...) Por força do mais geral princípio personalístico do consentimento, expressamente previsto em lei (arts. 13 Const. It., e 1 L.n. 180/78 e 33 L.n. 833/78), qualquer intervenção em alguém deve fundar-se em seu consentimento (voluntas argroti suprema Lex); o dever do médico de curar encontra fundamento no prévio consentimento do paciente, que, de fato, pode recusar a cura; isso quer significar que, ocorrendo a recusa, cessa a obrigação jurídica do médico de curar e surge o dever de respeitar a vontade contrária. Se ao médico, ademais, não se atribui alguma omissão juridicamente relevante, não tendo sido mais chamado a curar, não pode a morte ser imputada a sua omissão” (MANTOVANI, Ferrando. Aspectos Jurídicos da Eutanásia. In Fascículos de Ciências Penais, v. 4, nº 4, outubro-dezembro de 1991, p. 37 e 42).
[77] José Henrique Pierangeli, concluindo pelo direito a rechaçar o tratamento assim afirma: “Conquanto sejam bem mais numerosos os casos de pessoas que sobrevivem a uma tentativa de suicídio, e que, portanto, não desejam a cura médica, mas sim a própria morte, hipóteses outras são noticiadas, como a de pessoa que se opõe a qualquer atividade médica por medo e a de adeptos de seitas religiosas, como a de Testemunhas de Jeová, que se opõem até mesmo a uma simples transfusão de sangue. O direito assegura ao seu titular o poder de disposição de um bem jurídico inerente à saúde e à liberdade individual, e, por conseqüência, é forçosa a conclusão de que ninguém pode ser compelido a submeter-se a um tratamento contra sua vontade, ainda quando esteja atingida por uma enfermidade grave”(PIERANGELI, 2001, p. 217-218).
[78] BAJO FERNANDEZ, Miguel. Prolongación Artificial de la Vida y Trato Inhumano o Degradante. In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 51, p.709-740, 1993, p. 719 e 721.
[79] BAJO FERNANDEZ, Miguel. Prolongación Artificial de la Vida y Trato Inhumano o Degradante. In Cuadernos de Politica Criminal. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, f. 51, p.709-740, 1993, p. 736. E também Arthur Kaufmann: “Todavía ha de se subrayarse que la desconexión de um reanimador por un médico o persona autorizada (no por un tercero) debe considerarse también como omisión de prosecución del tratamiento y no como homicidio activo. Estos casos deben, por ello, añadirse al círculo de problemas de la eutanásia pasiva” (KAUFMANN, 1987, p. 49).
[80] ROXIN, Claus et al. Eutanasia y Suicídio. Cuestiones Dogmáticas y de Política Criminal. Granada: Dezembro, 2001, p. 14/15.
[81] Luis Greco, traduzindo o artigo de Claus Roxin, anota que o BGH é o “Tribunal Federal competente para julgar questões de direito federal, equivalente a nosso Superior Tribunal de Justiça.”(2000, p. p. 12)
[82] ROXIN, Claus. A Apreciação Jurídico Penal da Eutanásia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n.º 32, outubro-dezembro de 2000, p. 15.
[83] Compartilhando esta opinião, Nicolás García Rivas: “naqueles casos nos quais o interesse primordial do autor é paliar a dor, mas sabe que necessariamente se reduzirá a vida do paciente (direto de segundo grau), estaríamos ante uma eutanásia indireta.” (RIVAS, 2001, p. 160)
[84] Por todos, cabe dizer com Hirsch: “A eutanásia indireta é admitida não somente na literatura médica, senão também na teologia moral. Chama a atenção que o Papa Pio XI, já no ano de 1957, declara teológico-moralmente admissível esta forma de eutanásia e, com referência a isto, disse: a facilitação de meios narcóticos provoca dois efeitos diferentes, por um lado, o alívio das dores e, por outro, o encurtamento da vida, então, é admissível. Mas nestes casos o Direito Penal não deve ser mais papista que o Papa .(HIRSCH, 2000, p. 335)
[85] É justamente a crítica tecida por García Arán, para quem caberia evocar o problema do dolo eventual, cotejando a posicionamento de Zulgadía Espinar de “negar o dolo de matar, enquanto que o fim do autor se encaminha a diminuir a dor.” (ARÁN, 1999, p. 767)
[86] Nesta quadra de entendimentos, manifesta-se Koch: “no que se refere à eutanásia indireta, não se discute no Direito alemão vigente, e quiçá tampouco nível internacional, que a mitigação de grandes sofrimentos e dores dos enfermos constitui também um dever médico ainda quando o emprego dos meios idôneos implique o risco de um certo encurtamento da vida ou, inclusive, este seja com segurança seu efeito secundário” (KOCH, Hans-Georg. Una muerte digna: derecho penal y eutanásia. Eguzkilore : cuaderno del Instituto Vasco de Criminologia. San Sebastián, f. 5 ext, p. 133-142, p. 138).
[87] Com clareza, expõe Luiz Flávio Gomes, a propósito: “se a conduta, apesar de formalmente típica era permitida, não há que se falar em criação de risco proibido. Conduta permitida (exemplo: intervenção cirúrgica não gera risco proibido (enquanto respeita todas as regras da medicina),” e concluindo que “o médico quando realiza uma intervenção médica curativa seguindo rigorosamente a lei da medicina cria riscos para o paciente, porém, riscos permitidos. Quem cria risco permitido não pratica nenhum fato típico.” (GOMES, 2004, p. 116) Decerto, estas observações são rigorosamente aplicáveis a intervenções paliativas, já que esta é também uma obrigação médica.
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