Object and desire in times of super exposure
Marcus André Vieira
Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP); professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio; mav@gbl.com.br
RESUMO
Interroga-se a tristeza a partir da retomada lacaniana da teorização do luto por Freud. Delimitam-se, a seguir, as bases de uma teoria lacaniana da perda, localizando a importância do objeto a e destacando-se sua função de causa do desejo. Situa-se a dor da perda em relação com a perda da função do objeto, causa do desejo, necessariamente vinculada à inacessibilidade do objeto. Aborda-se a contemporaneidade com a seguinte questão: é possível que o objeto tenha se tornado visível/acessível? Isto não implicaria em instabilidades radicais na estruturação do imaginário do corpo? Objeto e desejo em tempos de superexposição.
Palavras-chave: Lacan, psicanálise, depressão, luto, tristeza, objeto.
ABSTRACT
It is questioned the sadness from the Lacanian resume of the mourning theorization by Freud. It is determined, afterwards, the bases of a Lacanian theory of loss, pin pointing the importance of the object a, and setting apart its function of desire motive. It is found the pain of the loss in relation to the loss of function of the object motive of the desire. The contemporarily is approached in the following questions: Is it possible for the object to have become visible/accessible? Wouldn't that implicate in radical instability in the building of the imaginary body? Object and desire in times of super exposure.
Keywords: Lacan, psychoanalysis, mourning, depression, sadness, object.
Uma das características mais notáveis do aparato psíquico freudiano é que sua existência sempre foi presumida e nunca empiricamente constatada. Ninguém até hoje examinou uma pulsão ou mediu sua intensidade, por exemplo. Contradizendo tentativas recentes neste sentido — conferir um substrato neuronal ao inconsciente, sob a rubrica "neuropsicanálise" —, Freud já insistia desde o Projeto para uma psicologia científica que, por conta das características próprias de seu dispositivo, o aparato psíquico não tem existência no corpo. Ele o sintetiza da seguinte forma:
"...as idéias, os pensamentos e as estruturas psíquicas em geral nunca devem ser encarados como localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, mas antes, como se poderia dizer, entreeles, onde as resistências e os trilhamentos (Bahnungen) fornecem os correlativos correspondentes. Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interna e virtual é como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos. Temos justificativa para presumir a existência dos sistemas que não são, de modo algum, entidades psíquicas e nunca podem ser acessíveis à nossa percepção psíquica semelhantes às lentes do telescópio, que projetam a imagem." (FREUD, 1900/1974, p.649, grifo nosso)
O aparelho psíquico é uma invenção, uma criação conceitual de Freud para objetivar um novo discurso — não um novo objeto da ciência. Ele funda um novo campo, em vez de anexar um país ao atlas do conhecimento humano.
Lacan nos permite perceber não apenas que a psicanálise prescinde da busca de uma localização anatômica do inconsciente, como também que a crença em seu substrato orgânico atrapalha mais que ajuda. O analista não pode supor para o inconsciente uma existência prévia, de uma entidade biológica ou mesmo espiritual, pois senão, refém de conteúdos a priori, perderá o que de singular pode se apresentar em cada paciente. O inconsciente, como afirma Lacan, não é ontológico, não é prévio, mas sim ético, existe por uma decisão do analista (LACAN, J. 1988, p.37).
Podemos partir do princípio de que o inconsciente existe, por exemplo, porque se confia em seus mestres ou em seu aparelho de tomografia computadorizada. Mais cedo ou mais tarde, porém, nos deparamos, como analistas, com a certeza de que não há nenhuma garantia de que se curou, ou mesmo melhorou, a vida deste ou daquele a não ser pelos efeitos que apenas o paciente reconhece como analíticos. Isso é tão particular que não funciona como garantia científica ou mesmo, digamos, epidemiológica, da eficácia da psicanálise e de sua importância no mundo.
A existência do aparelho psíquico é garantida pelo fato de que a aposta de Freud produz efeitos. O inconsciente é uma aposta "mais" seus efeitos. Esses efeitos coletivos que se expandiram para a cultura é que sustentam e garantem a psicanálise. Nem todos, é verdade, mas alguns deles constituem o real que a mantém viva. Lacan purifica essa aposta ao aproximar o aparato psíquico de uma estrutura. Nesse sentido, o aparato psíquico é uma estrutura discursiva e, como tal, não envelhece, pois é uma grade de leitura.
É preciso apenas, para que um analista produza efeitos, que ele se apóie no espírito do tempo. É preciso que ele reconheça os sentidos, as significações, o que acontece na cultura, no campo do Outro, para ter uma ação sobre o real análoga à de Freud. Se os analistas não responderem a esse desafio, se em algum momento aquilo que fazem tornar-se realmente incompreensível, nessa hora pode ser que não haja mais como se fazer uma análise. Isso, sim, equivaleria ao desaparecimento do aparelho psíquico freudiano.
Estas considerações introdutórias podem ser de uso no trabalho com o que tem sido chamado de "novas subjetividades" para indicar a preeminência das toxicomanias, do par anorexia-bulimia, da depressão e do estresse, entre outros, na clínica do analista, hoje. Na psicanálise, mais ainda do que em outros campos, não podemos simplesmente considerar a presença de um novo objeto como o signo de um novo sujeito ou de um novo inconsciente, pois isso seria tomá-lo como um órgão, que é exatamente o que o faz desaparecer como tal — não mais uma lacuna, materializada no espaço de um lapso e sim algo supostamente prévio e sólido.
Por nos apoiarmos em uma aposta, somos continuamente chamados a renová-la e para isso é preciso recorrer ao discurso que a institui para reconfigurá-lo a partir do discurso ambiente, em vez de buscar complementá-lo com saberes pretensamente novos, novas "aquisições" da psicanálise. A cada novo paciente, nossa aposta se traduz em uma necessidade de demonstrar que podemos intervir a partir do que aprendemos com o que fizemos de psicanalítico com pacientes anteriores, incluindo aí o que teremos que efetuar de reformulações em nossa teoria. De maneira análoga, a cada novo registro subjetivo, a cada novo sintoma, somos obrigados a aceitar a hipótese de reconfigurar todo nosso campo para continuar trabalhando com a hipótese do inconsciente freudiano (como fez Lacan com relação à psicose, por exemplo).
Crendo ter-nos poupado, assim, da velha discussão sobre o envelhecimento da psicanálise, assim como da sedução das novas técnicas e novas clínicas. Gostaria, então, de examinar o estado atual de um velho sofrimento, a tristeza, de modo a destacar, naquilo que hoje tendemos mais e mais a denominar "depressão", a função do objeto. Discutindo a noção de "perda" do objeto, buscaremos delinear o modo como Lacan destaca seu papel na manutenção do desejo. Partindo dessa delimitação, poderemos interrogar alguns indícios quanto a mudanças no lugar do objeto na cena do desejo em nossos dias.
O REAL DO OBJETO
Parte-se, habitualmente, da perda como um fato, e Freud faz o mesmo em seu texto maior sobre a tristeza, "Luto e melancolia" (FREUD, 1915/1974, p.271). Em vários momentos de sua obra, porém, ele põe em xeque a premissa da unidade do eu como base fundamental a partir da qual se registrariam ganhos ou perdas (1914/1974, p.93). O eu é uma superfície dinâmica e tal como o continente freudiano não tem seus limites previamente fixados. O mesmo vale para o narcisismo e para a imagem do corpo. Dessa forma, a naturalidade da perda é colocada em questão, pois a unidade a partir da qual se define a perda não é a priori. Por isso, Freud insiste no luto como um trabalho e não como sofrimento reparador (1915/1974, p.276).
Retomando o esquema freudiano do luto a partir da leitura lacaniana, afirmaríamos, então, que Freud produz uma teoria explícita do luto, mas não da perda. Isso conduz Lacan a postular as bases do que poderíamos reunir sob a rubrica de uma teoria da perda e que passamos a delimitar (LACAN, 3/7/1963/2004).
O que se perde quando se perde alguém? Não perdi nesta ou naquela característica o ser amado. Não é porque minha mulher tinha aquele tom de cabelo ou de suavidade nas mãos que eu a amava. Por mais que faça a lista de seus atributos, sempre haverá um que resta a descrever. Por outro lado, cada elemento desta lista de atributos pode ser encontrado às dúzias no mundo. O que houve? Em uma primeira resposta, diremos que a morte levou consigo a possibilidade disso tudo estar reunido. Esta possibilidade acrescenta-se subtrativamente à série de traços, pois não é em si um atributo, mas pura suposição. Podemos então acrescentar à série de traços, este indizível a-mais. É exatamente este a-mais que se perdeu. Em outros termos: o que se perdeu é sempre impossível de se esgotar com uma nomeação.
Dois caminhos se delineiam a partir desse ponto:
Primeiro: pode-se conceber este "a-mais" como um ente esotérico, a alma da amada por exemplo, e imaginar que ela está preservada em algum outro lugar. Freud chega a elaborar uma cena quase mítica para criticar este criação fantasmagórica: imagina um homem primitivo que diante do cadáver de seu amigo, não podendo suportar a idéia de se confrontar com as tendências hostis que nutria com relação a este ente amado (N.B.: para não se deparar com algo que ele que não conseguia nomear), elabora a ficção da alma (FREUD, 1915/1974, p.331).
Uma segunda hipótese é a de que se suponha, com Freud, que o objeto, além de suas características evidentes, tem necessariamente algo de irrepresentável, a que Lacan dará vários nomes, sempre o aproximando do campo do real, dos quais reteremos um: o objeto a. Com isso, mais do que com tendências hostis minhas, tenho que me defrontar. Isso, então, que estava por trás de minha amada, não estava em nenhuma de suas características isoladas. Perdi, assim, um complexo de atributos que reunia vários traços significantes em torno de um "algo" real que possuía aquela mulher. Nela, havia se aninhado este algo a mais (em uma covinha, uma curva do corpo, por exemplo) que dela fez meu objeto de desejo. A diferença entre o cadáver e o corpo vivo, seria, então, justamente esse irrepresentável.
Como nem sempre temos à disposição a capacidade de acreditar em espíritos, como este a-mais não é tomado como uma alma esvoaçante e como deixei de ter a montagem que me fazia desejar e viver, estou diante de um problema. Aquilo que dava unidade aos traços, uma vez solto de seu envoltório, está solto.
Chego então à estranha conclusão de que ao perder o ser amado, encontro-me, talvez como nunca tenha experimentado antes, diante deste irrepresentável que parece se desprender do corpo, tornado cadáver. Descobre-se, então, a angústia provocada pela presença do objeto. Afinal, o "isso" que a mulher desejada tinha me remete ao "isso" em mim e à angustiante questão que pode ser formulada da seguinte maneira: "o que, em mim, me fazia desejar isso que nela era mais que ela?" (LACAN, 1964/1988, p.254). Pode-se corroborar, então, a paradoxal afirmação de Lacan de que no luto, trata-se menos de ausência e mais de presença — em vez de perda, encontro com o real do objeto do desejo (LACAN, 3/7/1963/2004).
As roupagens perderam o brilho e mostraram-se como são. Quando caem as roupas do objeto, encontramo-nos diante de uma nudez sem corpo e insuportável. Perde-se a possibilidade de sonhar com a amada e, ao mesmo tempo, fica-se assombrado com algo muito estranho no mais profundo do eu. Esta é uma das maneiras pelas quais Lacan retoma a célebre passagem de Freud sobre a "sombra do objeto (que) cai sobre o eu", algo que se exibe em sua subjetivação mais radical na melancolia (FREUD, 1915/1974, p.281).
Desta forma, a dor do luto vem da materialização, no eu, do encontro com algo que deveria estar oculto e não da perda como mutilação de uma unidade fundamental, ferida aberta na completude natural de um eu narcísico. Na escrita lacaniana diremos que este a-mais, o objeto a, encontra-se sempre envolvido por suas roupagens imaginárias, i(a), e que são elas que se desprenderam dele.
A metáfora energética segundo a qual, no luto, vai-se esvaziando progressivamente de libido os atributos do objeto perdido é perigosa. Não somente é incompleta, pois sabemos que novos laços se refazem permanentemente, como pode ocultar o caráter de angustiante encontro da perda. O importante é assinalar, com Freud, a primazia da vertente de trabalho do luto sobre seu aspecto de perda. Assinala-se, assim, o quanto este encontro remete a um trabalho e o quanto este trabalho tem dois vetores: construção e desconstrução. Por isso, falamos em trabalho do luto e não em "reparação", "compensação", "aceitar a perda", etc.
A DOR E A CAUSA
O esquema acima é apressado e redutor. Precisaríamos de muito tempo para percorrer seus desdobramentos e dificuldades. O essencial, no entanto, é localizar a importância do objeto a e destacar sua função, tal como designa Lacan, de causa do desejo. Ele mostra que a causa do desejo é sempre extrínseca a quaisquer explicações que pudermos fornecer sobre as motivações e tendências humanas.
Isso pode ser generalizado. A causa é aprisionada em uma rede de explicações, mas não se localiza nesta ou naquela teoria (cf. LACAN, 1962-1963/2004, p.343). Desta forma, estamos sempre em busca da causa, sem nunca encontrá-la em si, apenas conseguimos obter explicações. É preciso, no entanto, buscar a causa para descobrir algumas respostas. Assim começa uma análise. Só que — ao longo de um percurso de buscas e achados, em que algo se mostra e algo se esconde — acabamos com o desenho de alguma coisa que não está no jogo do mostra-esconde, do "procura e acha". Esta alguma coisa é nosso objeto a e a delimitação da cena em que ele será circunscrito é justamente o que terá que ser (re)construído em uma análise. Esta é uma maneira de situar o modo como realiza Freud com o Homem dos Lobos e que será teorizado de maneira conclusiva em seu Construções em análise (MILLER, 1997).
A importância do trabalho de construção da cena primária, ou de fantasia fundamental no dizer de Lacan, é o que nos permitirá situar um final para a análise fora do registro histérico em que ela se inicia, pois a manobra da histeria, com seu jogo de sedução, consiste em nos fazer crer que o objeto a está ao alcance da mão, que aquele impalpável a-mais existe, é representável e está em algum lugar sob o decote (MILLER, 1997).
No teatro do corpo, o jogo erótico se estabelece entre o que se mostra e o que se esconde, mas Freud nos ensina que a causa do desejo está fora dele, em algum lugar no negrume dos orifícios e que a ilusão da existência de um prazer perfeito é sustentada pelo próprio jogo. Desta forma, Lacan distinguirá o objeto a, tanto de sua apresentação imaginária, i(a), como de sua paradoxal encarnação como suposto-existente-apenas-oculto (que não deixa de ser uma representação, só que sempre vazia) e que Lacan denomina falo, -j (atenção: letra grega com sinal de menos) em sua álgebra. Dessa forma, ao colocar um véu sobre o que se aninha na zona erógena, a histérica oculta o objeto em seu aspecto real e o torna imaginarizado e desejável.
Entende-se por que a angústia será articulada por Lacan ao levantamento do véu, assim como o mesmo situa o fato que algo costuma impedir que, por uma circunstância inesperada, o véu seja levantado (cf. LACAN, 1962-1963/2004, p.32). Tomemos, como exemplo privilegiado de marca sintomática, a enxaqueca. A dor de cabeça, como clivagem entre afeto e representação, é produzida no ponto de falha do decote, levando a falas como: "adoro você, mas hoje estou com dor de cabeça" ou, ao contrário, "só não foi perfeito por causa da dor de cabeça". Outras variantes histéricas do fracasso do encontro, como, por exemplo, culpar o Outro pela falha, poderiam ser citadas, mas já basta para indicar que se quiséssemos imaginar a lua-de-mel da histérica seria preciso nos contentarmos com as preliminares.
Prosseguindo nesta tentativa de localização do objeto e do falo por analogia, podemos tentar situá-los na neurose obsessiva. A manobra do obsessivo é outra. Se a histérica joga com o decote, o obsessivo trabalha com o relógio. O obsessivo também acredita que o melhor existe, ele também parte da premissa do falo só que, para ele, o falo não está ao alcance da mão. Para se chegar ao falo, há que se submeter a toda uma série de provas, a uma ascese, um aprendizado árduo, longo e interminável. Um dia, comportando-se muito bem, pode-se chegar lá, mas para todos os efeitos esse dia não chega nunca. O falo se apresenta como impossível. O relógio encarna essa regulamentação dos passos, essa idéia de previsão universal. A sessão é cronometrada, o funcionamento é calculado, existe uma lógica que deve ser conhecida nos seus detalhes para que qualquer tipo de encontro se dê. Desta forma, ou bem o encontro é postergado indefinidamente, ou bem tudo acontece mais ou menos como o previsto e não há verdadeiramente encontro.
O obsessivo é, retomando nossa imagem, o anatomista. Conhece a boca da amada antes de aproximar-se dela. Ele sacrifica o infinito a que um beijo pode se abrir em troca da coleção de detalhes no caminho que leva até ele. O roteiro da lua-de-mel, para o obsessivo, inclui uma visita, meses antes, ao quarto, uma inspeção rigorosa para confirmar se tudo estará a contento, o que pode ser repetido horas antes, minutos antes e assim por diante. Seguem-se mil rituais, incluindo, eventualmente o próprio ato sexual, até que ela durma e ele diga: "acho que deu tudo certo". Vemos que, apesar do acontecido, é como se o sujeito não estivesse ali.
Darian Leader sintetiza a simetria entre a histérica e o obsessivo, que acabamos de delinear e que deve manter-se sempre precária, da seguinte forma: a histérica é alguém com quem volta e meia acontece alguma coisa; o obsessivo é uma coisa para quem volta e meia acontece alguém (cf. LEADER, 1998, p.69).
DO TEATRO
Não poderemos aqui demonstrar o que acabamos de avançar. Trata-se mais de um exercício, quase ficcional, de imaginarização dos conceitos em questão do que de uma demonstração. Ele nos serve de passagem para uma outra analogia. Passemos do teatro dos sexos ao teatro tout court, levando conosco, i (a), a, e -j, ou seja, o parceiro-objeto, o objeto a, e um certo jogo de mostra/esconde. Como situá-los? Partindo do pressuposto, válido, ao menos no teatro clássico, de que no palco está o que se vê e nos bastidores o que não se vê, podemos afirmar que o falo está entre palco e bastidores, onde se desenrola o jogo do mostra-esconde. Sabemos, porém, que isso não é tudo. O essencial não é o que estaria nos bastidores, na coxia, por baixo dos panos. Para nós, o essencial está numa certa articulação entre o que se vê, o que não se vê e aquele a-mais. Mas, onde estaria então o objeto a no teatro? Não está no palco nem tampouco nos bastidores. Poderíamos dizer que está numa espécie de tensão entre os dois. Isso no entanto, explicita-se bem melhor se, a partir de Lacan, situarmos o objeto no olhar do público.
Se não houver público, não há teatro. O jogo do mostra-esconde se sustenta porque alguém ou algo o observa. Podem haver objetos ocultos nos bastidores, mas o importante é o invisível e não o oculto. Esse olhar, porém, nunca será posto em cena sob pena de fazer ruir a representação, pois ele estrutura e mantém essa cena desde que nela não se inscreva.
Um dos caminhos explorados pelo teatro moderno é trazer os bastidores para a cena, tentar nos fazer cúmplices do diretor, do roteirista, enfim, fazer-nos crer que a verdade do teatro foi revelada. Isso se realiza, por exemplo, fazendo os atores entrarem em cena a partir da platéia. Não nos deixemos enganar por essa vertente histérica do teatro. Não é porque estamos em pleno jogo do mostra-esconde que estamos tocando o real do teatro. Os segredos são como o falo, se desdobram sempre um pouco mais além.
Apenas para prolongar o paralelo, como seria uma vertente mais obsessiva do teatro? Algo que se aproximaria mais de um teatro de marionetes, onde não há bastidores, apenas manipulados e manipuladores.
Com nossa pequena álgebra lacaniana podemos retomar as indicações de Freud sobre a zona erógena e entender como os furos do corpo funcionam como uma abertura para o infinito, como pontos de mistério, de pudor, de terror, mas também de gozo — algo que o saber anatômico, por exemplo, tende a esvaziar. Estes pontos podem ser muitas coisas: pintas, covinhas, umbigo etc. O que importa é que, uma vez a articulação com o infinito estando dada, eles funcionarão como ponto de atravessamento entre a morte e a vida e serão lugar de gozo (VIEIRA, 1999).
Desse modo, a ação (e o desejo) se desenrola em torno destes pontos cegos da cena erótica. Tudo acontece desde que o objeto em si permaneça invisível. É esse invisível que mantém tudo em funcionamento. Em sua vizinhança estará o prazer, assim como em seu desnudamento o horror (cf. LACAN, 1964/1988, p.169). A dor, o trauma e a angústia estarão em estreita relação com uma apresentação do objeto como separado do corpo, desaninhado. A tristeza, por outro lado, não está vinculada a uma perda na imagem narcísica mas à sua desestruturação (cf. VIEIRA, 2001, p.180).
A CENA DO DESEJO, HOJE
Um passo a mais. Se, do nosso ponto de vista, o essencial é essa tríade: palco-bastidores-público, podemos então nos perguntar o que aconteceria se esse olhar do público se tornasse visível, entrasse em cena, fosse para o palco? O século XX, esmerou-se em experimentar o que seria esta implosão da cena. Todos nós já assistimos a alguma peça na qual se tentou trazer o público para a cena. Não me refiro àqueles shows em que se chama alguém do público para subir ao palco. Isso é uma maneira de reforçar o lugar do público. Nestas situações rimos da estranheza de um elemento da platéia ter se tornado protagonista justamente para nos reconfortarmos com o fato de que continuamos ali, invisíveis espectadores... Quando falo em trazer o público para o interior da cena, no nível conceitual em que estamos, após termos destacado o objeto a, devemos entender uma subversão tal que nada fique em seu lugar, algo que só um Beckett dá a medida, com relação ao objeto voz, por exemplo, em Eu não (cf. REGNAULT, 2001, p.145).
Em termos gerais, se alteramos esse regime, essa articulação cena/bastidores, haverá o fim do desejo assinalado pela angústia. Se o objeto a vem à cena, ela tende a implodir porque é na invisibilidade do objeto que se sustenta o jogo do mostra-esconde. O cinemão norte-americano sabe disso e não põe nunca em cheque este estrutura tríplice da narrativa. É na cena que tudo acontece, que as maiores emoções se produzem. Desde Aristóteles, a identificação catártica com o herói supõe que tudo esteja em seu lugar e, sobretudo, que nosso lugar, de olhar que sustenta a cena, não apareça (cf. REGNAULT, 2001, p.79).
Mantendo-se as regras aristotélicas, o filme é eletrizante. Fica chato, fica "europeu", quando se tenta situar nos confins da cena, quando se tenta trazer o objeto a para a cena. Essa exploração dos limites do representável não ocorreu só no mundo do cinema e do teatro. Antes mesmo do termo "pós-modernidade" de Lyotard, o século XX esmerou-se em explorar o que aconteceria se rompêssemos com a estrutura básica da cena, não apenas da cena erótica, mas da estrutura básica da representação, explorando situações em que haveria, por exemplo na pintura, tela sem perspectiva, tela sem imagem, imagem sem tela e assim por diante. O mesmo na música e no teatro.
Essa interrogação sobre os limites da representação funda-se na hipótese da presentificação de um real sem imagem, irrompendo em plena tela e implodindo-a. Neste ponto assenta-se a valorização da idéia, de tonalidade budista, de uma irrealidade geral do mundo, que filmes como Matrix buscam traduzir.
Esta implosão da representação é retomada, pelos inúmeros participantes do debate de diversas formas, mas há um razoável consenso em reconhecer seu efeito de fragmentação e de platitude. A pós-modernidade é plana, sem profundidade (cf. ZIZEK, 2001, p.11-14).
A partir das considerações anteriores, podemos abordar a dita pós-modernidade em nossos termos, em lugar de meramente descrever as dificuldades de nosso dispositivo com aqueles que parecem ter expulsado nossos neuróticos "freudianos": os perversos, as anoréticas, os drogaditos etc. Em lugar de delimitar a falta que a forma tipicamente histérica do sintoma nos faz, é preciso mapear o deslocamento ocorrido nas relações sujeito-objeto que situe as novas formas do estilo histérico de lidar com o desejo do Outro.
Proponho que se coloque a questão da seguinte maneira: É possível que o objeto tenha se tornado visível? Isso implicaria em instabilidades radicais na estruturação do imaginário do corpo? Creio que desta forma retoma-se o debate sobre o contemporâneo em bases mais diretamente clínicas. Mantemos, assim, o foco sobre as incidências da fragmentação generalizada da cena, no âmbito da cena erótica.
O SEIO DE HOJE
Somos levados atualmente a admitir grandes perturbações na dinâmica cena-bastidores-público no que tange ao corpo. Temos corpos manipulados a tal ponto que o objeto parece ter saído de seus recônditos vindo a se materializar no exterior.
Tomemos um exemplo eloqüente a partir de um objeto clássico da psicanálise, o seio. Como, a partir do nosso esquema, poderíamos situar o objeto a com relação ao seio? Vamos pensá-lo como certo tônus. O seio teria determinada energia, uma firmeza viva difícil de apreender e que, no entanto, uma vez deixada de fora, faria dele ou bem uma estátua ou bem uma coisa indesejavelmente flácida. Haveria, assim, o seio que vemos, i(a), a imagem do seio ideal sempre ausente, (-j) ou em algum outro lugar (em um filme ou sob o decote de uma deusa) e, finalmente, este "tônus" real, a.
Ocorre que hoje há o silicone. Este tônus, que estava lá e que não podíamos ver, não podíamos pegar, agora se compra e se leva para casa. Não era para ser assim. Havíamos chegado à conclusão de que se o objeto viesse à cena, seria o fim de tudo.
Apóio-me aqui em uma tese fundamental sobre nossos dias, elaborada por Miller, em seu seminário O Outro que não existe e seus comitês de ética. Ali, Miller assinala uma nova articulação, uma mudança de prevalência ao colocar o ideal como submetido ao gozo do objeto. No nosso exemplo, isto se traduz como uma maneira de apresentação do objeto que é nova, não mais a partir do -j, não mais sob o brilho fálico, pois seria um contra-senso tomar o falo, essencialmente evanescente, como modo de abordagem de algo que pode ser comprado e acrescentado ao corpo. O seio era feito de um ideal (-j) que delimitava o acesso ao real do objeto i(a). Tínhamos acesso a a através de -j. Agora podemos supor que o ideal "vem de brinde" com a aquisição do objeto em vez de pautar nosso acesso a ele. Miller (1997) o escreve da seguinte maneira: I>a.
O importante é que esta tese nos ajuda a lidar com a proeminência do gozo em nossa civilização mantendo nossas referências em vez de sair afirmando que o gozo está desenfreado, que nossa civilização é a do gozo absoluto ou que o real está à solta, como se nossa civilização fosse mais real, por isso, mais violenta, ou ainda que o mundo está mais narcisista e que, em conseqüência, não se suporta mais as perdas e frustrações e todos estão mais violentos. Se assim fosse já não haveria mais civilização e apenas o caos.
NOSSOS DIAS
Uma maneira ligeiramente distinta de formular esta tese, e que vem complementá-la, é proposta por Jacques-Alain Miller em seu seminário anterior, A fuga do sentido. Ali afirma que o imaginário e o simbólico estão justapostos. Onde havia o imaginário como imagem ideal do falo, sempre ausente por obra do significante, agora se encontra uma imagem chapada, que se apresenta como se fosse real.
Deixem-me explicar.
Basta pensar em uma mulher ideal, na capa da Playboy. Essa imagem tem vida porque sou capaz de decompô-la em seus traços significantes. Posso imaginar que ali, no cantinho dos olhos, aparecerão amanhã pés de galinha, posso agir sobre o todo de sua bela imagem alterando aqui e ali. Justamente porque posso decompor a imagem, ela tem vida. O imaginário sem o simbólico é inerte, pura estátua. Dessa forma, se o simbólico está afogado pelo imaginário, termos imagens chapadas que, por essa razão, se apresentarão com uma fixidez real.
É preciso notar que o imaginário, aqui, opera de outra forma que no narcisismo freudiano, em que ele é regulado pelo falo. As mulheres não estão preocupadas em ser mais belas que a vizinha e sim em se tornar a imagem chapada de um objeto coletivo. É o que escrevo como i—a. Dessa forma temos que: quando I>a, então i-a, o objeto é imaginarizado de maneira rígida. O silicone não é o real em si, mas uma imagem fixa do real. A tese não é a de que o mundo está mais imaginário ou mais real, mas sim que imaginário e simbólico se apresentam como uma coisa só. A conseqüência é que as imagens "se chapam" e o objeto parece realmente ao alcance da mão.
Isto explica muita coisa, por exemplo, porque as guerras hoje parecem mais imaginárias do que reais. A Guerra do Golfo foi um marco nesse sentido. Quando o homem pousou na lua, no interior se dizia que tudo aquilo era 'invenção da televisão'. Podíamos rir porque é óbvio que era verdade. Alguém nos garantia que aquilo era verdade, havia uma ordem instituída, significantes-mestres. Hoje, acontece a guerra e é das coisas mais difíceis decidir o quanto consideramos verdade o que vemos.
Voltando ao silicone, podemos agora acrescentar que ele é o objeto a tornado mercadoria, tornado bem de consumo. Essa é a manobra, esse é o mínimo de "i" que, chapado sobre o objeto, nos protege do seu real angustiante. Não me encontro com o objeto em sua plena potência real, mas sim como o real tornado mercadoria. É mais ou menos o que acontece no caso do Viagra. Ali, é a potência do real do gozo tornado pílula. Não deixa de ser uma ficção, uma proteção, pois ali compartimentou-se, localizou-se o real. Como se vê, não estamos em tempos do gozo desenfreado, mas do gozo mercantilizado.
Da mesma forma o Prozac, a pílula da felicidade. Sim, a felicidade se compra, desde que em sua forma-mercadoria. Ora, a felicidade e a tristeza só existem em cena. A tristeza é uma dor em cena, que depende de toda uma montagem imaginária, especialmente da imagem do ser que perdeu alguma coisa. Não é como a angústia que parece perturbar toda a estrutura do teatro. A tristeza acontece na cena. A dor encenada, essa sim faz sofrer. O teatro, nesse ponto de vista, não é um lugar onde se produzem falsas tristezas para esquecermos as tristezas reais. A tristeza do teatro é mais real ou quase tão real quanto a tristeza da vida.
ANALISA-SE, HOJE?
Sem estender a discussão, inteiramente em aberto, sobre as mutações do Outro de nosso tempos, gostaria de concluir examinando suas incidências sobre o registro clínico da tristeza. Afinal, ela já não é mais a mesma. Mostra-se menos convincente e pessoal, adquirindo um registro de universalidade sem subjetividade assinalada pela generalização da depressão. A angústia, companheira habitual da tristeza, tem sua essência de sinal, recriação pontual de um perigo real, modificada. Ganha contornos expandidos e esmaecidos, no estresse, e abruptos e localizados, no pânico. O trauma, por sua vez, passa de algo localizado no passado a apresentar-se no cotidiano como lesão a ser reparada, tal como nos processos de reparação financeira dos danos causados por especialistas.
Registro, assim, duas mudanças essenciais. A primeira é a generalização da depressão. Aquilo que era bem localizado, conhecido, tocante, perde um pouco dessa força porque a estrutura da cena, em nossos dias, se perturbou. A cena já não está tão bem estruturada, logo, as emoções não serão tão tocantes. É o que se demonstra com a idéia da depressão generalizada, menos localizada e mais manipulável.
Com a angústia ocorre o inverso. A angústia, que era generalizada, não muito localizável, virou uma entidade, o estresse pós-traumático ou a síndrome do pânico. Operou-se então quase uma inversão: antes havia a angústia existencial e a tristeza, tocante, localizada. Hoje, vemos uma tristeza difícil de localizar, aparentemente meio artificial e a angústia recortada como ataque e passível de tratamento.
O que se perde aí é um enigma, que vamos ter que recriar sem fazer apelo ao ideal. A aposta é que há enigma porque há sempre uma distância entre a tristeza que se experimenta e o que se pode falar dela. É nessa distância que opera o analista. Entre os adolescentes, com seu discurso empobrecido, a metáfora universal e única hoje é "parada". Não é das mais metafóricas, mas continua tendo valor de metáfora. Isso só nos exige que sejamos menos repetitivos, que produzamos uma "parada" a mais.
E o analista? Está vedado a ele trabalhar como antigamente. Não lhe é possível decretar "Novos tempos? Estou fora". Afinal, todo seio, mesmo os naturais, está definitivamente marcado por uma artificialidade técnica. Não há como reintroduzir neste tipo de contexto, à força, o jogo histérico do decote. Se existe a possibilidade, mesmo que imaginária, de adquirir o objeto, em que recobri-lo com a suposição fálica de um melhor objeto em outro lugar desencadearia o desejo?
Por hora, vale a aposta de que mesmo nestes casos o objeto nunca está ali, real, ao menos não tanto como quando se apresenta na dor da perda de um ente querido. Ele mantém-se recoberto por um mínimo de aparato fantasístico, um mínimo de ficção (sem ela, como desejar?). Apostando na função da ficção como condição do desejo, o analista talvez possa orientar-se em meio às encarnações contemporâneas do objeto para poder suscitar sua inclusão da forma como a análise a concebe: nem como o falo perdido da histérica, nem como a série infinita de bens de consumo, nem como o demônio dos exorcistas atuais, nem como o medicamento que apaga a dor dos médicos, mas sim, em operação análoga à da construção freudiana, como ponto de fuga que dá nova perspectiva para a cena e redesenha um destino.
REFERÊNCIAS
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