terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Pileque homérico

Acordei confuso e assustado, sem saber ao certo que dia era, com a sensação esquisita de teto baixo, luz mortiça e cheiro de mofo. O desconforto da ressaca de uma festa que não valeu a pena, o constrangimento de ter esquecido como exatamente chegamos aqui. Torto como se o tempo houvesse esquentado, fervido, derretido e voltado a endurecer bem deformado. Um gosto estranho de 1988 na boca, déjà-vu tolo e cafona que nem por isso é menos letal. Quem diria em 2013 que a gente ia se dar tão mal?


Recapitulando: em poucas décadas haverá mais idosos do que jovens no Brasil. A hora de investir em educação e saúde é agora, para que o povo do futuro seja são e safo. Mesmo assim, o governo resolveu sustar por 20 anos os novos investimentos estatais. A mutilação já começou. Não haverá, por exemplo, novas bolsas de residência médica em 2017. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e a Agência Espacial Brasileira (AEB) foram subordinados a uma “Coordenação Geral de Serviços Postais e de Governança e Acompanhamento de Empresas Estatais e Entidades Vinculadas”, no quarto escalão de um novo ministério chamado MCTIC. Está sendo rapidamente desmontada no Brasil a rede de geração de conhecimentos e formação de pessoal altamente qualificado construída a duras penas desde os anos 1950. Esse verdadeiro cavalo de pau na qualificação do povo brasileiro deixará marcas profundas.
Sinal dos tempos desse porre cavalar da experiência humana, em toda parte o pessimismo impera. Donald Trump conquistou a presidência dos Estados Unidos isolado de quase todo o sistema de representação política, mas em contato direto com a massa furiosa que o elegeu. Escrupulosamente despido ao longo da campanha, despojado de todas as máscaras exceto a da intolerância, Trump usou e abusou da retórica de violência, discriminação e intimidação. Apesar disso – ou por causa disso – recebeu das urnas o poderosíssimo mandato de chefe do mundo. Lembrar que Trump será detentor por no mínimo quatro anos dos códigos nucleares dos Estados Unidos evoca um episódio sinistro de Black Mirror, um necrofilme de Tom Burton, um pesadelo em animação suspensa do século 21. Só nos resta torcer para que o líder novato seja mais playboy do que cowboy.
Mas nem tudo são espinhos nesse estranho novo tempo. Até no espesso retrocesso há brechas por onde brotam sementes do futuro. Em decisão histórica, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) posicionou-se claramente a favor da descriminalização da maconha. Ainda em novembro, oito estados americanos, inclusive a imensa Califórnia, aprovaram o uso medicinal ou recreativo da cannabis. A legalização e regulamentação da planta em todo o planeta tornou-se uma meta efetivamente possível, cada vez mais provável, necessária, urgente. Afinal, para curar esse pileque homérico do mundo será preciso flores. Muitas flores.
Este artigo foi publicado originalmente na edição de dezembro de Mente e Cérebro, disponível na Loja Segmento: http://bit.ly/2guA4d3 

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