sábado, 14 de março de 2015

O aprendiz de Stálin


Talvez nunca se saiba quem disparou o gatilho contra o opositor Boris Nemtsov, mas não há dúvida de quem carregou a arma: Vladimir Putin e seu discurso do ódio

RODRIGO TURRER

REAÇÃO Quase 60 mil pessoas se reuniram em Moscou para homenagear Boris Nemtsov (foto nos cartazes) (Foto: Yuri Kadobnov/AFP )
"Nemtsov é um traidor da pátria. Executem o traidor.” A frase hidrofóbica estava em um comentário de uma petição na internet pedindo a cassação do mandato de deputado local deBoris Nemtsov, líder opositor russo de 55 anos. Em sua página no Facebook, o deputado fez um chiste com a petição: “Eu não entendi uma coisa: estão coletando assinaturas para cassar meu mandato ou para me executar?”. No dia seguinte, o corpo de Nemtsov jazia sobre a Ponte Bolshoi Kamenni, a alguns metros do Kremlin, no centro de Moscou. Ele voltava para casa com a namorada, a ucraniana Ganna Douritska, quando foi atingido por quatro tiros nas costas.

Nemtsov foi a mais notória vítima de um discurso de ódio que inflama a Rússia e é alimentado pelo presidente do país, o autocrata Vladimir Putin. Desde seu retorno ao Kremlin como presidente, em 2012, Putin adotou um discurso de satanização de seus opositores. Ressuscitou o léxico dos expurgos stalinistas dos anos 1930. “Quinta coluna”, “traidores da nação” e “aliados do Ocidente” são os epítetos de Putin dirigidos à oposição. No fim de fevereiro, grupos de ultranacionalistas marcharam pelas ruas de Moscou com cartazes em defesa de Putin. Em alguns deles, era possível ler: “Estamos a sua disposição, major Putin, para acabar com os traidores da pátria”. Ainda não se sabe quem disparou o gatilho, e talvez nunca se saiba ao certo, mas não há dúvida de que Putin carregou a arma.

O assassinato de opositores não é uma novidade na era Putin. A lista é longa. Em outubro de 2006, um atirador matou a jornalista Anna Politkovskaya. Três semanas depois, dois ex-agentes da KGB envenenaram o opositor Alexander Litvinenko. Antes de morrer, agonizando no hospital, ele acusou Putin de ser o mandante do crime. Stanislav Markelov, um advogado defensor dos direitos humanos, e a jornalista Anastasia Baburova foram assassinados em 2009.
A morte de Nemtsov, no entanto, é o mais eminente assassinato político na Rússia em décadas. Face mais conhecida e carismática da oposição russa, Nemtsov, físico e matemático por formação, foi uma figura central na abertura da Rússia para o capitalismo nos anos 1990, depois do fim da União Soviética. Vice-primeiro-ministro durante a Presidência de Boris Yeltsin no fim da década de 1990, ele liderou as reformas econômicas no país e governou uma das maiores cidades russas, Nizhny Novgorod.
Quando Putin sucedeu a Yeltsin, Nemtsov fundou um partido de oposição e se elegeu para a Duma, o Parlamento russo. Passou então a fazer críticas consistentes – e persistentes – ao governo. No avanço autoritário dos últimos anos, quanto mais Putin se confundia com o Estado russo, mais apanhava de Nemtsov. Em 2010, o deputado foi preso sob a acusação de promover “atos extremistas” contra o regime. Em 2011, em entrevista a ÉPOCA, Nemtsov pareceu prever seu fim: “Estou na lista negra de Putin”.
Matar um opositor do regime seria um erro político. Ou um lance terrivelmente genial
Depois do assassinato, a indignação tomou conta de parte da Rússia. Antes de morrer, o deputado e a oposição russa haviam convocado uma marcha contra as agressões da Rússia à Ucrânia. O protesto se transformou em uma homenagem a Nemtsov e reuniu um contingente expressivo de quase 60 mil pessoas. Desde 2012, Putin restringiu as liberdades civis. Intensificou a perseguição aos opositores e passou a impedir manifestações públicas. Patrocinou também um discurso homofóbico e xenófobo. Tudo isso propiciou a ascensão de milícias ultranacionalistas pró-Putin. “O Kremlin criou um exército descoordenado de vingadores que acreditam agir no melhor interesse do país, sem receber instruções explícitas”, diz Maria Alexandrovna Gessen, jornalista russo-americana, militante da oposição a Putin.
O radicalismo dos ultranacionalistas é politicamente conveniente para Putin. A Rússia atravessa sua maior crise econômica dos últimos 15 anos. Com a queda dos preços do petróleo, o rublo desvalorizou-se 30% em um ano. Em 2014, os preços dos alimentos subiram 15,4%. Neste ano, a inflação pode chegar a 10%. Ex-major da KGB, Putin viu o desmoronamento soviético. Ele sabe como uma crise econômica pode precipitar quedas políticas. Sua saída foi a fuga para a frente: exacerbar o sentimento nacionalista e jogar a população contra os críticos.
Apesar da crise da economia russa, a popularidade de Putin continua acima dos 80%. Dias antes do assassinato,  Nemtsov e os demais russos ouviram de Putin que a culpa da crise era de Obama. A repressão à oposição, a maciça máquina de propaganda do regime, o fervor patriótico e a exploração por Putin de ressentimentos contra o Ocidente neutralizam as más notícias econômicas.
A estratégia de Putin tem riscos. Uma delas é que a exacerbação do ódio fuja ao controle do Kremlin. “Ao que tudo indica, ninguém no Kremlin ordenou a morte de Nemtsov.­ Essa é a razão pela qual esse assassinato marca o começo de um novo e assustador período na história da Rússia”, diz Maria Alexandrovna Gessen. Ela não isenta Putin de antemão, mas aponta o que parece óbvio: mandar matar um opositor tão proeminente seria um erro político bisonho.
Um erro bisonho... ou um movimento terrivelmente genial? Em 1934, Stálin mandou matar Sergei Kirov, líder bolchevique carismático. O ditador soviético usou o assassinato de Kirov como pretexto para desencadear um período de terror e expurgos. A Rússia – e o mundo – ainda se perguntam quanto de Stálin há em Putin. 

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