O Brasil ainda nem existia como país e já proliferavam o enriquecimento ilícito, o assalto ao patrimônio público e os favorecimentos indevidos
Corrupção financiou opulência no Brasil, como a vista em ilustração de Jean Baptiste Debret
Conforme a presidente Dilma Rousseff (PT) disse na última semana, a corrupção no Brasil é mesmo uma senhora idosa. Ainda que essa que hoje ocorre na Petrobras seja “uma mocinha”, conforme retrucou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Longe de isso eximir ou atenuar a culpa dos atuais corruptos, os casos de assalto ao patrimônio público estão documentados desde antes da República. Aliás, antes mesmo de o Brasil existir como País independente.
Desde os primórdios da exploração econômica na colônia, há registros de desvios e proveitos ilícitos envolvendo funcionários da Coroa portuguesa.
A corrupção envolvia favorecimento ao contrabando, mediante propinas, fraudes nas primeiras eleições, suborno, sonegação, favorecimento a aliados políticos.
Eram extraídos proveitos ilícitos desde as obras e serviços públicos até o tráfico de escravos, passando pela relação com a imprensa que nascia. O grande filão dos primeiros corruptos era a exploração do ouro. Mas até a hoje padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, foi alvo da ação fraudulenta.
Os casos mais escandalosos caiam na boca do povo e chegavam a virar chacota em versos populares. O hábito de transformar a roubalheira pública em piada também vem de longe.
PRÉ-HISTÓRIA DA CORRUPÇÃO BRASILEIRA
CONTRABANDO E PROPINA
No fim do século XVI, quando foi descoberta prata em Potosí, no alto da cordilheira dos Andes, na atual Bolívia, constituiu-se grande rota de contrabando de produtos e escravos, regada a gordas propinas. O caminho passava por Buenos Aires e Rio de Janeiro como entrepostos entre as minas e Angola – de onde vinham os negros escravizados. Nesse tempo, a União Ibérica deixou Portugal e Espanha sob o mesmo domínio, o que fez se diluírem as fronteiras entre as colônias sul-americanas. A linha de tráfico tinha os governadores na ponta de lança. A cadeia comercial enriqueceu as elites do Rio e de Buenos Aires.
FRAUDE ELEITORAL
Nos primórdios da colonização, havia eleições para representantes das câmaras. Só podiam votar proprietários de terras nas cidades. Mas, dava-se um jeitinho e acabava-se ampliando o colégio eleitoral, para garantir o direito a comerciantes e também donos de terra na zona rural. Por volta de 1624, chegou ao Rio de Janeiro o desembargador João de Sousa Cardenas. Tinha como alvo o inchaço na lista de eleitores. A limpa ameaçou o equilíbrio político carioca e pôs a elite política em polvorosa.
PRESSÃO, MONOPÓLIO E NEPOTISMO
Salvador Corrêa de Sá e Benevides ocupou alguns dos postos mais importantes do império português no século XVII. Mas, como membro da família Sá, sempre viu o Rio de Janeiro como feudo pessoal. Construiu riquezas por meio de um casamento no Paraguai, guerreou na África, participou das intrigas palacianas em Lisboa. Sem nunca tirar o olho do reduto local. Adepto do nepotismo, colocou tios, primos e filhos em todos os principais cargos da cidade. Foi acusado mais de uma vez de corrupção pela Câmara. Aliás, pressionou abertamente os membros para que lhe concedessem o monopólio da pesagem da Alfândega. Adquiriu também a concessão para erguer o armazém próximo. Teve assim o controle de toda a exportação. Alvo de revolta popular, chegou a ser preso, acusado de receber suborno de mercadores holandeses. Logo foi solto e, no fim do mesmo ano, reassumiu sua posição no importante conselho ultramarino do império português.
ASSASSINATO E LUCRO
O bandeirante Manuel da Borba Gato era acusado de assassinato de dom Rodrigo Castelo Branco, técnico castelhano enviado pela Coroa portuguesa ao Brasil na tentativa de encontrar ouro. Por essa razão, permaneceu 16 anos escondido nas matas e se tornou um dos maiores conhecedores das regiões de minas. O governador da Repartição Sul do Brasil, Artur de Sá e Meneses, soube que Borba Gato poderia levá-lo ao ouro. O bandeirante se comprometeu a mostrar onde havia metal precioso e recebeu o perdão pelo “suposto e imaginado crime”. Seria parte da longa tradição de perdão a criminosos que davam lucro ao governo.
FAVORECIMENTO
A relação entre Artur de Sá e Meneses e Borba Gato ainda renderia. O governador da Repartição Sul do Brasil tinha fama de corrupto. Em 1698, pretendia abrir caminho para ligar o Rio de Janeiro à recém-descoberta região das Minas de Ouro, atual Minas Gerais. O paulista Amador Bueno da Veiga fez uma proposta, recusada por ser considerada muito cara. Foi aceita, porém, a proposta apresentada por Garcia Rodrigues Pais Leme, filho do bandeirante Fernão Dias e cunhado de Borba Gato. Garcia Rodrigues tinha fama de sonegador e falso descobridor de lavras de ouro. Sá e Meneses justificou ao rei a preferência ao afirmar que Rodrigues se portara “com todo zelo e desinteresse”. Na verdade, a proposta foi mais cara. Acontece que o governador era praticamente sócio de Borba Gato. A estrada foi inaugurada incompleta em 1702. Só seria concluída em 1725, já com outros construtores. Mesmo assim, Garcia Rodrigues obteve da Coroa exclusividade na taxação sobre os negócios feitos pela rota e na exploração das travessias de rios em canoas. Foi nomeado ainda para diversos postos civis e militares e conquistou o título de fidalgo para os descendentes. Como recompensa, o governador recebeu de Borba Gato – encarregado por distribuir os pontos de exploração de ouro – algumas das melhores reservas. Em cinco anos, juntou 440 quilos do minério.
DESVIOS
O historiador Francisco Adolfo de Varnhagem, em História Geral do Brasil, estimou em cerca de 40% o volume de ouro desviado de forma ilegal do Brasil.
IMPRENSA E PODER
O primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense original, inaugurou também as relações promíscuas entre imprensa e governo. Era publicado em Londres para fugir da censura. Defendia a liberdade de expressão e ideias liberais. Mas, por acordo secreto, era subsidiado pela coroa portuguesa. Dom João ajudava financeiramente a publicação e garantia a compra de certo número de exemplares, como forma de evitar a radicalização das opiniões. O criador, Hipólito da Costa, passou a receber pensão anual do governo. Quando veio a independência, o Correio foi contra. Depois, porém, foi nomeado pelo imperador dom Pedro I agente diplomático do Brasil em Londres. Cargo que lhe garantia nova pensão estatal.
GESTÃO TEMERÁRIA
Quando a família real chegou ao Brasil, em 1808, foi criado o primeiro Banco do Brasil. Foi exemplo do compadrio instituído entre a Corte e a casta de privilegiados fazendeiros, negociantes e traficantes de escravos. Em uma década, o banco estava quebrado. Cerca de 80% correspondiam a dinheiro “podre”, sem lastro. Reflexo da prática de emprestar, sem garantias, a políticos, nobres e fazendeiros quebrados. E 90% dos saques eram feitos pela realeza. Quando a família real retornou a Lisboa, em 1821, raspou o que restava de precioso nos cofres. Em 1829, o banco foi liquidado. Seria recriado em 1853.
“CAIXINHA”
Durante a permanência de dom João no Brasil, difundiu-se a prática do pagamento de “caixinha” nas concorrências e remuneração por serviços públicos. Estima-se que era cobrada comissão de 17% para que os pagamentos públicos fossem realizados a quem prestava alguma forma de serviço estatal. Se não, os processos não andavam e os pagamentos não saiam. “a corrupção medrava escandalosa”, narrou o historiador Oliveira Lima.
ENRIQUECIMENTO
ILÍCITO
Joaquim José de Azevedo foi o administrador das áreas de compras e dos estoques da casa real enquanto a Corte permaneceu no Brasil. Enriqueceu tão rápido e ficou com imagem tão atrelada à corrupção que foi impedido de desembarcar em Lisboa em 1821.
CRIME E RECOMPENSA
Bento Maria Targini era o comandante do erário real. De família de origem pobre, ganhou espaços. Passou a acumular poder e honrarias. E dinheiro. Ao final do período de dom João VI no Brasil, tinha uma das maiores casas do Rio de Janeiro. Chegou a ser preso e ter bens confiscados. Como Joaquim José de Azevedo, foi proibido de retornar a Portugal. Mas continuou a levar confortável vida no Brasil. E, também como ocorreu com Azevedo, ganhou título de barão e, a seguir, de visconde. O que motivou versos populares, reflexo da verve carioca: “Quem furta pouco é ladrão/Quem furta muito é barão/Quem mais furta e esconde/Passa de barão a visconde”.
NEM A SANTA ESCAPA
Nem a padroeira do Brasil escapou da corrupção. Entre a colônia e o Império, a devoção a Nossa Senhora Aparecida foi explorada e doações foram surrupiadas. Durante o Império, padres foram afastados pela Corte e civis foram nomeados para comandar a diocese e usufruir de poder político. Um dos mais vorazes foi Jerônimo Francisco Guimarães, que acumulou cargos de prefeito, esmoleiro — responsável por receber as doações — e administrador dos bens da diocese. Era famoso por desviar a arrecadação destinada à santa. Começou a operar no período colonial e só foi demitido no Império, por dom Pedro I. Mas a corrupção não parou. A rotatividade na tesouraria da diocese era enorme, fruto de indicações políticas. Sobre um deles, Antônio Theodósio, dizia-se roubar até a cera das velas que romeiros acendiam. Antes um humilde professor, deixou o cargo bastante rico. E houve ainda Joaquim Carlos Fragoso, que usou dinheiro dos fiéis para construir encanamentos que desviavam água da igreja.
REFERÊNCIAS
1565 – ENQUANTO O BRASIL NASCIA, DE PEDRO DORIA, 2012, EDITORA
NOVA FRONTEIRA
BOA VENTURA!, DE LUCAS FIGUEIREDO, 2011,
EDITORA RECORD
1808, DE LAURENTINO GOMES, 2007, EDITORA PLANETA
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