José Augusto Lindgren Alves
é embaixador do Brasil em Sarajevo e membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (Cerd) da ONU.
RESUMO
Os direitos humanos se encontram em fase de evidente desprestígio. Os motivos do descrédito não são apenas as violações que prosseguem, nem distorções decorrentes de valores não ocidentais. São também, e sobretudo, sua extensão conceitual exagerada, promovida pela esquerda culturalista pós-moderna, assim como a repetição inercial de ações e posturas, hoje anacrônicas, inerentes ao sistema de proteção internacional existente. Para recuperá-los em sentido construtivo é necessário voltar à Declaração Universal de 1948, atualizar o discurso originalmente construído contra ditaduras e readaptar o sistema à situação das democracias atuais ameaçadas.
Palavras-chave: Direitos humanos; Universalismo; Particularismo; Culturas; Direitos coletivos; Criminalidade.
ABSTRACT
Human rights are now in an evident lackluster phase. Causes of disbelief in them are not only their continuing violations, nor distortions that stem from non-Western values. First and foremost, they involve an exaggerated conceptual extension of those rights, promoted by the post-modern cultural Left, as well as the endless repetition of today anachronistic forms of action and positions inherent to the existing international protection system. In order to recuperate human rights on a constructive direction it is necessary to return to the Universal Declaration, of 1948, to update Lua Nova, São Paulo, 86: 253-260, 2012 255 Resumos / Abstracts a discourse that was originally built against dictatorships, and to re-adapt the whole system to the situation of present democracies under threat.
Keywords: Human rights; universalism; particularities; cultures;
collective rights; criminality.
collective rights; criminality.
Direitos-do-homismo? Virou um apelido. [...] A desgraça que atinge no presente qualquer coerência doutrinária tem acentuado a tendência e levado cada um a rotular seu adversário com esse signo de execração: soberanismo, diz um, direitos-do-homismo, replica o outro.
Régis Debray (2009)
Depois de haverem funcionado, no final do século XX, como última utopia secular universalista, capaz de mobilizar sociedades de todo o mundo, os direitos humanos parecem ter entrado em fase de descrédito. A perda de popularidade da própria expressão linguística pode ser notada em sua posição secundária nos programas políticos atuais, meramente episódica nos noticiários e artigos de imprensa, se comparada ao relevo obrigatório, prioritário e ubíquo, de poucos anos atrás. Mais constrangedora é, porém, a reação automática de desconforto ou decepção das pessoas comuns de boa fé quando hoje lhes dizemos que, de uma maneira ou de outra, somos ainda atuantes na matéria.
É provável que essa minha observação escape a ativistas, sobretudo mais novos, diretamente dedicados à promoção dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Pode ser até que os revolte. Eu próprio, calejado pela experiência de mais de trinta anos dedicados ao tema, agora me irrito com a necessidade de explicitar o que venho fazendo nesse campo, para ser levado a sério. Antes, o difícil era vencer os preconceitos "nacionalistas" associados à noção de soberania. Hoje, o mais difícil é explicar que os direitos humanos não são tudo aquilo que tem sido feito em seu nome, muitas vezes para atacar o Estado de forma leviana.
Exatamente por isso, porque me ressinto da ampla incompreensão corrente sobre o que são realmente os direitos de todos os seres humanos, reconhecidos internacionalmente desde 1948, e de seu consequente descrédito, tento esboçar aqui, segundo minha percepção, algumas das principais razões que os têm desgastado. Elas são menos óbvias do que um observador desatento imagina. Não podem, sobretudo, ser abordadas de maneira maniqueísta, como se todos aqueles que criticam o tratamento atual dos direitos humanos, no exterior e no Brasil, fossem contrários a eles.
Sintomas e fatores do descrédito
Falar das violações maciças que continuam a ocorrer não justifica a atual descrença no conceito dos direitos humanos, internacionalmente estabelecidos na Declaração Universal de 1948. Falar de continuação e ressurgimento de muitos regimes arbitrários, seculares ou teocráticos, impérvios a pressões e críticas, tampouco constitui novidade. Os casos contemporâneos de atrocidades, suplícios, intolerância e estigmatização de grupos, juntamente com a impunidade de violadores contumazes, longe de representarem fator de arrefecimento, deveriam, ao contrário, fortalecer o empenho na já sexagenária luta pelos direitos universais.
Terrorismo? Guerra ao terror? Invasões militares por motivos infundados? Não se pode dizer com certeza se são causa ou efeito do descrédito. Mais pertinente seria assinalar a desatenção metódica com que os direitos humanos têm sido tratados ou descartados - por governos democráticos de países desenvolvidos, especialmente em medidas de repressão e prevenção a possíveis atos terroristas.
É claro que as democracias também precisam defender-se e defender as respectivas populações. Esta segunda obrigação é, aliás, como explica a teoria política desde Hobbes, a razão intrínseca da própria existência do Estado. A defesa não pode, porém, legalmente, ser exercida pela via da violência arbitrária, dirigida a indivíduos caracterizados pelo pertencimento a uma coletividade determinada. Tal violência representa a anulação prática de tudo o que se construiu dentro do direito para proteger os direitos e liberdades fundamentais de todos. Por mais que os Estados, democráticos ou não, precisem agir contra o crime e o terror para a proteção da ordem imprescindível à convivência e ao próprio usufruto dos direitos, as ações de prevenção e repressão têm regras mínimas. Elas se acham estabelecidas nas chamadas "três vertentes do Direito Internacional dos Direitos Humanos": as convenções de Genebra sobre o direito na guerra e sobre os refugiados e os pactos e convenções decorrentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Abusos deliberados contra uma categoria específica, social ou étnica, de pessoas vão contra todo o sistema normativo. Constituem uma forma de desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados. Correspondem, por outras vias e ideologias, à denegação daquilo que Hannah Arendt chamou "direito de ter direitos" (Arendt, 1973, p.296-7), à reconsagração mais visível do homo sacer do direito romano arcaico recordado por Giorgio Agambem (1997), ao endosso mais autodestrutivo da ideia de conflito de civilizações, que Samuel Huntington (1993, 1996) disseminou, por mais que pretendesse evitar.
Assim como as ações e operações arbitrárias tendem a violar direitos fundamentais, igualmente grave, e certamente ainda mais daninha, é a atitude despiciente com que sociedades e Estados variados, do Ocidente e do Oriente, vêm encarando as críticas, nacionais e internacionais, às violações por eles praticadas. Conforme observa Slavoj Zizek:
Uma década atrás, a legitimação da tortura ou a participação de partidos neofascistas em qualquer governo da Europa Ocidental seria descartada como um desastre ético que "nunca poderia ocorrer"; uma vez ocorrida, imediatamente nos acostumamos à nova situação, aceitando-a como óbvia (Zizek, 2010, p.329).
De fato, seria inimaginável, senão há dez anos, na primeira metade da década de 1990, a rapidez com que o mundo assimilou a tortura de muçulmanos suspeitos de terrorismo, assim como a reação superficial dos Estados responsáveis diante do clamor inicial contra ela. Pior, assimilou fingindo esquecer que ela continua, tendo sido legalizada, em alguns Estados, por expedientes dúbios. Contudo, também nesses casos, poder-se-á indagar se a atual desatenção "democrática" com os direitos humanos é causa, consequência ou sintoma do descrédito. Acredito que seja tudo isso.
Há, como se sabe, fatores profundos, estruturais, radicados na esfera econômica, que, para a esquerda, afetam a credibilidade dos direitos humanos desde, pelo menos, meados do século XIX. Alguns, agora agravados e identificados nas malhas da globalização contemporânea, são denunciados em diversas instâncias e em manifestações de rua, às vezes violentas. Outros, sutis porque plurivalentes, relacionados à noção de pós-modernidade, oriunda da esfera acadêmica e refletida em formas de militância particularistas, permanecem pouco abordados. Talvez porque esses fatores sejam apresentados como posições de esquerda; talvez porque contradigam a ideologia da negação das ideologias; talvez, mais provavelmente, porque desagradem ao discurso multiculturalista, o fato é que esses fatores são vistos e comentados em análises variadas, sem repercussão que se note entre a militância1. Afinal, o multiculturalismo pós-moderno, essencialista, permeia atualmente todo o discurso dos direitos humanos, inclusive no Secretariado da ONU e entre peritos dos órgãos de tratados2. Ao invés de assumir e integrar as contribuições das diversas comunidades para a formação de conjuntos abrangentes, o mais notável dos quais é a sociedade nacional classista, esse multiculturalismo hegemônico, de origem anglo-saxã, proponente do mosaico de culturas - inaplicável
no Brasil -, acentua as diferenças, alimentando o narcisismo grupal e condenando as misturas.
no Brasil -, acentua as diferenças, alimentando o narcisismo grupal e condenando as misturas.
Posições de esquerda e de direita
Aqui caberia explicitar, desde logo, uma questão despercebida de quem se apega a chavões. Na medida em que os direitos humanos sempre foram considerados pelo marxismo clássico uma invenção da burguesia para legitimar a exploração do trabalho, o que é que a esquerda atual, tão pouco influente no cenário de poder contemporâneo, tem a ver com o crédito ou descrédito do conceito? A resposta poderia ser: quase tudo! Pois os direitos humanos postulados pela ONU sempre foram de esquerda, e não apenas porque os "liberais" nos Estados Unidos e na Inglaterra correspondem à esquerda de seu espectro político. Se, por um lado, foi a supremacia do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, na versão capitalista liberal com alguns aportes socialistas, que se impôs na elaboração da Declaração Universal de 1948, foi, por outro lado, a aliança da esquerda não institucional com a social democracia que garantiu quase unanimidade ao conceito de direitos humanos universais como arma contra os autoritarismos.
Como observava Bobbio, na década de 1990, quando se dizia que não havia mais direita e esquerda na política, essas duas posições são relativas. Não correspondem a conceitos ontológicos (Bobbio, 1994, p.91). Ele lembrava que a esquerda é, ou era, igualitária, porque via a maior parte das desigualdades que degradam o ser humano como sociais, logo elimináveis. A direita é anti-igualitária, entendendo as desigualdades como naturais, logo não elimináveis. Em suas palavras comedidas, "a direita está mais disposta a aceitar aquilo que é natural e aquilo que é a segunda natureza, ou seja, o habitual, a tradição, a força do passado" (Bobbio, 1994, p.105-6) - frase que definiria hoje as postulações pós-modernas, apresentadas como "progressistas". Eu digo mais, com referência ao tema aqui em pauta: a direita, particularista por definição na esfera de valores, atualmente concentrada na liberdade de mercados, nunca defendeu os direitos humanos. Até porque foi contra ela que tais direitos vieram a ser concebidos.
Curiosamente, hoje, anti-igualitária é a esquerda, ou, melhor, uma esquerda, que se propõe vanguarda da pós-modernidade. A direita segue suas posições habituais de menosprezo pelos outros. Do novo relativismo de uma esquerda que se assume antiuniversalista, em nome do direito à diferença, os estragos à causa dos direitos humanos são enormes. Na teoria, porque suas propostas culturalistas parecem ir contra a ideia de direitos fundamentais e inerentes de todos os seres humanos; na prática, por causa da munição que suas posições, esperadamente construtivas para certos grupos em certas áreas, fornecem a violadores contumazes, em outras.
É importante não esquecer que, quando os direitos humanos foram encampados pela esquerda libertária, malgrado a crítica de Marx, o contexto era muito diferente do de hoje. Como recorda Marcel Gauchet (2002), na Europa Ocidental dos anos 1970 e 80, essa "criação burguesa" ressurgiu revalidada a Leste pelos dissidentes nos regimes stalinistas, sendo absorvida como resposta ao totalitarismo. No mesmo embalo dessa época e com maior consequência, os direitos humanos constituíram a base comum emancipatória, de mobilização contracultural dentro do Ocidente, inspirando o feminismo igualitário e a não discriminação por gênero, raça e etnia (neste último caso, em defesa dos imigrantes, particularmente os muçulmanos, na Europa) (Gauchet, 2002).
Já tendo sido brandidos com eficiência contra o colonizador europeu pelos líderes afro-asiáticos das lutas pela independência - todos os quais, com exceção do rei Faiçal, saudita, eram modernizantes em sentido iluminista - e utilizados contra os regimes stalinistas da Europa Oriental, na América Latina os direitos humanos serviram como instrumento de resistência às ditaduras, inclusive na defesa daqueles que haviam recorrido à luta armada. Serviram, também, como base para reivindicações sociais respaldadas nos ideais de justiça, igualdade racial, elevação do status da mulher e liberalização de costumes. Foi dessa forma, unindo as esquerdas, o centro e os liberais, contra opressões e repressões de todo tipo e em defesa de um ordenamento internacional e social mais justo, que, uma vez concretizado o fim do comunismo, os direitos humanos se afirmaram como tema global na década de 1990. E foi com sentido igualitário que essa criação da Modernidade mereceu o consenso planetário da Conferência de Viena de 19933.
O problema, agora, é o excesso. Estando os direitos humanos da Declaração Universal de 1948 amplamente reconhecidos e regulados, uma parte dos militantes autoproclamados de esquerda continua a usar os direitos como base para tudo, ainda que para isso seja necessário distorcê-los. Propõe, em nome dos direitos de minorias, uma gama de obrigações particularizadas que quase nenhum Estado tem condições de cumprir4. Define práticas de denúncias e incremento de penas para alguns crimes, desacompanhadas de medidas que ataquem as causas profundas e assegurem consistência no campo social5. Estende conceitos contemporâneos a obras, episódios e contextos em que se tornam absurdos6. Associa-se às forças tradicionalistas mais reacionárias de grupos específicos no contexto do anti-imperialismo7. Faz vista grossa para práticas tradicionais atentatórias aos direitos humanos porque inerentes às respectivas etnias8. Em resumo: por conta do "direito à diferença", substitui a política universalista abrangente por campanhas em prol de objetivos etnoculturais enquadradas naquilo que Badiou denomina "logomaquia dos direitos humanos" (Badiou, 2009, p.143). A satisfação dos "culturalistas", de qualquer forma, é impossível, na medida em que novas comunidades de identificação com novas diferenças são incessantemente criadas, outras susceptibilidades afloram, os crimes e violações continuam, e múltiplas exigências se agregam continuamente9.
Os motivos da impopularidade atual dos direitos humanos são assim, menos aqueles habitualmente apontados no sistema internacional de proteção - seletividade das denúncias, politização dos mecanismos, inobservância das obrigações assumidas ou concessão de prioridade aos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos e sociais - do que os exageros de sua culturalização semântica, a que se somam absurdos do "politicamente correto", e, por outro lado, distorções inerciais intrínsecas à prática de sua defesa.
A ideia do politicamente correto
De todos os modismos existentes entre militantes, governos, organizações internacionais e ONGs, o mais nefasto para a ideia dos direitos humanos tem sido o do "politicamente correto", copiado dos Estados Unidos e amplamente popularizado somente pela repercussão negativa de seus exageros. Não obstante, antes de generalizar-se como modismo, a atenção com a correção social da linguagem e das práticas não era só isso. Tinha caráter substantivo e objetivos concretos, emancipatórios, contra opressões e injustiças disfarçadas.
A preocupação com a linguagem dominante que esconde iniquidades e preconceitos remonta ao pós-estruturalismo e às teorizações de Foucault, possivelmente o pensador mais influente daqueles que embasaram e deram seguimento ao pensamento contracultural de 1968. Essa preocupação ganhou força, na área dos direitos humanos, em particular dentro do movimento de mulheres, extravasando daí para outras áreas, como as de raça e etnia. Foi graças a ela que algumas imprecisões vocabulares decorrentes de injustiças da história, reveladoras da "capilaridade do poder" nos tempos do Iluminismo, acabaram sendo corrigidas. A própria expressão "direitos humanos", hoje consagrada, é resultado da percepção de que os "Direitos do Homem", quando originalmente formulados no século XVIII, excluíam, de fato, as mulheres, sem participação na política e marginalizadas nas sociedades. Foi para respaldar as justas aspirações igualitárias de segmentos populacionais discriminados que os direitos humanos deixaram de ser "Direitos do Homem"; os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; os homossexuais, no Ocidente, puderam começar a assumir-se; o sistema da escravidão passou a ser encarado como aberração equiparável aos crimes contra a humanidade; a expressão "afrodescendentes" se firmou nos foros internacionais para abranger as categorias distintas de negros e mestiços unidos na mesma luta. No âmbito interno brasileiro, dentro da mesma lógica antidiscriminatória de justiça, os "crimes contra a honra" perderam legitimidade; aboliram-se conceitos como os de filhos ilegítimos, bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime e os homossexuais ganharam direitos civis iguais aos dos demais homens e mulheres, algo inimaginável poucos anos antes. Os mesmos objetivos universalistas inspiram a noção de "ações afirmativas", adotadas gradualmente no Brasil e previstas, desde 1965, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em seu artigo 2o, parágrafo
2o, ali mais adequadamente chamadas de "medidas especiais e concretas"10.
2o, ali mais adequadamente chamadas de "medidas especiais e concretas"10.
Ainda que também essas correções de linguagem mais consequentes possam ser objeto de críticas, pois qualquer terminologia política é contestável, não são elas que dão vazão aos gracejos mais frequentes, mas os exageros. Propondo-se aplicar a tudo uma visão politicamente correta, seus postulantes adotam e exigem distorções semânticas, supostamente inspiradas pela ética, mas sem objetivo concreto: "etnia" (conceito antropológico que nada tem a ver com raça ou cor) em lugar de "raça" (conceito cientificamente contestado, mas que, longe de perder a atualidade política, vem sendo causa de discriminações ominosas); "gênero" em lugar de "sexo" (o primeiro termo seria sociológico, o segundo, biológico, sendo o próprio sexo passível de alteração); "caucasiano" em lugar de "branco" (por que não logo "ariano" como diziam os nazistas?), para não falar de outras "correções" simplesmente ridículas. Os mesmos postulantes veem incorreções, agressões a direitos, sintomas de racismo ou de discriminações variadas em textos, obras e práticas que eram - ou são - perfeitamente regulares em circunstâncias diferentes. Assim como há quem queira censurar Lolita de Vladimir Nabokov como livro pedófilo, o Cerd em Genebra já instou a Austrália a mudar o nome de um estádio de futebol, denominado "Nigger Brown" em homenagem a jogador (branco) falecido. Se, como alguns norte-americanos fazem com os clássicos de Mark Twain, até Monteiro Lobato, que já foi tema de escola de samba e escreveu inter alia o pungente conto antirracista "Negrinha", pode ter frases - banais e corriqueiras na época - vistas agora como perigosas, não há limites para as tolices11.
Num mundo em que fundamentalistas crescentemente poderosos apedrejam "fornicadoras", quando não lhes cortam os narizes; enforcam homossexuais e podem crucificar apóstatas; atacam cultos alheios como rituais demoníacos; atiram bombas em clínicas que praticam o aborto; preferem assistir à propagação da aids a permitir a generalização da camisinha; encarceram ou deixam morrer sem auxílio imigrantes que não querem acolher em seu seio, soa evidentemente absurda a preocupação com palavras. Ela agora prejudica a credibilidade dos direitos humanos.
Assim como a linguagem politicamente correta representou a contrapartida da crítica de Foucault à "microfísica do poder" na episteme moderna, os exageros dessa contrapartida, não passando de uma forma de censura, justificam as irritações e pilhérias, contribuindo para a atual disposição "epistêmica" contrária aos direitos humanos.
O desgaste internacional pelo excesso
O ápice dos direitos humanos ocorreu logo após o fim da Guerra Fria, pouco antes, durante e imediatamente depois da Conferência de Viena de 1993. Malgrado as dificuldades da época - limpezas étnicas e guerras na ex-Iugoslávia, fanatismo islâmico na Argélia, posturas relativistas asiáticas, insistência no "direito de ingerência humanitária" - refletidas nos trabalhos da Conferência Mundial, a noção de direitos fundamentais de todos os homens e mulheres, congregando a esquerda com os liberais, tinha força para enfrentar ditaduras, produzir reformas nas legislações domésticas - de que nossa Constituição de 1988 é exemplo -, assim como para criar doutrina e consolidar mecanismos importantes. Associados à reafirmação de sua declarada "natureza universal indubitável" (artigo 1o da Declaração de Viena) e ao reconhecimento da legitimidade da preocupação internacional com eles (artigo 4o da mesma declaração), foram estabelecidos o cargo de alto comissário da ONU para os Direitos Humanos (ideia antes vista como intrusiva), ainda em 1993, os tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia (com objetivos, na época, dissuasórios, já que o Conselho de Segurança não agia) e Ruanda (como compensação pela inércia internacional diante do genocídio de hutus), em 1994, assim como um grande número de monitores de normas, temas e situações.
Hoje, os instrumentos e mecanismos de supervisão continuam a ser multiplicados além do que se pode acompanhar. Conhecem-se, é verdade, as figuras dos relatores especiais para países, que ainda representam o principal vetor de "poder de embaraçar" da ONU, e, por isso mesmo, é justo que sejam valorizados. Por mais que os Estados-autores dos projetos de resolução respectivos tenham perdido qualquer veleidade de ascendência moral, em função das violações próprias que ignoram, as vítimas de práticas abusivas em qualquer país sempre precisam ser levadas primordialmente em conta. E, como a história da redemocratização no Brasil o demonstra, elas certamente preferem a solidariedade internacional à abstenção na matéria.
Do ponto de vista doutrinário, é possível que tenha sido lapso anacrônico, a ressalva feita, em junho de 2009, na resolução do Conselho de Direitos Humanos sobre assistência ao Sri Lanka, que, sem designar relator, reafirma "o respeito à soberania" do país12. É possível, embora pouco provável, que tal lapso tenha decorrido de desconhecimento de que a Conferência de Viena de 1993 tornou inválido o argumento da soberania para evitar monitoramento internacional13. Certamente não constitui lapso incidental a multiplicação de propostas de novas declarações e convenções de validade questionável. A mais insistente e perigosa é, hoje, a de um instrumento internacional que limite a liberdade de expressão contra "blasfêmias de cunho religioso", na sequela da publicação em 2006 de caricaturas de Maomé na Dinamarca. Outras podem justificar-se como decorrentes de necessidades identitárias de alguns grupos, mas estendem ad absurdum a tendência à especificação de direitos especiais de grupos étnicos, esquecendo que todas as normas relevantes até a virada do século, quando abordavam necessidades das mulheres, crianças e minorias, visavam ao universal por meio do indivíduo.
Em função dessa proliferação de direitos, normas e práticas que protejam grupos específicos, ou ainda em decorrência da justificada ânsia por resultados também na defesa de direitos estabelecidos na Declaração Universal de 1948, o sistema internacional de proteção não para de crescer em termos quantitativos. Os seis tratados de direitos humanos mais importantes na década de 1990 (as convenções sobre o racismo, a mulher, a tortura, a criança e os dois pactos, de direitos civis e políticos e de direitos econômicos, sociais e culturais) agora são oito14. A primeira convenção, contra a discriminação racial, tinha 25 artigos; a penúltima, sobre os direitos dos trabalhadores migrantes, tem 93! Em contraste com a meia dúzia de respeitados monitores "temáticos" da ONU no início da década de 1990 (sobre desaparecimentos, execuções sumárias, tortura, direitos da mulher, liberdade de religião e discriminação racial), quase quarenta relatores especiais sobre "temas" funcionam em 2010. Produzem, literalmente, milhares de páginas de informes mal lidos e logo superados por congêneres.
Comprovam-se, assim, pouco perceptíveis para o público e os media os resultados da substituição, em 2006, da antiga Comissão dos Direitos Humanos da ONU, subsidiária do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), por um novo conselho, subordinado à Assembleia Geral. Algumas modificações, concernentes à composição rotativa de seus membros, ou à maior frequência de sessões, são, em princípio, positivas. O maior avanço simbólico se encontra no chamado Universal Periodic Review (UPR), ou, em português, mecanismo de Revisão Periódica Universal, exame da situação dos direitos humanos em todos os 191 Estados-membros da ONU pelos 34 integrantes do novo Conselho de Direitos Humanos. Inegavelmente útil para tornar o monitoramento internacional menos seletivo, obrigando todos os governos a apresentar relatórios sobre a situação respectiva, a UPR tem sido questionada pela maneira como ocorre: as recomendações somente podem ser incluídas no relatório do Conselho se aceitas pelo Estado examinado, com indicação de cada país que as formulou. Soam, assim, mais bilaterais e resultantes de um "acordo de cavalheiros" do que como recomendações coletivas. Malgrado os defeitos, a UPR é um avanço. Acaba, porém, diluída na massa avassaladora de mecanismos existentes, muito parecidos entre si nos métodos e substância do trabalho, pouco conhecidos até dos especialistas na matéria.
Contrariamente à expectativa ativista, tal como ocorre com tudo o que é multiplicado ad nauseam, as normas, recomendações e controles internacionais para os direitos humanos falham agora também pela multiplicação infinita. Sofrem do mesmo mal da informação na internet: a profusão as torna inassimiláveis. Assim como nenhum Estado é capaz de atender à quantidade de normas, recomendações e pedidos de informação ininterruptamente recebidos, nenhum delegado governamental ou ONG tem condições de tomar conhecimento consciente de tudo o que tem sido adotado.
Aspectos da confusão conceitual
Neste século mal-iniciado em todos os sentidos, os direitos humanos, quando não interpretados logo como estorvos, ou empecilhos à ação policial para proteção da cidadania acossada, são associados a noções que, independentemente da legitimidade respectiva, pouco têm a ver com a Declaração de 1948: intangibilidade das culturas; "direitos de religiões" e direitos coletivos de minorias. Os direitos culturais, até recentemente, eram, como todos os demais, claramente individuais - ainda que, no caso dos direitos econômicos, as negociações pertinentes fossem coletivas - e decorriam do artigo 27, parágrafo 1o, da Declaração Universal, nos seguintes termos: "Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar livremente do processo científico e de seus benefícios".
Além dessas três manifestações previstas como direitos culturais, o que a Declaração acrescentava, no artigo 29, parágrafo 1o, eram deveres da pessoa para com a comunidade, na qual "o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível".
Hoje, em evidente inversão de sentido, os direitos culturais se apresentam muito mais como "direitos das culturas", das comunidades de qualquer tipo acima dos indivíduos, e, o que é pior, acima dos demais direitos estabelecidos na Declaração. Esses novos "direitos culturais", não incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, envolveriam direitos patrimoniais de grupos étnicos (os primeiros fixados foram dos povos indígenas15) e decorrem de duas novidades "pós-modernas": a divisão das sociedades, não por classes, mas em categorias estanques (sobretudo de etnia e gênero), e a asserção do "direito à diferença" como substituto da velha igualdade iluminista. Do geral ao particular, com as distorções que essa operação exige, a expressão "direitos humanos" tem sido lembrada até em defesa do "direito da mulher de usar burca" (como causa para a rejeição militante à proibição francesa, que, por sinal, é também turca, catalã e síria); contra caricaturas de Maomé, encaradas como manifestação de "islamofobia" (quando se sabe que a maioria das caricaturas desse gênero, no Ocidente, são de figuras cristãs); para arrebatar a tocha dos maratonistas a caminho de Pequim para as Olimpíadas de 2008 (que se defenda o Tibé e se critique o regime chinês é compreensível, mas o que têm os maratonistas individuais, quase agredidos, com isso?).
Deixando as culturas de lado, a ideia dos direitos humanos é usada igualmente em apoio ao casamento homossexual; contra e a favor do aborto; em iniciativas educacionais para coibir provocações nas escolas contra alunos "diferentes" (o hoje chamado bullying); contra e a favor da construção de mesquitas nos Estados Unidos e na Europa; em defesa do alegado direito de um pastor do Texas de queimar provocativamente exemplares do Corão, em nome da liberdade de expressão e da liberdade religiosa16. Sem falar de manifestações supostamente motivadas pelo direito à igualdade universalista, nas quais as reivindicações se diluem pelo aspecto carnavalesco17, ou de inconsistências pseudopuritanas, como a preocupação com a pedofilia, capaz de perseguir uma professora que "estupra" aluno de 16 ou 17 anos, mas não faz nada contra a hipererotização das crianças pelo show business.
A essas novas associações de ideias heterodoxas - que, volto a dizer, podem provir de reivindicações legítimas, mas não decorrem de necessidades universais - acrescem, naturalmente, também, lembranças "ortodoxas", como as torturas de prisioneiros em Abu Ghraib (Iraque) e Baghram (Afeganistão); a situação aberrante de Guantánamo; a prática criminosa do terror em muitos lugares; o bombardeio de civis por forças militares; as penalidades cruéis em sociedades que aplicam a sharia; a fome e a violência enfrentadas pela população de Darfur; o muro para barrar mexicanos nos Estados Unidos; a persistente prisão de dissidentes como criminosos; a criminalização dos imigrantes indocumentados no Arizona e na Itália; os africanos que se afogam ao tentarem alcançar a Europa; os milhões de crianças que morrem de desnutrição, as meninas que se prostituem sem alternativa de vida; o bilhão e meio
de miseráveis do mundo.
de miseráveis do mundo.
Com a corrente extrapolação da titularidade dos direitos fundamentais de todos para o relativismo inerente à especificidade dos "direitos das culturas", muitas violações são hoje consideradas não violações em comunidades específicas, recebendo de teóricos e militantes "de esquerda" justificações surpreendentes (casos, por exemplo, da imposição do niqab, "véu" ocultador, por integristas às mulheres muçulmanas; do casamento arranjado de crianças entre os cidadãos romanis e dentro de grupos de origem imigrante; das execuções extrajudiciais como pena não arbitrária; do infanticídio entre indígenas etc.). Tendo por pano de fundo as torturas e abusos sob outros nomes praticados "legalmente" nos Estados que mais criticam violações alheias, as condenações internacionais em órgãos multilaterais aparecem ainda mais seletivas. Acrescentem-se a tudo isso as campanhas de repressão concentradas na obtenção de denúncias, as ações profiláticas que nem sequer contemplam o cerne dos problemas, a inversão que transforma as vítimas de injustiças sociais em algozes18, e não causará surpresa a perda de força moral da expressão "direitos humanos".
Desprovidos do sentido universal com que foram proclamados pela Declaração de 1948 e aplicados de maneira distorcida, esses direitos parecem hoje, malgrado a atuação honrosíssima de abnegados mais sérios, uma manifestação "politicamente correta" de conformismo mercadológico, disfarçado por postulações fragmentadoras. Estas exigem tratamento sintomático, mas acobertam as causas verdadeiras das violações denunciadas, num sistema econômico-cultural globalizado crescentemente voltado para a satisfação de super ricos em contexto de crimes, corrupção e desemprego. Enquanto isso, o fundamentalismo religioso, a xenofobia contra imigrantes pobres, o populismo fascistoide legitimado em eleições democráticas fortalecem-se a olhos vistos.
É pertinente a observação de Alain Badiou de que:
O debate de opiniões ocorre hoje entre duas orientações desastrosas: de um lado, o unanimismo mercantil e a comercialização universal; de outro, a crispação identitária, que constitui contra essa mundialização uma barreira reacionária, e, pior, totalmente ineficaz (Badiou, 2010, p.27).
Foi nesse contexto de confusão, impopularidade e descrédito dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que a autoproclamada "esquerda progressista" distorce e utiliza seu conceito para a defesa de grupos particulares em substituição à luta política pelo avanço social universalista, que os franceses, historicamente criativos na conceituação dos direitos da cidadania, cunharam a expressão droit-de-
-l´hommisme, sem equivalente em português19.
-l´hommisme, sem equivalente em português19.
"Direitos-do-homismo" ou jus humanismo
Sei que a ideia de descrédito dos direitos humanos pode soar muito forte para quem, como eu, acredita neles. Não é preciso, entretanto, dispor de sentidos aguçados para perceber a atual condescendência de liberais, o desdém de nacionalistas e socialistas, a irritação de administradores pragmáticos, para não falar da revolta da esquerda revolucionária teórica, que agora vem renascendo, quando se referem aos direitos incorporados ao discurso pós-moderno. Enquanto a direita os encara como uma inconveniência a atrapalhar a performance, a esquerda anticapitalista atual vê a opção dos "progressistas pós-modernos" - um evidente oximoro - pela ideia dos direitos, em particular pelos "direitos das etnias", como mais uma manipulação do capitalismo. Daí a emergência desse "monstro linguístico (senão ideológico) que é o droit-de-lâhommisme e seu correlato droit-de-lâhommiste", no dizer de François LâYvonnet (LâYvonnet, 2009, p.207).
Segundo LâYvonnet, professor francês de filosofia, a expressão remonta aos anos 1990 e é atribuída à direita, inclusive a Jean-Marie Le Pen, mas tem sido usada também pela esquerda, para criticar, por exemplo, a ação da Otan no Kossovo e outras manifestações do chamado "direito de ingerência"( LâYvonnet, 2009, p.208)20. O sentido é quase sempre negativo, como o de todos os termos com "ismos", antes que o uso os consagre. Na melhor das hipóteses,
o "jus-humanismo" - invenção vernacular minha que adapto da expressão "jusnaturalismo" para traduzir com mais dignidade esse neologismo, empregado como rótulo - é comparado ao "ecologismo", como uma das "novas narrativas" que inspiram os militantes antiglobalistas ou altermundialistas, desde Seattle em 1999, em campanhas e manifestações de rua pela moralização da política e pela reforma do capitalismo vigente (Vega e Bonnet, 2009)21.
o "jus-humanismo" - invenção vernacular minha que adapto da expressão "jusnaturalismo" para traduzir com mais dignidade esse neologismo, empregado como rótulo - é comparado ao "ecologismo", como uma das "novas narrativas" que inspiram os militantes antiglobalistas ou altermundialistas, desde Seattle em 1999, em campanhas e manifestações de rua pela moralização da política e pela reforma do capitalismo vigente (Vega e Bonnet, 2009)21.
É evidente que não concordo com a ideia de inconveniência dos direitos humanos, nem com a definição positiva, mas questionável, dos direitos humanos e do jus-humanismo como uma das "novas narrativas". Por mais que entenda a importância primária e inadiável das preocupações com o meio ambiente, que conformam o comportamento geral dos militantes ambientalistas, assim como as outras motivações dos manifestantes de rua, não vejo o tema global dos direitos humanos como uma "narrativa". Estou seguro, também, de que, ao contrário do que pensam os economistas e empresários neoliberais ainda dominantes, o respeito e a proteção aos direitos humanos, conquanto exigindo investimento no presente, tendem a garantir até mesmo melhor performance corporativa no médio prazo.
Os direitos humanos são direitos, reconhecidos internacionalmente na Declaração de 1948 e universalizados pelo consenso da Declaração de Viena, de 1993. Nunca foram uma "narrativa" ou "metanarrativa" no sentido ideológico que os pós-estruturalistas, começando por Jean-François Lyotard (1979), davam ao termo. Representavam, na mente dos negociadores da Declaração Universal, um mínimo denominador comum a ser observado por todos os Estados. Os meios para sua observância nunca coube àqueles negociadores decidir. Por isso mesmo é que foram adotados e reiterados, desde 1948. Embora considerados elementos comprobatórios do verdadeiro progresso social, os direitos em geral não são, nem poderiam ser, pela própria natureza, instrumentos suficientes para a obtenção do desenvolvimento, nem explicação doutrinária e orientação totalizante para o alcance da igualdade efetiva.
Endossando ou não o neologismo depreciativo francês, a verdade é que, na cabeça e na atuação de muitos ativistas, militantes não governamentais "de esquerda" e governos de diversos matizes, os direitos humanos têm sido utilizados como política principal, senão única. Como se a obtenção do reconhecimento formal de uma postulação, geral ou comunitária, no rol dos direitos humanos resolvesse a questão. Com isso, o conceito vai sendo demasiadamente alargado, constantemente esgarçado, perdendo o sentido libertário e universalista, juntamente com a força moral e semântica.
Afirmações sem sentido, questionamentos deslocados
Diante do exposto, chega a ser surpreendente observar que o conceito de direitos inerentes à pessoa humana continue sendo encarado como realmente universal por todos os Estados integrantes do sistema internacional existente. Por mais que tenha sido abalada pelo particularismo de alguns "tigres" asiáticos, teorizado por líderes como Lee Kuan Yew, de Cingapura, e Mahathir bin Mohamad, da Malásia, nos anos de 1990, a universalidade da ideia dos direitos humanos em si é questionada hoje somente por acadêmicos, em especial do Ocidente, e teólogos fundamentalistas de diversas religiões. Sem contar os extremistas de qualquer credo que, com total desprezo pelos direitos, vivem para as diferenças, matando e morrendo por elas.
Apesar das críticas que autoridades e teóricos fazem aos "valores do Ocidente", à democracia liberal, ao consumismo e à globalização em geral, nenhuma liderança política expressiva hoje em dia, em qualquer quadrante, acusa os direitos humanos de serem "ocidentais". Os líderes religiosos de todas as crenças procuram, ao contrário, apontar nos ensinamentos de sua própria doutrina, senão os fundamentos do conceito, as contribuições respectivas à afirmação desses direitos. Os Estados criticados por violações defendem-se, naturalmente. Quando não ocidentais, acusam a tentativa de transposição de modelos, criticando o liberalismo individualista do Ocidente, rotulando as pressões externas como violações do princípio da não intervenção em assuntos domésticos (em evidente contradição com a Declaração da Conferência de Viena), qualificando, no caso de teocracias islâmicas, de "islamofobia" as campanhas contra penas cruéis previstas na sharia. Mas a oposição é tópica, não conceitual. Todos repetem, à sua maneira, o discurso dos direitos.
Pelo que me tem sido dado testemunhar há nove anos, no Cerd, países asiáticos, como o Iêmen ou a Indonésia, iliberais como a China e Belarus, com regimes socialistas revolucionários como o Vietnã e Cuba e até teocracias integristas como o Irã e a Arábia Saudita, se não aderiram a todos os instrumentos do direito internacional dos direitos humanos, pelo menos ratificaram alguns. Na qualidade de Estados-partes dessas convenções, cumprem com disciplina a obrigação de fornecer relatórios sobre a situação nacional na matéria ao órgão de supervisão respectivo e se submetem à arguição dos peritos. Rebatem críticas, tentam justificar suas posições, mas nunca indicaram - pelo menos no diálogo com o Cerd - rejeição cultural ao conceito universalista dos direitos humanos22. Da mesma forma, atualmente, apresentam relatórios periódicos a seus pares integrantes do Conselho de Direitos Humanos da ONU dentro do mecanismo de UPR.
Torna-se, pois, contraditória e anacrônica a massa de discussões acadêmicas, seminários e ensaios teóricos que continuam a abordar a "ocidentalidade" dos direitos humanos. Que a origem do conceito está na história do Ocidente ninguém jamais duvidou. Insistir, contudo, ainda hoje, em questionar os direitos humanos postulados pela ONU como um valor exclusivo do Ocidente, intransponível para outras áreas, ou afirmar que eles não têm viabilidade em culturas distintas, isto sim é assumir um ocidentalismo eurocêntrico pouco condizente com atitudes de esquerda. Ela evidencia um desconhecimento ideológico dos fatos, ignorando os clamores das vítimas e desconsiderando a possibilidade de atendê-los. Além de corresponder aos argumentos particularistas de que se valem regimes arbitrários e culturas opressivas para justificar práticas abusivas, tal insistência num alegado "exclusivismo" ocidental não deixa de ostentar o mesmo tipo de arrogância etnocêntrica que os pensadores pós-modernos tanto criticam no universalismo iluminista.
Direitos culturais ou direitos das culturas?
Para que se possam contemplar saídas para a situação de descrédito, é essencial definir a referência básica para o entendimento que se tem dos direitos humanos. Ela só pode ser, por todos os motivos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948.
Tais como estabelecidos na Declaração fundadora, esses direitos considerados imprescindíveis à sobrevivência de todos os seres humanos, como o próprio nome do documento indica, tem como característica essencial sua universalidade. A forma de implementação varia, mas não variam os direitos. Até mesmo o direito à propriedade, longamente posto em questão pela esquerda, teve seu endosso posterior garantido pela interpretação, feita pelos Estados do antigo bloco comunista, de que ele se referia também à propriedade em comum. Quanto aos direitos econômicos e sociais, doutrinariamente objetados pelos Estados Unidos, já não recebem oposição de ninguém. Eles também são direitos individuais, que os Estados devem prover de forma direta ou indireta.
O que permanece, por definição, fora do conjunto de direitos universais são os "direitos das culturas". Nunca definidos claramente, eles podem ser reconhecidos, mas são direitos específicos, não universais. Não se enquadram na categoria dos "direitos humanos" definidos há mais de sessenta anos. Jack Donnelly já advertia, no final dos anos de 1980, de um ponto de vista liberal: "A ideia de direitos humanos coletivos representa, na melhor das hipóteses, um desvio conceptual confuso. Os grupos, inclusive as nações, podem ter e têm uma variedade de direitos. Mas eles não são direitos humanos" (Donnelly, 1989, p.145).
Menos taxativo, mas claramente em dúvida quanto aos direitos coletivos, de "terceira ou quarta geração", o socialista liberal Norberto Bobbio não hesitava em declarar que a titularidade dos direitos humanos permanecia com os indivíduos, cidadãos de um Estado ou "cidadãos do mundo" (Bobbio, 1992, p.30). Ele poderia facilmente, creio eu, subscrever a opinião de Donnelly de que "a maneira de proteger a identidade cultural é proteger os direitos civis, políticos e culturais já estabelecidos" (Donnelly, 1989, p.159), acrescentando à lista os direitos econômicos e sociais, que a esquerda, por definição, não pode desprezar23.
Não quero com isso dizer que os direitos coletivos não sejam direitos. O próprio direito internacional clássico tem por titulares os Estados, entidades políticas coletivas. Tal como ocorrido com o direito dos indígenas a suas terras ancestrais, reconhecidos até em nossa Constituição, há outros direitos coletivos que têm sido reconhecidos em instâncias e regiões diversas, como os direitos das minorias nacionais na Europa. Embora não definido juridicamente como um direito coletivo, os afrodescendentes brasileiros reivindicaram e conseguiram que a história das lutas de seus ancestrais contra a escravidão, assim como a contribuição dos mesmos e dos indígenas para formação da cultura nacional, fossem ensinadas nas escolas. Acho simplesmente que, não podendo ser enquadrados na categoria universal dos direitos humanos, os direitos coletivos de grupos, etnias e segmentos populacionais determinados devem ser tratados de forma apropriada em foros de foco específico - como, aliás, já vem ocorrendo no Brasil, separando-se a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) da Secretaria de Direitos Humanos (SEDH). Na própria ONU há foros e mecanismo específicos para tratar dos direitos de povos indígenas: o Fórum Permanente para Questões Indígenas, o Grupo de Peritos Independentes Sobre os Direitos dos Povos Indígenas e até um relator temático, monitor da situação de tais direitos em todo o mundo. Não existe, portanto, justificativa para se levar assuntos como projetos de construção de barragens e outros empreendimentos que envolvam terras indígenas, ou os muito particularizados direitos de minorias nacionais para o Conselho de Direitos Humanos, nem, muito menos, para os órgãos de tratados (human rights treaty bodies). Estes últimos, criados pelas convenções internacionais vigentes de direitos humanos (contra a discriminação racial, sobre os direitos da mulher, contra tortura etc.), têm suas funções e competências estabelecidas juridicamente, e elas nada têm a ver com direitos de titularidade comunitária particularizada.
Sei que, nas condições presentes, é difícil defender a observância estrita da competência de cada órgão de direitos humanos, sobretudo na ONU. A esquerda culturalista do Ocidente, que se apresenta como arauto do progressismo contemporâneo, tem sido a principal propulsora dos direitos grupais no conjunto dos direitos humanos. É ela que leva, pela voz de centros acadêmicos variados, ativistas e ONGs, tudo o que considera "violações de direitos de minorias" a qualquer instância onde localize uma brecha24. Infelizmente para os verdadeiros direitos humanos, universais por definição, quase ninguém, fora da direita, quer situar-se em posições logo taxadas de preconceituosas, optando negligentemente por calar diante de absurdos25. É evidente que não cabe à ONU exigir que todos os Estados garantam cadeiras especiais nos respectivos parlamentos para representantes de cada minoria. Não cabe a treaty bodies de direitos humanos, como o Cerd, o Comitê Sobre os Direitos da Criança ou comitê que monitora o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, impor como obrigação, por exemplo, o ensino público de cada idioma minoritário, ou o ensino de todas as matérias na língua materna de cada estudante, a países sem recursos para assegurar sequer o ensino da língua oficial. Não é universalmente obrigatória a oferta de tratamento diferenciado, exclusivamente feminino, nos serviços de saúde pública para o atendimento a mulheres muçulmanas. Não constitui, necessariamente, discriminação racial a interdição de acampamentos romanis em sítios não autorizados. Nada têm a ver com discriminação racial os projetos econômicos dos Estados que envolvam reservas indígenas, desde que eles levem em consideração as necessidades fundamentais das tribos afetadas.
Tampouco quero dizer que os direitos humanos devam restringir-se aos "de primeira geração", civis e políticos. Os direitos econômicos e sociais são inquestionavelmente direitos humanos universais e inerentes a toda pessoa humana. Acredito que, em alguns casos, como o do Brasil recente, pós-ditadura, a luta pelos direitos econômicos e sociais e a busca de seu atendimento em condições democráticas vêm ocorrendo de forma política adequada, por meio de reivindicações concretas e adoção de programas variados, contemplando ou não ações afirmativas, sem necessariamente recorrer ao discurso dos direitos humanos. Desgastado pelos motivos antes apontados, tal discurso, nessas esferas, no âmbito nacional, tenderia a ser expletivo. Afinal, se tais direitos humanos "de segunda geração" já são reconhecidos como tais, o que falta são políticas ou circunstâncias reais para sua realização. São elas que precisam ser apresentadas nos relatórios previstos pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sendo direitos culturais aqueles referidos no artigo 15 desse instrumento, não direitos pós-modernos, específicos de grupos e culturas.
Saídas possíveis
Nada disso deve ser causa para o abandono do discurso dos direitos econômicos e sociais com objetivos distributivos no âmbito internacional dos direitos humanos, onde temos tido, por sinal, algum êxito referencial para a quebra de patentes de remédios, na asserção do direito universal à saúde. Não precisamos, pois, nem aqui nem lá fora, cair no droit-de-lâhommisme: o abandono da verdadeira política pela opção jus humanista, meramente discursiva. Nem, muito menos, desejamos subtrair força e validade à luta pelos direitos igualitários de todos, inclusive dos grupos discriminados e minorias perseguidas. Nociva é apenas a obsessão cultural, religiosa ou étnica, a que se associa postura particularista, logo relativista, contrária ao universalismo dos direitos humanos. Esse universalismo, conforme explicado acima, desde a Declaração de 1948 e a fortiori com o passar do tempo, não se confunde com eurocentrismo ou ocidentalismo.
Quanto aos direitos civis e políticos, a situação é diferente. O sistema internacional de proteção existente, aí incluído o ativismo das ONGs de direitos humanos, foi montado para combater ditaduras. Nunca esteve preparado para lidar com desafios democráticos - como a legitimação do arbítrio pelo voto popular, hoje frequente em todos os continentes -, muito menos com situações que envolvem graves ameaças à democracia - como o extremismo religioso, o fundamentalismo, o desmantelamento da seguridade social e o fortalecimento extraordinário da criminalidade comum.
Diante desses fenômenos, cuja expansão planetária é evidente, muito terá que ser repensado. Ainda assim, é possível notar que, por uma conjunção de fatores, entre os quais a figura de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, no lugar de George W. Bush, alguns instrumentos clássicos da luta pelos direitos humanos parecem, de repente, haver recomeçado a funcionar. Os resultados são, naturalmente, duvidosos, mas os indícios de uma retomada da luta pelos direitos civis, na segunda metade de 2010, existem: a campanha contra a execução da iraniana Sakhiné Ashtiani (que, sem ela, já teria sido "lapidada", como as mulheres anônimas regularmente executadas por adultério no Afeganistão, Arábia Saudita etc.), a premiação do dissidente chinês Liu Xiaobo com o Nobel da Paz (com poucas ausências de representantes de Estados à cerimônia respectiva em Oslo), a expulsão de prisioneiros políticos de Cuba para a Espanha em julho; a ação de celebridades e hackers da internet contra a prisão do fundador da WikiLeaks, o australiano Julian Assange (em Londres, a pedido da Suécia, por motivo inconvincente), em dezembro.
No rol dos acontecimentos recentes que podem permitir uma revalorização dos direitos humanos no Brasil devem ser incluídos dois fatos significativos: a eleição presidencial de uma mulher que foi torturada quando prisioneira política e a retomada do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas forças do Estado brasileiro. Sobre o primeiro não cabe agora tecer considerações. A entrevista da presidente eleita ao Washington Post (Weymouth, 2010) é suficiente. Com relação ao segundo, vale a pena elaborar26.
Cinema e realidade
Sem pretender imitar Zizek, com suas elucubrações políticas instigantes a partir do cinema, refiro-me aqui a um filme. Em outubro de 2010, como que preparando a operação no Complexo do Alemão, lançou-se no Brasil, com enorme êxito de bilheteria, a película nacional Tropa de elite 2. Seu início mostra um congresso de direitos humanos, cujo orador apresenta cifras, taxas e tendências impressionantes sobre mortes e violações praticadas no combate a traficantes, em condenação exclusiva à violência da polícia. O filme evolui de maneira terrível numa linha que, no final, resgata o militante de direitos humanos, já deputado estadual, juntamente com o herói, Nascimento, comandante enganado dos "caveiras", resistente à corrupção da "milícia", dos políticos, do "sistema", da democracia em geral. Por mais desencantada que seja a conclusão, a mensagem intrínseca é positiva para os direitos humanos: são eles que inspiram, na origem, a apuração dos horrores. O problema da mensagem final antissistêmica é que, dada a experiência de um público assolado pela violência criminal, o que tende a ficar marcado sobre os direitos humanos é o começo, a atitude dos "intelectuais" que "só pensam nos direitos dos bandidos". Não é essa a lição aprendida do cinema norte-americano, em que justiceiros brutais são endeusados, nem a sensação que se tem da atuação da polícia nos Estados Unidos, também frequentemente violenta além do necessário, e nem por isso vista a priori com desconfiança27.
Muito em função das denúncias de ONGs e órgãos de direitos humanos sobre abusos cometidos em ações anteriores, a operação policial fluminense, com apoio federal civil e militar, em novembro de 2010, envolvendo as Forças Armadas, transcorreu com pouca violência e um número reconhecidamente mínimo de "danos colaterais". Conforme observado por Hélio de la Peña, humorista do "impiedoso" Casseta & Planeta, que conhece a área de perto:
Se houvesse um plebiscito, seria aprovada uma chacina no ato da fuga dos bandidos. Rolou até uma piadinha no twitter: "meu controle tá com defeito, tô apertando âokâ, mas o helicóptero não atira...". Queríamos uma polícia agindo como estávamos habituados, fora da lei, aplicando a pena de morte para alívio geral. O comando não ouviu o clamor das ruas e foi aplaudido. Pela primeira vez a população ficou ao lado da polícia. [...] Não acredito que a corrupção policial acabou e que agora estamos no paraíso. Mas somos testemunhas oculares de uma seriedade inédita, que nos dá esperança de que os estado pode realmente tomar as rédeas desta situação (Peña, 2010).
A reconquista de um vasto território urbano dominado por traficantes de drogas é passo essencial para permitir a presença do Estado, não como violador, mas como defensor necessário e insubstituível de direitos. O fato de haver ocorrido em clima de guerra não tem nada de especial: assim atuam todas as forças legais no mundo em situações similares28. Além disso, segundo consta, a ocupação policial e militar tem sido seguida de iniciativas na área social, que todos consideravam necessárias. Acredito que as ONGs sociais já estejam atuando na região, assim como outras estarão registrando casos de excessos, que inevitavelmente ocorrem em ações de tal envergadura. Não seriam, porém, oportunas manifestações por parte das ONGs e militantes de direitos humanos sobre a pertinência do conjunto da operação? Elas, pelo menos, demonstrariam solidariedade com a população brasileira, da qual, segundo o Ipea, 90% têm medo de ser assassinados e/ou assaltados à mão armada (Ipea, 2010, p.4).
Não sei com precisão como têm atuado as ONGs e demais militantes dos direitos civis na área interna. Vejo, contudo, na área externa, que as posturas, viciadas pelo hábito, pecam pelo irrealismo e pela invariável parcialidade contra o Estado, esquecendo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos põe no mesmo nível os direitos à vida, à liberdade e à segurança das pessoas. Esta, como já explicitado acima, quando legítima, constitui o primeiro fundamento do Estado.
Se, quando se escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a preocupação dos redatores era voltada contra os abusos de regimes arbitrários, nas condições correntes no Brasil, no México, na Colômbia, em áreas localizadas nas cidades dos Estados Unidos, da maioria dos países democráticos, a grande ameaça à segurança dos indivíduos não é governamental. Ao contrário, é criminal, difusa, frequentemente oriunda de partes do território onde o Estado não consegue fazer-se presente. As ligações entre policiais e outros agentes governamentais com o crime organizado são fatos lamentáveis, que escapam à vontade dos regimes democráticos. Cabe ao Estado, como primeiro responsável pela situação dos direitos humanos exercer, quando necessário, seu "monopólio da violência legítima", no dizer weberiano, para combater o crime e as ligações espúrias. Sem o controle estatal de áreas anômicas, como as intricadas favelas em que traficantes se escondem, os próprios criminosos se atribuem as funções de reguladores e executores da justiça à sua maneira nas comunidades. O Estado que simplesmente se esquiva nada pode fazer para a defesa e a promoção social de seus habitantes, nem para proteger corretamente a cidadania em geral. Tampouco pode atuar contra os negócios ilícitos de seus agentes corruptos.
Por medo do terrorismo, menos provável na Europa e nos Estados Unidos do que os assaltos brasileiros à mão armada ou as balas extraviadas de quadrilhas em disputas, os europeus e americanos já escolheram o panopticon das câmeras de vídeo com vigilantes policiais ou privados para sua segurança e proteção. No Brasil, as maiores empresas, edifícios relativamente imponentes e condomínios de luxo recorrem a esses mesmos instrumentos com medo da criminalidade comum. Os riscos são onipresentes, mas as vítimas mais atingidas são os cidadãos ordinários, em suas casas e nas ruas. As comunidades faveladas, com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ou ocupação militar, preferem a presença armada do Estado à regulação de suas vidas, saídas e rotinas por traficantes e milícias.
* * *
É preciso salvar os direitos humanos do descrédito em que se encontram em todo o mundo. Para isso é necessário que a esquerda militante tenha coragem de dissociar-se de posições partidárias ou meramente principistas, tal como, pela "força das coisas", abdicou da revolução. Talvez, no caso brasileiro, o primeiro passo consista em apoiar e orientar corretamente a polícia, criticando somente os excessos comprovados, não a iniciativa das operações. Ajudará, também, se a esquerda assumir, no Brasil e lá fora, a universalidade dos direitos fundamentais para a vida humana. As culturas, que, por sinal, tampouco podem violar direitos humanos, são úteis para a autoafirmação identitária dos grupos e devem ser respeitadas pela contribuição que aportam à variedade humana. É assim que entendo as ações brasileiras recentes em defesa das diversas manifestações da cultura nacional. Quanto ao culturalismo obsessivo, que essencializa e separa em segmentos étnicos a humanidade e os Estados, hoje já se sabe que não serve como anteparo à globalização sem amarras, além de induzir à proliferação de conflitos.
Para dar tais passos requeridos, a esquerda não precisa abandonar a militância pelos direitos humanos, nem pelos direitos coletivos, desde que não abdique da política abrangente, das reivindicações e ações condizentes com objetivos sociais mais amplos. Necessita, sim, avaliar melhor até que ponto faz sentido insistir em cobranças contraproducentes e postulações inspiradas por modismos antiestatais doutrinários, deslocados e crescentemente anacrônicos.
Os direitos de todos os seres humanos, em qualquer circunstância, devem ser vistos como aquilo que são, desde 1948: um mínimo denominador comum para todos os Estados - e culturas -, que os devem respeitar e fazer valer em favor de todas as pessoas. Aos direitos estabelecidos na Declaração Universal não é necessário acrescentar nenhum direito específico de validade exclusiva para grupos particularizados, nem "direitos das etnias", que tanto podem fortalecer a identidade como esmagar o indivíduo. Essencial não é manter intocáveis as culturas, as línguas, as religiões, as diferenças, mas sim buscar os meios para o Estado aplicar os direitos da Declaração Universal da melhor maneira possível, à luz de cada situação, em favor de seus habitantes.
Com sua natureza cogente e valor referencial abrangente, os direitos humanos não são e não podem representar objetivos em si. Constituem, sim, instrumentos internacionais de conformação normativa, insuficientes, mas úteis, à disposição, em primeiro lugar, da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça. Os principais responsáveis por sua garantia são e devem ser os Estados, pois é dentro dos territórios respectivos que eles se realizam e ocorrem violações. Nas democracias, o trabalho de ONGs e ativistas precisa ocorrer junto ao Estado, ou contra ele, quando forem necessárias correções. As Nações Unidas têm importância, sim, monitorando, criticando, ajudando quando podem, alertando para o que há de errado e de certo nacional e internacionalmente na matéria. As ONGs atuantes na ONU têm todo o direito de apresentar denúncias. Mas tanto as ONGs, como a ONU e os delegados governamentais precisam estar atentos para aquilo que pretendem, conscientes da competência dos órgãos a que se devem dirigir e das formas que devem dar a suas postulações. Uma palavra de estímulo às ações positivas será sempre valiosa.
Os direitos humanos podem ter saído de moda, se os compararmos na insignificância relativa de agora com a importância que tinham alguns anos atrás. Mas são, certamente, ainda, armas e escudos ético-jurídicos de natureza universal, contra o arbítrio e as iniquidades no mundo, nas lutas pela liberdade e pela igualdade de todos.
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_____. 2010. Living in the end of times. New York: Verso. [ Links ]
* Este artigo foi escrito em Brasília e no Rio de Janeiro, no mês de dezembro de 2010.
1 No exterior, os críticos do multiculturalismo são, em maioria, de centro ou centro-direita: Amin Maalouf (1998, 2009), Alain Minc (2002), Giovanni Sartori (2003), Thomas Sowell (2004) etc. No âmbito da esquerda, somente pensadores provocativos, como Zizek (2008a, 2008b, 2009, 2010) e Badiou (2009), ou militantes já acusados de "direitismo", como Caroline Fourest (2005, 2009) e Régis Débray (2004, 2009), assumem claramente a crítica ao multiculturalismo a partir de posições sólidas. Os demais o fazem de maneira hesitante, como se temessem soar de direita, tais como Michel Wiewiorka (1998, 2001), Amartia Sen (2006) etc. No Brasil, as posturas me parecem mais confusas, como confuso é o significado que se dá ao termo "multiculturalismo" - que, assinalo logo, nada tem a ver com a prática de "ações afirmativas".
2 Examinei esse assunto, a partir de minha experiência no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (Cerd), na ONU, em Lindgren Alves (2010).
3 Analisei a emergência dos direitos humanos como tema global legítimo em Lindgren Alves (2003).
4 Penso particularmente nas exigências europeias em matéria de reconhecimento e representação de minorias nacionais e "etnias", às vezes com sistemas de justiça separados, e na sua transposição para países de outros continentes, de formação distinta, como a Indonésia, o Suriname, a República do Congo, a África do Sul etc.. Outros exemplos de transposição e cobranças absurdas são indicados mais para o final deste texto.
5 Lembro o caso, por exemplo, de campanha brasileira contra a prostituição infantil nas estradas, que propunha a prisão dos donos de posto de gasolina junto aos quais as meninas oferecessem seus serviços. Dentro da mesma lógica sem consistência social se enquadram várias campanhas internacionais de denúncias de escravidão e tráfico de pessoas, sem que os denunciantes cogitem alternativas de trabalho e emprego para os indivíduos que semivoluntariamente se deixam escravizar, traficar ou enganar.
6 Como a qualificação de "genocídio", conceito oriundo do Holocausto de judeus pelos nazistas, para massacres de outro tipo ocorridos alhures no passado. Ou a qualificação de "crime contra a humanidade", definido pelo Tribunal de Nuremberg, para o sistema terrível da escravidão, na época considerado legítimo. Por mais que eu simpatize com os motivos dos postulantes, não posso deixar de notar que a generalização errônea desses rótulos, além de historicamente sem sentido, somente esvazia os conceitos.
7 As simpatias com extremistas muçulmanos, como os talibãs, e o apoio, ainda que meramente argumentativo, a terroristas da Al-Qaeda são os casos mais evidentes.
8 Penso, por exemplo, na aceitação da sharia islâmica em comunidades muçulmanas do Ocidente, do casamento infantil entre os romas ou romanis (uso esta denominação de hoje, conquanto ciente de que muitos grupos na Europa continuam a autodesignar-se "ciganos"), da pena de morte na aplicação da justiça indígena, na legitimação das castas em países onde elas sobrevivem etc.
9 Examinei as origens e o início dos excessos do culturalismo atual em Lindgren Alves (2005, p.89-112).
10 Conforme o texto da Convenção, as "medidas especiais", de duração provisória, visam a promover grupos raciais discriminados até que estes atinjam "em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais". A expressão "ações afirmativas" é imprecisa e advém de um discurso do Presidente Kennedy. Explicitei isso e a atual visão norte-americana sobre o assunto em Lindgren Alves (2010, p.35-6, 134-5).11 Sem questionar a boa intenção do Conselho Nacional de Educação, penso, evidentemente, na recente recomendação de que "Caçadas de Pedrinho" fosse distribuído com a advertência de que contém frases nessa linha.
12 O texto que tenho em mente é do preâmbulo da Resolução S11-1 (ver a página 161 do documento ONU A/63/53), adotada após o fim da guerra civil naquele país, quando se soube que o secretário-geral da ONU tencionava criar um grupo para examinar as violações praticadas durante o conflito envolvendo tâmeis insurretos e o governo.
13 Em muitos textos que escrevi desde essa conferência, expliquei como a Declaração de Viena, em particular em seu artigo 4o, logrou superar a invocação da soberania como escudo contra o monitoramento e controle internacional, ver inter alia Lindgren Alves (2003, p.28-9). Afirmações de que o Brasil prefere respeitar as soberanias a agir em defesa dos direitos humanos são postas pela imprensa na boca de diplomatas brasileiros, mas, pelo que consegui apurar, elas não são acuradas. Se o forem, em casos que desconheço, trata-se de erro ou posição ideológica de quem as faz. A Declaração de Viena de 1993 foi toda negociada sob coordenação brasileira.14 Os dois mais recentes, em vigor, são a convenção sobre direitos de trabalhadores migrantes e suas famílias e a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiências.
15 Na Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 24 de janeiro de 2007.
16 Ouvi, na televisão, essa justificativa, do próprio Presidente Obama, para a inação.
17 Somente a custo se soube que a parada gay do Rio de Janeiro, em novembro de 2010, tinha por tema a aprovação de projeto de lei, de 2006 (PL 122/06), que equipararia os crimes homofóbicos àqueles motivados pelo racismo, cuja justificação pela ótica dos diretos humanos ficaria duplamente patente logo em seguida: na agressão policial contra jovem egresso da parada e no espancamento, em São Paulo, no mesmo dia, de transeunte da Avenida Paulista por cinco jovens de classe média, inclusive quatro adolescentes. Mais convincente do que qualquer parada - não apenas em defesa dos homossexuais, mas "contra a violência", "pela paz" e outras causas - é o trabalho de conscientização feito por ativistas da igualdade.
18 Penso aqui, por exemplo, em recente matéria sobre crianças catadoras de sururu no Nordeste brasileiro, dando a entender que os pais, moradores de palafitas em mangues, seriam exploradores "por escolha" desse trabalho infantil. O mesmo se dá com os pais de crianças que fazem tapetes em casa, no Paquistão, Bangladesh e outros países asiáticos, mas sintomaticamente não com os roma da Europa que põem os filhos para mendigar, conforme sua "tradição cultural".
19 A tradução literal seria "direitos do homismo", que não corresponde à expressão "direitos humanos". Apenas em francês, malgrado as reivindicações feministas, os direitos humanos continuam a ser chamados "direitos do homem" (conforme a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789), daí "direitos do homismo".
20 Ver também o texto já citado na epígrafe, Debray (2009, p.123).
21 O neologismo é aí empregado com conotação positiva.22 Quem questiona o universalismo - que sempre defendo no Cerd - em favor de uma "concepção mais atual dos direitos humanos" [sic] é o perito britânico, não nosso colega chinês, nem os demais afro-asiáticos.
23 Conforme já explicitei alhures, o reconhecimento consensual do direito ao desenvolvimento como "um direito universal e inalienável e parte integrante dos direitos humanos" ocorreu na Conferência de Viena de 1993, com sua titularidade garantida para "a pessoa humana" (Lindgren Alves, 2001, p.13-116). Foi com esse viés, digamos, "individualista", que os liberais de centro-direita aceitaram o conceito.
24 No caso de Cerd, de que participo há nove anos, a brecha que encontraram, em vez do envio previsto de comunicações (artigo 14 da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial), foi o chamado "procedimento de alerta e ação urgente", mais frouxamente definido porque criado pelo próprio comitê. Sobre o assunto, ver Lindgren Alves (2010).
25 Eu próprio, que fui o proponente da primeira decisão na ONU sobre uma conferência mundial atualizada contra o racismo - na Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, em 1995 -, concretizada na Conferência de Durban, já fui alertado, pelo colega britânico, no Cerd, do risco de ser visto como racista. A advertência me foi feita porque tenho assinalado a distorção de sentido causada pela aceitação de quaisquer queixas de violações de terras indígenas dentro de mecanismo estabelecido desde a década de 1990 para examinar situações, como as da Bósnia e de Ruanda, indicadoras de provável genocídio. Tenho agido assim, por convicção pessoal, desde que notei essa tendência, muito antes de surgirem alhures problemas com a construção de usinas no Brasil. Cheguei a propor a esse comitê uma reforma que recolocaria o "procedimento de urgência e alerta" na rota original, em troca da constituição de um grupo de trabalho específico para as questões de terras indígenas - prova cabal de que não pretendia descuidar dos interesses comunitários legítimos dos povos autóctones em qualquer país. O efeito tem sido nulo. As resistências, inexplicadas. Aparentemente, pretende-se chamar de genocídio qualquer ação ou projeto que afete minorias.26 O presente texto foi redigido em dezembro de 2010 e acredito que permanece válido. Ressalto aqui, em janeiro de 2012, momento em que faço esta revisão, que tudo o que digo sobre a operação no chamado Morro ou Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2010, é igualmente aplicável a operações semelhantes posteriores, como a invasão e ocupação da Rocinha, em 2011 - por sinal, ainda mais tranquila.
27 Não creio necessário citar exemplos de Hollywood. Lembro, sim, que quando assisti ao primeiro Tropa de elite, residindo no exterior, pensei que a resistência da esquerda ao filme fosse pela implicação de militantes no uso de drogas, logo no estímulo ao crime. Depois vi que o filme, chamado de "fascista", era rejeitado pela aparente aceitação da tortura em interrogatórios, que eu tampouco posso aprovar. Verifiquei, contudo, que a rejeição era somente brasileira. No exterior ninguém notava a violência policial como excessiva.
28 Ver ações internas da "Guerra ao Terror" nos Estados Unidos e Europa.
2 Examinei esse assunto, a partir de minha experiência no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (Cerd), na ONU, em Lindgren Alves (2010).
3 Analisei a emergência dos direitos humanos como tema global legítimo em Lindgren Alves (2003).
4 Penso particularmente nas exigências europeias em matéria de reconhecimento e representação de minorias nacionais e "etnias", às vezes com sistemas de justiça separados, e na sua transposição para países de outros continentes, de formação distinta, como a Indonésia, o Suriname, a República do Congo, a África do Sul etc.. Outros exemplos de transposição e cobranças absurdas são indicados mais para o final deste texto.
5 Lembro o caso, por exemplo, de campanha brasileira contra a prostituição infantil nas estradas, que propunha a prisão dos donos de posto de gasolina junto aos quais as meninas oferecessem seus serviços. Dentro da mesma lógica sem consistência social se enquadram várias campanhas internacionais de denúncias de escravidão e tráfico de pessoas, sem que os denunciantes cogitem alternativas de trabalho e emprego para os indivíduos que semivoluntariamente se deixam escravizar, traficar ou enganar.
6 Como a qualificação de "genocídio", conceito oriundo do Holocausto de judeus pelos nazistas, para massacres de outro tipo ocorridos alhures no passado. Ou a qualificação de "crime contra a humanidade", definido pelo Tribunal de Nuremberg, para o sistema terrível da escravidão, na época considerado legítimo. Por mais que eu simpatize com os motivos dos postulantes, não posso deixar de notar que a generalização errônea desses rótulos, além de historicamente sem sentido, somente esvazia os conceitos.
7 As simpatias com extremistas muçulmanos, como os talibãs, e o apoio, ainda que meramente argumentativo, a terroristas da Al-Qaeda são os casos mais evidentes.
8 Penso, por exemplo, na aceitação da sharia islâmica em comunidades muçulmanas do Ocidente, do casamento infantil entre os romas ou romanis (uso esta denominação de hoje, conquanto ciente de que muitos grupos na Europa continuam a autodesignar-se "ciganos"), da pena de morte na aplicação da justiça indígena, na legitimação das castas em países onde elas sobrevivem etc.
9 Examinei as origens e o início dos excessos do culturalismo atual em Lindgren Alves (2005, p.89-112).
10 Conforme o texto da Convenção, as "medidas especiais", de duração provisória, visam a promover grupos raciais discriminados até que estes atinjam "em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais". A expressão "ações afirmativas" é imprecisa e advém de um discurso do Presidente Kennedy. Explicitei isso e a atual visão norte-americana sobre o assunto em Lindgren Alves (2010, p.35-6, 134-5).11 Sem questionar a boa intenção do Conselho Nacional de Educação, penso, evidentemente, na recente recomendação de que "Caçadas de Pedrinho" fosse distribuído com a advertência de que contém frases nessa linha.
12 O texto que tenho em mente é do preâmbulo da Resolução S11-1 (ver a página 161 do documento ONU A/63/53), adotada após o fim da guerra civil naquele país, quando se soube que o secretário-geral da ONU tencionava criar um grupo para examinar as violações praticadas durante o conflito envolvendo tâmeis insurretos e o governo.
13 Em muitos textos que escrevi desde essa conferência, expliquei como a Declaração de Viena, em particular em seu artigo 4o, logrou superar a invocação da soberania como escudo contra o monitoramento e controle internacional, ver inter alia Lindgren Alves (2003, p.28-9). Afirmações de que o Brasil prefere respeitar as soberanias a agir em defesa dos direitos humanos são postas pela imprensa na boca de diplomatas brasileiros, mas, pelo que consegui apurar, elas não são acuradas. Se o forem, em casos que desconheço, trata-se de erro ou posição ideológica de quem as faz. A Declaração de Viena de 1993 foi toda negociada sob coordenação brasileira.14 Os dois mais recentes, em vigor, são a convenção sobre direitos de trabalhadores migrantes e suas famílias e a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiências.
15 Na Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 24 de janeiro de 2007.
16 Ouvi, na televisão, essa justificativa, do próprio Presidente Obama, para a inação.
17 Somente a custo se soube que a parada gay do Rio de Janeiro, em novembro de 2010, tinha por tema a aprovação de projeto de lei, de 2006 (PL 122/06), que equipararia os crimes homofóbicos àqueles motivados pelo racismo, cuja justificação pela ótica dos diretos humanos ficaria duplamente patente logo em seguida: na agressão policial contra jovem egresso da parada e no espancamento, em São Paulo, no mesmo dia, de transeunte da Avenida Paulista por cinco jovens de classe média, inclusive quatro adolescentes. Mais convincente do que qualquer parada - não apenas em defesa dos homossexuais, mas "contra a violência", "pela paz" e outras causas - é o trabalho de conscientização feito por ativistas da igualdade.
18 Penso aqui, por exemplo, em recente matéria sobre crianças catadoras de sururu no Nordeste brasileiro, dando a entender que os pais, moradores de palafitas em mangues, seriam exploradores "por escolha" desse trabalho infantil. O mesmo se dá com os pais de crianças que fazem tapetes em casa, no Paquistão, Bangladesh e outros países asiáticos, mas sintomaticamente não com os roma da Europa que põem os filhos para mendigar, conforme sua "tradição cultural".
19 A tradução literal seria "direitos do homismo", que não corresponde à expressão "direitos humanos". Apenas em francês, malgrado as reivindicações feministas, os direitos humanos continuam a ser chamados "direitos do homem" (conforme a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789), daí "direitos do homismo".
20 Ver também o texto já citado na epígrafe, Debray (2009, p.123).
21 O neologismo é aí empregado com conotação positiva.22 Quem questiona o universalismo - que sempre defendo no Cerd - em favor de uma "concepção mais atual dos direitos humanos" [sic] é o perito britânico, não nosso colega chinês, nem os demais afro-asiáticos.
23 Conforme já explicitei alhures, o reconhecimento consensual do direito ao desenvolvimento como "um direito universal e inalienável e parte integrante dos direitos humanos" ocorreu na Conferência de Viena de 1993, com sua titularidade garantida para "a pessoa humana" (Lindgren Alves, 2001, p.13-116). Foi com esse viés, digamos, "individualista", que os liberais de centro-direita aceitaram o conceito.
24 No caso de Cerd, de que participo há nove anos, a brecha que encontraram, em vez do envio previsto de comunicações (artigo 14 da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial), foi o chamado "procedimento de alerta e ação urgente", mais frouxamente definido porque criado pelo próprio comitê. Sobre o assunto, ver Lindgren Alves (2010).
25 Eu próprio, que fui o proponente da primeira decisão na ONU sobre uma conferência mundial atualizada contra o racismo - na Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, em 1995 -, concretizada na Conferência de Durban, já fui alertado, pelo colega britânico, no Cerd, do risco de ser visto como racista. A advertência me foi feita porque tenho assinalado a distorção de sentido causada pela aceitação de quaisquer queixas de violações de terras indígenas dentro de mecanismo estabelecido desde a década de 1990 para examinar situações, como as da Bósnia e de Ruanda, indicadoras de provável genocídio. Tenho agido assim, por convicção pessoal, desde que notei essa tendência, muito antes de surgirem alhures problemas com a construção de usinas no Brasil. Cheguei a propor a esse comitê uma reforma que recolocaria o "procedimento de urgência e alerta" na rota original, em troca da constituição de um grupo de trabalho específico para as questões de terras indígenas - prova cabal de que não pretendia descuidar dos interesses comunitários legítimos dos povos autóctones em qualquer país. O efeito tem sido nulo. As resistências, inexplicadas. Aparentemente, pretende-se chamar de genocídio qualquer ação ou projeto que afete minorias.26 O presente texto foi redigido em dezembro de 2010 e acredito que permanece válido. Ressalto aqui, em janeiro de 2012, momento em que faço esta revisão, que tudo o que digo sobre a operação no chamado Morro ou Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2010, é igualmente aplicável a operações semelhantes posteriores, como a invasão e ocupação da Rocinha, em 2011 - por sinal, ainda mais tranquila.
27 Não creio necessário citar exemplos de Hollywood. Lembro, sim, que quando assisti ao primeiro Tropa de elite, residindo no exterior, pensei que a resistência da esquerda ao filme fosse pela implicação de militantes no uso de drogas, logo no estímulo ao crime. Depois vi que o filme, chamado de "fascista", era rejeitado pela aparente aceitação da tortura em interrogatórios, que eu tampouco posso aprovar. Verifiquei, contudo, que a rejeição era somente brasileira. No exterior ninguém notava a violência policial como excessiva.
28 Ver ações internas da "Guerra ao Terror" nos Estados Unidos e Europa.
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