Ao se falar em desconsideração da
personalidade jurídica, obrigatoriamente temos que pensar antecipadamente na
pessoa jurídica que surgiu para suprir a inquietação humana, de modo que o
ordenamento jurídico, ao conferir personalidade à sociedade, distinta daquela
das pessoas físicas que a compõe, permite que o homem enfrente os desafios
inerentes a prática comercial, porque como seres que atuam na vida com personalidade
diversa da dos indivíduos que a compõe são capazes de serem sujeitos de
direitos e obrigações na ordem civil. Como decorrência primeira dessa
duplicidade, temos o Princípio da
Separação Patrimonial entre sócio e sociedade.
Na Alemanha, até 1892 e no Brasil,
até 1919, os tipos societários admitidos pelo Direito impunham aos sócios a
integral responsabilidade, solidária ou ao menos subsidiária, pelos atos
praticados em nome da Pessoa Jurídica.
Com o advento da Sociedade por
Quotas de Responsabilidade Limitada (no Brasil pelo Decreto nº 3708, de
10.01.1919), limita-se, como regra, a responsabilidade de cada sócio ao total
do valor subscrito a título de capital social. Nesse momento, foi plantada a
semente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Atribui-se a sua origem à
evolução jurisprudencial ocorrida no Direito Anglo-Americano, com dois
precedentes, consagrados pela doutrina como os primeiros casos de incidência da
Disregard of Legal Entity, que são: State vs. Standard Oil Co., julgado pela Suprema Corte do Estado de Ohio
(EUA) em 1892 e Salomon vs. Salomon &
Co., julgado pela House of Lords
(Câmara de Lordes) em 1897, na Inglaterra.
Para a perfeita compreensão dessa
teoria é imprescindível estabelecer os limites da incidência, o que se faz,
excluindo o alcance da responsabilidade
solidária com a pessoa jurídica.
Assim, se por lei for o administrador responsável
solidário com a pessoa jurídica, como ocorre na legislação tributária, não se
cuida de hipótese de incidência da teoria da desconsideração, mas de
responsabilização direta da pessoa natural que administra a sociedade, em
decorrência do preceito legal expresso. Outros exemplos podem ser citados: art.
2º, da Lei 4595/64; art. 10, do Decreto 3708/19; art. 6º, do Decreto Lei
7661/45.
O mesmo ocorre se o administrador
pratica ato ilícito, penal ou civil:
será ele responsabilizado em nome próprio pelos danos causados.
Portanto, a teoria da
desconsideração tem lugar somente quando o negócio praticado em nome da
pessoa jurídica pelo sócio ou pelo administrador, a despeito de lícito, se isoladamente considerado,
foi praticado com o intuito de lesar
terceiros ou fraudar a lei. Portanto, só
se porá em prática a desconsideração em situações excepcionais e bem
configuradas.
O sentido operativo da teoria da desconsideração está, necessariamente, no
combate à fraude e ao abuso de direito (desvio de finalidade), como meio de ajustar o bem comum almejado pela norma
jurídica, que é o fomento à atividade econômica.
Tudo isso porque com a limitação
da responsabilidade do sócio operada pela constituição da pessoa jurídica,
funciona como estímulo para que ele invista em empresas e, com isso, promova a
geração de riquezas sociais, emprego, etc., porque, com certeza, sentir-se-á
seguro com a separação do seu patrimônio pessoal e o da sociedade.
Podemos sintetizar que consiste o
instituto em não considerar (desconsiderar)
a personalidade das pessoas jurídicas, sempre em situações excepcionais, mas :
a)
com o fim de evitar
prejuízo a terceiro e enriquecimento sem causa de seus manipuladores;
b)
para evitar o desvio de
seu objeto e fins (mau uso da pessoa jurídica);
c)
para evitar a prática de ato que embora lícito, vise
fraudar a lei.
A aplicação da teoria da
desconsideração, declara a ineficácia do princípio da limitação da
responsabilidade do sócio ao total do capital subscrito, com o objetivo de
responsabilizá-lo, com o patrimônio pessoal, pelos danos provocados a terceiros
ou por fraudar a lei.
Um dos pontos positivos do uso da
teoria da desconsideração é a sua efemeridade, porque sem desconstituir, sem dissolver, tampouco
liquidar a pessoa jurídica, após identificado o fim ilícito do ato de seus
sócios, ou, ainda quando a vontade pessoal do sócio vier a substituir a da
sociedade, permite a normal continuidade
das atividades da pessoa jurídica.
Assim, a desconsideração da
personalidade nada mais é do que uma forma especial de reação do ordenamento
jurídico ao mau uso da pessoa jurídica, que visa coibir a prática de fraude ou
abuso através da personalidade jurídica, mas sem anular ou tornar nula a
personificação existente, produzindo, apenas, a passageira ineficácia desta
ficção legal, para permitir o levantamento do véu que a encobre: lifting the corporate veil.
É oportuno repisar que a pessoa
jurídica é uma criação legal e, que, nem por isso, deixa de ter o dever de
respeitar determinados limites para que coexista de forma harmoniosa com as
demais regras do ordenamento jurídico, ficando claro que não é absoluto o
direito advindo da personificação.
O ordenamento legal adotou, em um
primeiro lugar na Consolidação das Leis do Trabalho, consoante o § 2º do art.
2º, o qual dispõe acerca da solidariedade entre as empresas pelo débito
trabalhista, desconsiderando a personalidade jurídica própria de cada sociedade
para os efeitos da relação de emprego.
Registre-se que, mesmo antes da
edição de normas jurídicas como o Código de Defesa do Consumidor, art. 28; Lei
Antitruste - 8884/94, art. 18; Lei do Meio Ambiente - 9605/98, art. 4º; e Novo
Código Civil, art. 50, a doutrina e a jurisprudência brasileira já perfilhavam
a teoria da desconsideração, aplicando, conforme o caso concreto, as seguintes
teorias:
Teoria Subjetiva da
Desconsideração:
Exige-se, cumulativamente à prova
do dano sofrido por terceiro, a demonstração do abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade
no uso da pessoa jurídica, por meio de ato intencional (fraude) voltado à produção de dano a terceiros ou violação à lei.
A teoria subjetiva está calcada não em um defeito estrutural da
sociedade, mas em um defeito funcional: um
defeito produzido pelo mau uso da pessoa jurídica, um descompasso entre a função abstrata prevista no ordenamento
para a pessoa jurídica e a função que ela concretamente realiza.
Conclui-se que o fundamento da teoria subjetiva está no abuso funcional na utilização da pessoa
jurídica.
Teoria Objetiva da
Desconsideração:
Delineada por Fábio Konder
Comparato em seu livro O Poder de
Controle na Sociedade Anônima, a teoria
objetiva prescinde da prova da intencionalidade do agente em fazer mau uso
da pessoa jurídica: aplica-se a desconsideração desde que provado, tão-somente, a existência de confusão patrimonial.
O princípio da separação
patrimonial (CC antigo, art. 20, caput)
- por meio do qual o patrimônio do sócio e da sociedade não se confundem,
porque cada um é sujeito de direito distinto, é estabelecido para a consecução
do objeto social expresso no contrato ou estatuto.
Assim, se o sócio, que é o
principal interessado no princípio da separação patrimonial, não observa para
si tal regra, e com isso gera confusão, isto é, mistura do seu patrimônio
pessoal com o patrimônio da pessoa jurídica,
ou mesmo cria diversas pessoas jurídicas para gerir apenas uma única empresa, não haveria razão, no entender
de Comparato, fazer valer perante terceiros a separação patrimonial, e,
conseqüentemente, a limitação da responsabilidade que, para si, não observa.
Em recente julgado, o STJ aplicou
a teoria objetiva. No Julgamento do
RMS nº. 14.168/SP[1], de minha lavra, o Tribunal declarou ser cabível a extensão
do decreto falencial às demais pessoas jurídicas que pertencem ao grupo da
falida, desde que provada a confusão patrimonial entre elas. No caso em
julgamento ficou provado que as sociedades exerciam suas atividades sob unidade
gerencial, laboral e patrimonial.
Teoria da Desconsideração
Inversa:
Aponta ainda a doutrina, outra
hipótese de desconsideração: a inversa,
por meio da qual desconsidera-se a personalidade jurídica da pessoa natural, para atingir o
patrimônio da pessoa jurídica de quem aquela é sócia.
Nessa modalidade, ao invés de o
sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ele
esvazia o seu patrimônio pessoal (enquanto pessoa natural) e o integraliza
totalmente na pessoa jurídica.
Após esse artifício, o sócio, pessoa
natural, cujo patrimônio restou esvaziado, exerce a atividade comercial (objeto
social da pessoa jurídica) em seu nome
próprio, e não em nome da pessoa jurídica, com o nítido intuito de fraudar
terceiros. Aqui a hipótese é inversa, isto é, se desconsidera a pessoa natural e, se desconsidera a personalidade
da pessoa jurídica pelos atos praticados por seu sócio.
Análise dos CDC e do NCC
A Teoria da
Desconsideração e o CDC
Art. 28. O juiz poderá
desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do
consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração
também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
O CDC, em seu artigo 28, arrola
diversas formas de desvio de finalidade
no uso da pessoa jurídica, tais como:
a)
abuso de direito;
b)
excesso de poder;
c)
infração da lei;
d)
violação dos estatutos ou
do contrato social; e
e)
má administração.
Assim, pode-se concluir que o CDC
adotou para a aplicação da desconsideração a Teoria Subjetiva.
(...)§ 5º. Também poderá ser
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma
forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Especial atenção merece o
disposto no § 5º do art. 28, porque permite a aplicação da desconsideração da
personalidade quando se vislumbrar obstáculo
ao ressarcimento. Note-se que nessa hipótese o CDC aplica a teoria objetiva da desconsideração,
isto é, dispensa a prova da intenção do agente no mau uso da pessoa jurídica.
A Desconsideração e o Novo
Código Civil
Art. 50. Em caso de abuso da
personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o
juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe
couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações
de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou
sócios da pessoa jurídica.
O novo CC atribuiu legitimidade
ativa para requerer a aplicação da desconsideração, além da parte, ao
representante do Ministério Público, e não definiu com a precisão do CDC o que
deve ser compreendido pela expressão abuso,
limitando-se a indicar:
a) desvio de finalidade;
b) confusão patrimonial;
devendo o aplicador anotar que é
imprescindível nas duas situações a ocorrência de prejuízo individual ou
social, que justifique a suspensão temporária da personalidade jurídica da
sociedade.
O dispositivo do Novo Código
Civil faz referência tanto à teoria
subjetiva, ao mencionar a expressão “desvio
de finalidade”, como, também, à
teoria objetiva, ao expressamente indicar a “confusão patrimonial” como causa hábil a se decretar a
desconsideração da personalidade jurídica.
A adoção dessa linha de aplicação
da desconsideração é a que melhor atende aos anseios de efetividade da Justiça,
não frustrando os credores que, após longa tramitação do processo de
conhecimento, ao chegar no processo de execução, e se deparar com a
inexistência de bens do devedor.
Outra questão que ainda poderá
gerar dúvida é a sede própria para ser formulado o pedido de desconsideração:
se por meio de ação própria ou na forma incidental. Tenho para comigo que o
caminho processual deve ser o mais singelo possível, razão pela qual afasto de
imediato o uso de ação específica para obter a declaração.
Concluindo, só vejo convergências
entre o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor com o art. 50 do Novo Código
Civil, gizando que, graças aos ventos de modernidade que embalaram o Código de
Defesa do Consumidor, vemos fortalecido e potencializado o instituto da
desconsideração da personalidade jurídica, o qual passa a alcançar todas as
relações jurídicas que regidas pelo Código Civil, deixando cada dia mais no bondoso esquecimento um humilhante dispositivo
constante nas Ordenações Filipinas, que salvaguardava os direitos do consumidor
português, nos seguintes termos:
“Toda a pessoa que medir, ou pesar com medidas
e pesos falsos, se a falsidade, que nisso fizer, valer um marco de prata, morra
por isso.
E
se for de valia de menos do dito marco, seja degradado para sempre para o
Brasil.”
.
[1] Terceira
Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 30 de abril de 2002. Publicado o
acórdão em 05.08.2002.
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