sexta-feira, 16 de maio de 2014

O CDC e a desconsideração da personalidade jurídica

Autores: 

Miguel Lucena Filho

Originária dos Estados Unidos, a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica — ‘‘disregard of legal entity’’ — encontrou abrigo no Brasil, inicialmente, por meio da jurisprudência e, normativamente, pela primeira vez, no Código de Defesa do Consumidor de 1990, em seu artigo 28. Conforme dispõe o art. 28 do CDC, o juiz poderá desconsiderar a pessoa jurídica, levantando a capa que a protege, sempre que ela for utilizada como obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor. Em essência e originariamente, a desconsideração ocorre quando se verifica, por parte da sociedade constituída legalmente, fraude à lei ou abuso de direito.
            O art. 28 se refere a casos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Permite ainda a desconsideração em casos de falências, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
            Assim, o Judiciário pode, por determinação legal, ignorar, no caso concreto, a existência da pessoa jurídica, responsabilizando diretamente os sócios. Significa, em outras palavras, que o responsável pelo uso indevido da personalidade jurídica fica comprometido com a obrigação.
            Amplitude da lei — É ampla a desconsideração prevista no CDC, alcançando qualquer situação em que a autonomia da sociedade for obstáculo ao ressarcimento do consumidor lesado.
            Há, desse modo, uma grande diferenciação da doutrina original, criada nos EUA e sistematizada por Rolf Serick, da Universidade de Tübingen, no semestre letivo de 1952/53, com a tese intitulada ‘‘Rechtsform un realität juristicher personem — ein rechtsvergleichender beitrag zur frage des durchgriffs auf die personem oder gegenitände hinter der juristichen person’’, cuja tradução literal foi ‘‘forma jurídica e realidade das pessoas jurídicas — contribuição de Direito Comparado à questão da penetração destinada a atingir pessoas ou objetos situados atrás da pessoa jurídica’’.
            A diferença se dá justamente no fato de que, na teoria original, a desconsideração ocorre objetivando atingir o sócio que agiu em fraude à lei ou com abuso de direito, enquanto o art. 28 do CDC alcança, como foi dito anteriormente, qualquer situação nas circunstâncias ali elencadas.
            A juíza de Direito Genacéia da Silva Alberton, professora assistente de Teoria Geral do Processo na Unisinos, em artigo publicado no livro ‘‘Direito do Consumidor’’ (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, vol.7), opina que a impossibilidade do ressarcimento, por si só, não pode ser motivo para a desconsideração, se o ato da sociedade não extrapolou o objeto social ou não teve como fim ocultar conduta ilícita ou abusiva.
            De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, em ‘‘Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor’’, há apenas uma ineficácia episódica do ato constitutivo da pessoa jurídica, quando o juiz ignora sua existência.
            Em ‘‘Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica’’ (RT 528/16), assinala o comercialista Rubens Requião: ‘‘O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-los, escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, comete, sem dúvida, um ato abusivo, atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio das relações jurídicas.’’
            Acentua o ilustre professor: ‘‘Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude com o abuso de direito ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.’’
            Não custa lembrar que, antes do CDC, a jurisprudência brasileira já vinha adotando a doutrina da desconsideração para afastar a autonomia da pessoa jurídica, com o objetivo de atingir a pessoa física responsável pela fraude ou abuso de direito.
            ‘‘Nessa medida’’, observa Genacéia Alberton, ‘‘as soluções processuais eram resolvidas casuisticamente.’’ Agora, com o CDC, a desconsideração é prevista expressamente.
            Quanto a este aspecto, a questão da desconsideração deve ser dirimida previamente pelo juiz, no momento de examinar, de ofício, as condições da ação ou provocado pela parte-ré, se argüida a ilegitimidade passiva ‘‘ad causam’’.
            No entanto, Genacéia Alberton Ressalva que, ‘‘como as situações embasadoras da desconsideração podem emergir no decorrer da instrução do processo, deve-se aceitar a possibilidade de o juiz desconsiderar a pessoa jurídica independentemente de postulação da parte autora’’.
            A norma do art. 28 do CDC é dirigida fundamentalmente ao juiz. O Código tem caráter protetivo e, como tal, se presentes as circunstâncias previstas no dispositivo referido, o julgador pode descobrir o véu da pessoa jurídica para atingir as pessoas físicas que dela fazem parte. O magistrado, porém, precisa observar o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa.

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