sábado, 17 de maio de 2014

A reforma psiquiátrica no Brasil: eu preciso destas palavras



Psychiatric reform in Brasil: i need these words

La reforma psiquiátrica en el Brasil: yo necesito de estas palabras


Raul Fernando Sotelo PrandoniI; Maria Itayra Coelho de Souza PadilhaII
IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq. Psicólogo. Membro do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem
IIDoutora em Enfermagem. Profa. Adjunto do Depto de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Sub-Coord. do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem. Pesquisadora do CNPq



RESUMO
O presente artigo trata de uma reflexão sobre a história da loucura e do sofredor psíquico a partir da criação dos espaços de exclusão e da lógica do confinamento como prática terapêutica. Em contraponto apresenta a realidade sanitária brasileira nos anos 70 e o surgimento dos movimentos sociais que consolidam seus anseios na Carta Magna de 1988 possibilitando, assim, o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Palavras-chave: História. Psiquiatria, Confinamento

ABSTRACT
This article is a reflection about the story of madness and the psychic sufferer from the creation of excluding spaces and the logic of confinement as therapeutical practice. On the other hand it presents the Brazilian sanitary reality in the 70's and the appearance of social movements that consolidated its wishes in the 1988 Constitution, thus allowing the existence of the Brazilian process of psychiatric reform.
Keywords: History. Psychiatric. Confinement.

RESUMEN
El presente artículo procura retratar una reflexión sobre la historia de la locura y del sufridor psíquico a partir de la creación de los espacios de la exclusión y de la lógica como una práctica terapéutica. En contrapartida se presenta la realidad sanitaria brasileña en los años 70 y el surgimiento de los movimientos sociales que consolidan sus deseos en la Carta Magna de 1988 posibilitando, de esta manera, el proceso de la Reforma Psiquiátrica en el Brasil.
Palabras clave: Historia. Psiquiatría. Confinamiento.



CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A relação entre a história de lutas e conquistas pela inclusão social do sofredor psíquico no Brasil é a expressão "Eu preciso destas palavras". O título desta revisão histórica faz referência a uma parte da obra "Bordados de uma Existência" de Arthur Bispo do Rosário e, é, a ele que dedico esta parte do trabalho. Arthur Bispo do Rosário esteve durante quase meio século de sua vida internado na Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro. Morreu em julho de 1989, após ter-nos legado uma obra extraordinária. Caracterizou-se, por ser um artista incomum e reconhecido internacionalmente por sua produção que, sem dúvida, representa um testemunho verdadeiro da sua grande capacidade estético-expressiva humana.
Em 1982 pela primeira vez sua obra foi apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sob o nome de "A Margem da Vida". Internacionalmente conhecido, representou o Brasil na 46ª Bienal de Veneza. É, por isto, que através dele, como um ser humano inigualável, o que este artigo pretende é fazer uma homenagem aos "loucos de todo gênero" que em nome da "cura" foram e são excluídos nos manicômios brasileiros pela ciência "Psi".
A cada ano têm crescido, no Brasil, em qualidade e quantidade, as manifestações político-culturais por uma sociedade sem exclusão. Em 1986, aconteceu o histórico congresso, chamado II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, na cidade de Bauru/São Paulo, que desencadeou e possibilitou a criação de um Movimento de caráter nacional chamado Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Este Movimento é partícipe direto das lutas e conquistas na busca da inclusão social do sofredor psíquico. É um movimento plural, independente e autônomo que mantém parcerias com outros movimentos sociais. Em sua trajetória, este Movimento, avançou de uma posição de características de trabalhadores de saúde mental, para um movimento social mais amplo que visa uma intervenção política na sociedade.
Pretendemos, também, mostrar as formas de encarar e compreender a loucura. A loucura, palavra "cheia" de sentido e significado, imagem e símbolo da transgressão às regras sociais. A loucura, como uma das facetas da sociedade, se apresenta no quotidiano com um "colorido" de imagens, analogias e máscaras as mais diversas. Observa-se sobre a loucura, portanto, em cada cultura, em cada sociedade, nos diferentes períodos históricos, uma compreensão e ações próprias do período.
Temos como objetivos deste texto à realização de reflexão histórica sobre o desenvolvimento da loucura nos diversos tempos; as respostas dadas pela sociedade a esta questão e àqueles determinantes para o surgimento de uma nova forma de compreensão da loucura, através dos princípios e diretrizes do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

AS CIDADES INVISÍVEIS
Acreditamos que seja necessário antes de entrar nestas cidades conhecer a fonte de inspiração desta escolha. Existem duas referências que marcam esta denominação: uma, o livro Cidades Invisíveis1 que nos fala de dois personagens o Sultão - que nunca saiu de seu palácio e conhece o mundo esuas cidades, a partir das histórias contadas por Alexandre Magno em suas viagens de conquista pelo mundo; e a outra, especificamente, tem relação com a obraVigiar e Punir que ao retratar a construção dos asilos refere: "uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado para tornar visíveis os que nela se encontram "[...] uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos"2:154.
Na história, dois fatos combinados, no século XVIII, dão começo à sistematização da clausura e a criação dos hospícios. Um deles, o nascimento do racionalismo moderno que, com seu fundador Descartes é decretada a incompatibilidade absoluta entre a loucura e o pensamento (entre a razão e a desrazão) e, o outro, o início da revolução industrial que, ao modificar o modo de produção, passa a implementar uma lógica burguesa de retidão moral e trabalho. No mesmo século, dado o alto número de mendigos, vagabundos, desviantes, ladrões e prostitutas começa-se a colocar nos asilos esta mistura de seres humanos que incomodam a sociedade da época e ao poder constituído. A sociedade encontra como fórmula de controle social criar espaços de confinamento para estas multiplicidades humanas.
Pela primeira vez, na história do ocidente europeu, tem início o enclausuramento dos desatinados, ao invés, do que ocorria na Renascença, quando estes, circulavam livremente pelas cidades, campos, mares e rios.
Philippe Pinel em 1798 ao libertar os loucos de suas correntes e, colocá-los em um lugar específico o hospício; alia o poder da clausura ao saber médico, surgindo, assim, a incipiente psiquiatria. A história atribui a ele a consideração dos doentes mentais como objeto de análise da medicina, a classificação e tipificação das doenças mentais e a liberação dos loucos de suas correntes, introduzindo o Tratamento Moral como forma de terapêutica. Por tudo isso é denominado "Pai da Psiquiatria".
Ao analisar a história da psiquiatria podemos assinalar que poder e saber se transformam em uma unidade. "O Indivíduo é uma produção do poder e do saber"3:XIX. A afirmação de Foucault revela que a medicina para a construção de seus saberes e práticas necessita da instituição encarregada de assistir os doentes transformando-se, assim, na detentora legítima de poder sobre a doença, na qual, ao intervir, constrói um novo saber.
O saber, "[...] virá a ser a chave do poder [...]A experiência e a razão se fundem para permitir ao homem transformar e dominar o mundo"4:26. E o laboratório desse saber, sem dúvida, será o hospício. "O Nascimento do hospício também não destruiu a especificidade da loucura. Antes de Pinel e Esquirol é que o louco era um subconjunto de uma população mais vasta, uma região de um fenômeno amplo e que determinava a configuração como desrazão. É o hospício que produz o louco como doente mental, personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder"3:XIX. Como podemos observar, o discurso médico transforma a loucura em doença mental e o corpo do doente em objeto do saber e espaço da doença. Em síntese, a combinação do racionalismo moderno com a revolução industrial traz como conseqüência a exclusão do louco para benesse da sociedade e o surgimento da psiquiatria como possibilidade de integrar poder e saber a uma especialidade. Ambos os fatos, são construídos no interior de uma rede de poder que tem como função social uma relação pedagógica de hegemonia entre a medicina e a sociedade. Portanto, numa sociedade onde o que importa são os indivíduos por um lado e o Estado por outro e não mais a comunidade e a vida pública, as relações só podem ser reguladas numa forma inversa ao espetáculo e, portanto, os aparelhos de exclusão, entre eles o hospício, entram em funcionamento.
A necessidade de se criar um espaço de internamento é, antes, de qualquer outra coisa, uma necessidade imposta pelas mudanças que se operam na sociedade: "antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos ou que pelo menos gostamos de supor que tem, o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura. O que o tornou necessário foi um imperativo de trabalho"5:63. A concordância com essa mesma idéia, ainda indica que:"para a moral social a ociosidade precisa de uma punição. A lei não mais condena, pois interna-se como insanos, os que são pobres, pretos, estrangeiros, ou sem-trabalho"6:60.
De uma maneira global poderíamos supor que o crescimento do internamento como uma das intervenções da psiquiatria, nesse social, faz parte de uma estratégia de controle social, editada pela moral imperativa. Tanto é, que no século XVIII o problema do louco passa a ser um problema de polícia: "agora, ele vai destacar-se sobre um fundo formado por um problema de "polícia", referente a ordem dos indivíduos na cidade"2:172.
Todo processo histórico traz em seu bojo alguns aspectos centrais para o desenvolvimento da sociedade em determinado período. Esses processos não surgem subitamente, vão se repetindo, se recortam, se juntam, se apoiam uns sobre os outros até, que, estes passam a esboçar a fachada de um método geral. "O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade, mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama disciplina"2:172.
No final do século XVII, com o advento da peste, se faz necessário um controle da epidemia através de inúmeros regulamentos que são impostos à sociedade do período. Sendo, a inspeção o principal deles, o confinamento domiciliar é a estratégia utilizada pelo poder para controle dos indivíduos. A peste, portanto, suscitou esquemas disciplinares enquanto a lepra impôs esquemas de exclusão. O leproso era visto dentro de uma prática de rejeição e que traduzia a menor valia dessa massa populacional. Já a peste, ao promover um policiamento tático meticuloso, na qual importam as diferenças individuais, realiza recortes finos, separa e divide a população. A primeira é caracterizada pela sua divisão e a segunda pelos seus recortes. "O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de controlar suas relações, de desmanchar suas perigosas misturas"2:175.
O internamento é, assim, uma medida política oriunda do final do século XVII, posterior ao confina-mento domiciliar."A internação é uma criação institucional própria ao século XVII, como medida econômica e precaução social ela tem valor de invenção"5:78.
A forte definição acima traduz uma manifestação essencial da sociedade que incidirá principalmente sobre o louco. É, portanto, no século XVIII que se concretizarão as práticas de internação com relação à loucura considerando-a como um desatino. Nesta categoria, entram, também, certas formas de pensamento libertino que são comparadas ao delírio e a loucura, magia, práticas de profanação e sexualidade (despudor).
O tratamento aplicado aos doentes venéreos é igualmente empregado ao tratamento da loucura no final do século XVIII, exemplo disso as Petites Maisons da rua Sèvres em Paris. "O tratamento dos doentes venéreos é desse tipo: trata-se de remédio ao mesmo tempo contra a doença e contra a saúde em favor do corpo mas a custa da carne [...] Esse parentesco entre as penas da loucura e a punição da devassidão não é um vestígio de arcaísmo na consciência européia [...] ao inventar, na geometria imaginária de sua moral, o espaço do internamento, a época clássica acaba de encontrar ao mesmo tempo uma pátria e um lugar de redenção comuns aos pecados contra a carne e a falta e contra razão5:86-7.
A rápida difusão dessas experiências tem como função corrigir, não sendo fixado ao doente um prazo de cura, mas, sim, uma possibilidade de arrependimento. O tempo marcado para o internamento é, portanto, um tempo moral. Tempo para que o "castigo" cumpra seu efeito.
Essas modalidades de atenção a serviço da política de Estado vigente, criam as condições necessárias para o surgimento de novas formas de produção, inaugurando a produção industrial. Era preciso confinar os vadios, vagabundos, ociosos, tendo em vista a valoração do trabalho, ideologia pregada pela classe burguesa que necessita implementar o trabalho como corolário de um povo. Ainda, com referência à ideologia empregada pela classe burguesa na relação estabelecida com a moral e o trabalho, pode-se destacar que: "Nasce assim o hospital geral, uma instituição moral encarregada de corrigir uma certa "falha" moral, de castigar o que não é merecedor dos tribunais do homem, mas que pode ser corrigido pela severidade da penitência"6:53.
A ética vigente, muitas vezes mascarada, através da ideologia, é manifesta nas práticas médicas que assumem o poder que lhes é outorgado pelo Estado. A transformação necessária de uma sociedade e o sentido de recuperação de suas forças pode estar atrelado a um sistema produtivo excludente e que imprime seus limites ao criar um padrão desigual para a reprodução da força de trabalho. "Se a sociedade por sua desorganização e mau funcionamento, é causa de doença, a medicina deve refletir e atuar sobre seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais visando a neutralizar todo o perigo possível. Nasce o controle das virtualidades; nasce a periculosidade e com ela a prevenção"7:155.
Não discutiremos aqui as objeções apontadas a esse modelo, nem aos movimentos sociais que, no passado, não conseguiram estabelecer formas de resistência às instituições que controlam o social, mas cabe redefinir um papel à medicina no interior da sociedade.
A medicina é responsável pela criação de novas tecnologias capazes de controlar indivíduos ou populações tornando-os produtivos e inofensivos. Ampliando esse conceito: "a medicina social esteve, desde a sua constituição, ligada ao projeto de transformação do desviante"7:156.
O médico, agora, transformado em cientista social, reproduz o hospital em uma máquina de curar. "O hospício como enclausuramento disciplinar do louco tornado doente mental; inaugura o espaço da clínica condenando formas alternativas de cura; oferece um modelo de transformação à prisão e de formação à escola"7:155. Na verdade, tanto o esforço de enclausuramento de uma massa populacional pela medicina quanto às estratégias de poder disciplinar manifestas na escola, no quartel, ou mesmo em diversos aparatos institucionais seguem a mesma lógica: propagar as idéias oriundas de uma classe que detém o poder.
A medicina não é, portanto, uma ciência neutra mas, sim, uma ciência política formulada por especialistas a serviço do aparelho estatal.
Sem dúvida, desenvolveu-se nessas experiências, a partir do grande enclausuramento, inúmeras práticas político-econômicas que deram os seus frutos o disciplinamento do social. Ainda, hoje, às práticas de internamento têm, portanto, as mesmas finalidades. A punição generalizada entre os internos segue sendo a alternativa de eleição de "tratamento" ao sofredor psíquico.
A punição tem uma função social complexa e, em relação aos castigos, adota uma tática política. A afirmação do autor revela a precariedade de uma prática médica, perenemente necessitada de legitimação2.
Esse fenômeno, em nossos dias, recebe variadas classificações. A medicina como ciência se encontra no centro de processos sociais e tem como finalidade à manutenção do controle social. "[...] em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recoloca-dos em uma certa "economia política" do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos "suaves" de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão"2:27-8.
Vemos na realidade atual as mesmas mazelas de outros tempos. Creio que é importante destacar, como exemplo dessas mazelas em nossos dias, os resultados apresentados no Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada no Brasil no ano 2000 8, que traz uma amostra da realidade manicomial brasileira. Esta Caravana ao percorrer, ao longo de 12 dias, o País retrata-nos uma situação caótica, anacrônica da atenção à saúde mental. Uma visão daqueles seres humanos que permanecem esquecidos e abandonados atrás dos muros e grades da rede manicomial brasileira. Os integrantes dessa Caravana, como bem o relata o Deputado Marcos Rolin, não poderão esquecer os olhares, as súplicas, os sorrisos, as esperanças, as sínteses surpreendentes. E, talvez, a marca mais clara da instituição manicomial possa ser resumida no depoimento de um paciente ao lhe perguntarem a quanto tempo estava internado: - Há 600 anos.

BAILEI NA CURVA
Balei na Curva é o nome da peça teatral que retrata os anos 60 e o movimento de resistência da juventude brasileira frente ao processo de ditadura militar. Esta expressão, bailei na curva, procura dar não só sentido mas, significado ao tema a ser desenvolvido neste item. No panorama internacional dos anos 70, os países capitalistas desenvolvidos e em desenvolvimento se apresentam respondendo de maneira diversa a uma mesma crise econômico-financeira internacional que se origina a partir da ruptura do padrão dólar, a crise do petróleo e a alta dos juros nos países periféricos.
No Brasil, as estratégias de desenvolvimento sofreram uma alteração a partir do veto da burguesia empresarial brasileira à proposta de solução do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento do Governo Geisel, o que antecipou a crise da dívida externa impedindo ao Estado continuar com o papel tradicional de desenvolvimento econômico.
Nesse mesmo período, o Brasil apresenta, portanto, profundas desigualdades na distribuição pessoal e regional da renda e da riqueza. O panorama demográfico e epidemiológico, por si só, promove a contínua ampliação do quadro de necessidades sociais a serem satisfeitas. Se o quadro brasileiro, revelado pelos indicadores sociais, sempre foi dramático como resultado da estagnação econômica que atravessa o País, o regime político autoritário do governo militar sofre, concomitantemente, em 74, uma decisiva deserção na coalizão aliada em torno do movimento militar de 1964. Neste sentido, a anistia, a reforma partidária de 1979 e as mudanças eleitorais de 1981 fazem com que surja na arena política um período chamado de transição democrática.
No período que corresponde á ditadura militar no Brasil, curiosamente, teve-se a expansão dos hospitais psiquiátricos privados. "... após a instauração do regime militar em 1964, onde se estende a cobertura psiquiátrica a toda a população-período chamado de milagre brasileiro- e não só aquela população de indigentes passa a viver a chamada "psiquiatria de massa" no País. É a instauração da "indústria da loucura"6:54.
Nesta década o doente mental se transforma em mercadoria e sua doença é fonte de lucro, mantendo-se, com isso, um sistema assistencial que tem como única finalidade o lucro e não a recuperação da saúde do sofredor psíquico.
"Na área da saúde mental a associação da política privatizante com a inexistência da cidadania do doente mental e a conseqüente ação tuteladora do Estado-respaldado em uma legislação preconceituosa e anacrônica - permitiram o florecimento de um vasto sistema de hospitais psiquiátricos particulares que, somando-se às instituições públicas existentes, consolidou um modelo assistencial asilar completamente falido, excludente, discriminatório, perverso e corrupto"9:59.
No início dos anos 80, a pressão social faz surgir, então, um movimento de mobilização nacional denominado "diretas já". É, neste contexto, que a nova Constituição de 198810, representa um primeiro passo ao consagrar um novo regime político e operar profundas transformações ao propor uma ampla reforma no Setor Público.
Na medida em que se apresentam mudanças na esfera política, ocorre, também, profundas mudanças na organização do Estado. A total dependência das economias latino-americanas em relação às instituições internacionais (FMI, Banco Mundial, BIRD), contribuem, para que os governos latino-americanos adotem, para o enfrentamento das crises econômico-financeiras, estratégias e medidas de caráter recessivo. Estas estratégias de redução do gasto público trazem consigo medidas que afetam aos setores sociais mais frágeis na negociação dos recursos públicos em comparação aos setores mais fortes e resistentes da sociedade.
A Centralização do poder do Estado no período do governo militar é substituída paulatinamente por uma descentralização do poder que responde a uma estratégia de redução dos gastos públicos. A proposta de descentralização opõe-se as expectativas de universalização dos direitos sociais gerados no recente processo de transição democrática.
A discussão da Carta Constitucional, no final dos anos 80, implicou uma grande complexidade de idéias, estratégias e interesses entre setores conservadores e setores progressistas. As estratégias e alternativas apresentadas para a superação da crise fazem com que os setores progressistas saiam vitoriosos dessas discussões onde são assegurados pela Constituição de 198810 aspectos como a universalização dos direitos, a equida-de na atenção a saúde, o controle social como possibilidade de maior fiscalização das políticas públicas, entre outras.
É nesse marco, que a descentralização entendida como parte da estratégia de democratização além, de ser uma formulação técnico-administrativa, assume valores políticos de universalização, de equidade e de controle social que não respondem a uma perspectiva racionalizadora. Esta descentralização, entendida como deslocamento de poder é o eixo da Reforma Sanitária. "A Reforma Sanitária é um processo político-institucional de transformação da consciência sanitária e das instituições de saúde no sentido de resgatar a cidadania e garantir o direito universal de saúde"11:34.
Os novos modelos de organização do sistema de saúde na América Latina, e, particularmente no Brasil resultaram na formulação das Leis Orgânicas da Saúde12 na década de 90. Fruto, ainda, da Constituição de 1988 que registra de modo expressivo a existência do direito à saúde como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, penetra na consciência dos brasileiros, a concepção de que "... a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação"10:98,é a consolidação, portanto, de um Sistema Único de Saúde (SUS).
A partir da Carta Constitucional10 é obrigação do Estado garantir aos seus cidadãos ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde e assegurar uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada (hospitais, postos de saúde), e, a execução de ações de saúde, entre elas a vacinação, por exemplo. A Lei Orgânica da Saúde12 que regulamenta o SUS traz como compreensão da saúde um conceito ampliado de bem estar que está condicionado às questões de alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, educação, meio ambiente, lazer e renda12. A outra Lei, 8.142 implementa a participação da comunidade na gestão do SUS13. Esta participação popular como possibilidade de um maior controle social das políticas públicas em saúde acontecem através das Conferências e dos Conselhos de Saúde. Estas Conferências ocorrem a cada quatro anos e tem como objetivo avaliar a situação da saúde e propor diretrizes para as políticas públicas de saúde. São realizadas com a participação dos diversos setores da sociedade civil organizada. Sua convocação é realizada pelo poder executivo (governo) de cada esfera e acontecem em todos os níveis: municipal, estadual e federal.
Os Conselhos de Saúde diferentemente das Conferências tem um caráter permanente de atuação local na fiscalização das ações de saúde, formulação de estratégias e controle das políticas de saúde. São compostos proporcionalmente por segmentos que representam o governo, os prestadores de serviço, profissionais da saúde e usuários do sistema de saúde.
A implantação e implementação do SUS enfrentou no passado e, hoje, ainda, enfrenta, inúmeros obstáculos importantes e sérias resistências as mudanças pretendidas, sobretudo, daqueles setores que lucram com as doenças da população, ou seja, os serviços médicos privados e os laboratórios farmacêuticos.
Como dissemos anteriormente, o Brasil possui uma lei Orgânica da Saúde12. Alguns municípios, também, possuem leis municipais que tratam da saúde e de outros assuntos como educação, organização administrativa e saúde mental. Exemplo disso, o Município do Rio Grande no Rio Grande do Sul onde a finalidade da Lei Orgânica Municipal visa assegurar estas políticas. Estas Leis procuram respaldar as transformações na assistência em saúde mental, incentivando a criação de serviços alternativos, substitutivos à assistência asilar tradicional dos hospitais psiquiátricos.
Foi neste contexto que surgiu no final dos anos 80 o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, movimento este inconformado com as condições de trabalho e pelas condições de assistência ao sofredor psíquico que tem como "único remédio" a internação nos hospitais psiquiátricos do País. Este Movimento Social transformou-se, mais tarde, em Movimento Nacional da Luta Antimanicomial com a inclusão dos usuários dos serviços de saúde mental e familiares nas discussões sobre os rumos da assistência em saúde mental e que traz como bandeira de luta política, o lema: Por uma Sociedade Sem Manicômios.
Neste sentido, acreditamos "que transformar os atores e os modos de intervenção e de reflexão existentes para que as formas de exclusão social, como a internação psiquiátrica, deixem de ser a nossa resposta ao sofrimento psíquico e que, sobre tudo, possibilite a emancipação do doente mental assim como a emancipação de todos nós"14:83.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta não terminou, temos muitos passos a dar para mudar a realidade assistencial prestada ao sofredor psíquico no Brasil.
Pequenos e grandes passos foram dados com o objetivo de alcançar a utopia por uma sociedade sem exclusão. Porém, não adianta banir as grades e destruir as celas fortes. O nosso sonho, talvez nossa utopia, seja a de desconstruir os manicômios mentais.
Ainda fica um desafio pela frente: o de refletirmos e tentarmos compreender, neste século XXI, qual será a função social da loucura?
É muito difícil aventurar uma resposta sendo a pergunta tão complexa. Alguns indícios de sua função já se fazem presentes: a ruptura da condição de "servidores" para a afirmação de trabalhadores de saúde mental; a busca de resgate de cidadania do sofredor através da criação dos direitos dos usuários; a participação de usuários e familiares, no controle social e na implementação das políticas públicas em saúde mental.
A emancipação do trabalhador em saúde mental nos concede, portanto, uma nova história. Na mesma medida em que o trabalhador de saúde mental se emancipa, seu trabalho se humaniza e gera condições propícias para a busca da emancipação do sofredor psíquico.
Exemplo, desse primeiro passo, quando da realização do II Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental, é a participação não só trabalhadores estatais, mas, também, universitários e trabalhadores não estatais. Neste Congresso, as elaborações coletivas versam sobre: saúde mental e trabalho, saúde mental e movimentos sociais e saúde mental e constituinte.
Poderíamos dizer que o I e II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental15 são o marco, portanto, inicial para as lutas emancipacionistas dos trabalhadores, das lutas libertárias e de resgate de cidadania do sofredor psíquico. Acredito, a esse respeito, que o resgate de cidadania do sofredor somente será possível a partir do desenvolvimento pleno de sua capacidade de ser o autor-ator de sua própria existência, ou seja, na mesma medida em que o trabalhador de saúde mental conquista a sua emancipação, o próprio sofredor passa a contar com um importante agente (trabalhador) em suas buscas de autonomia e cidadania.
A Constituinte10 foi, no Brasil, um importante avanço para o resgate de cidadania do doente mental. Historicamente, a formação social do Brasil, semelhante a outros países, está articulada à criação de leis e diretamente vinculada à produção dos indivíduos que irão preencher a demanda que constitui o corpo coletivo do trabalho. Portanto, este coletivo ao deixar o louco de fora, abre, imediatamente, uma brecha entre ele e o trabalhador que se verá refletida na perda de seus direitos como cidadão. Não podemos esquecer que o status de cidadania está ligado aos processos de produção de bens e o status do louco está ligado a antiprodução.
A grandiosidade dos sujeitos trabalhadores de saúde mental é reconhecer que eles fazem parte do processo de formação social. Então, daí deriva a necessidade de mudança, pois, eles (trabalhadores) reconhecem que sua função de produção (trabalho) dentro das instituições totalizadoras é produtora de doença. Portanto, embora, seja para nós, trabalhadores de saúde mental, um grande desafio, ajudar o sofredor psíquico a encontrar novas formas de se relacionar com a vida, esta tarefa se torna mais difícil quando o sofredor é estigmatizado como louco e privado de seus direitos.
Na medida em que reconheçamos os nossos erros ancestrais, que possamos transformar nosso cuidado na relação com o sofredor e compreendê-lo em sua singularidade e diferença, mudaremos nossa representação social da loucura.
Conquistamos a Lei Federal 10.21616 de proteção ao sofredor psíquico, no ano de 2001, mas não podemos esquecer uma realidade que fere os olhos de nossa humanidade: que são aqueles milhares de brasileiros enclausurados e punidos por práticas repressivas, ainda hoje existentes nos manicômios do País. Por tudo isso, se faz necessário que persista a mobilização social "por uma sociedade sem manicômios" como foi formulado pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. E mais, devemos nos articular politicamente frente aos governos, em todos os seus níveis, para a concretização e abertura de novos serviços alternativos. Serviços que desenvolvam no cuidado uma abordagem antimanicomial e com trabalhadores capacitados para tais fins, onde a ética do cuidado esteja centrada no respeito e na solidariedade a esse cidadão-sofredor16.
Retomamos, ao final deste artigo, as palavras da Graça Fernandes proclamadas no I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial: "é possível existir"15.

REFERÊNCIAS
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16 Ministério da Saúde (BR) Lei n10.216 de 06 de abril de 2001, dispõe sobre a saúde mental proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e rediciona o modelo assistencial. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 6 de abril de 2001.         [ Links ]
16 Gelbcke F, Padilha MIC S. O fenômeno das drogas no contexto da promoção da saúde. Texto Contexto Enferm 2004 Abr-Jun; 13(2):272-9.         [ Links ]


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