Publicado em 16.03.2014
Há décadas cientistas têm se frustrado com as tentativas de criar uma vacina que proteja as pessoas de todos os quatro tipos de vírus da dengue. Porém, pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte (EUA) descobriram um novo alvo para anticorpos humanos que pode ser a chave para uma vacina contra a doença transmitida por mosquitos mais comum do mundo.
Usando uma técnica experimental nova no campo da dengue, os laboratórios de Ralph Baric e Aravinda de Silva mostraram que os anticorpos humanos naturais se anexam à dengue 3 para desativá-la em uma dobradiça molecular onde duas regiões de uma proteína se conectam. A descoberta, publicada na revista “Proceedings of National Academy of Sciences”, mostra que, após a infecção primária, a maioria dos anticorpos humanos que neutralizam o vírus se ligam à região da dobradiça.
Este é o primeiro estudo a demonstrar como estes locais de ligação – compostos por apenas 25 aminoácidos – podem ser geneticamente trocados por aminoácidos de outro tipo de dengue, sem perturbar a integridade do vírus. “Isso nos dá uma série de dicas sobre como anticorpos humanos funcionam”, disse Silva, professor de microbiologia e imunologia da Faculdade de Medicina da UNC. Para o indiano, podem existir ainda muitas outras aplicações clínicas para a descoberta, auxiliando na criação de vacinas contra outras doenças.
Silva e Baric – professor ligado à Faculdade de Medicina e à Faculdade Gillings de Saúde Pública Global, ambas da UNC – estão agora trabalhando com desenvolvedores de vacinas em duas empresas farmacêuticas para testar a eficácia de potenciais vacinas de dengue que estão agora em ensaios clínicos. Se estas vacinas não se ligarem à dobradiça molecular, então é provável que elas sejam menos eficazes do que os pesquisadores desejam, em especial à longo prazo.
A dengue, que infecta cerca de 390 milhões de pessoas a cada ano, é comum em regiões tropicais e subtropicais de todo o mundo. Segundo um estudo do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, de 2000 a 2010, mais de 8,44 milhões de pessoas contraíram dengue no Brasil – o maior volume em todo o continente americano no período. Destes, 221 mil eram casos graves, com mais de 3 mil mortes.
Do início do ano até 21 de setembro de 2013, foram notificados 1,4 milhão de casos de dengue no país, segundo o Ministério da Saúde. O número é três vezes maior do que o registrado no mesmo período do ano anterior. A Região Sudeste concentrou o maior número de casos (63,6% do total). Em seguida vêm as regiões Centro-Oeste (18,4%), Nordeste (9,9%), Sul (4,8%) e Norte (3,3%).
Fazer uma vacina contra a dengue verdadeiramente eficaz tem sido difícil por causa de um fenômeno chamado aprimoramento de anticorpo dependente. As pessoas infectadas com um tipo de dengue costumam desenvolver uma resposta imune natural que liberta o corpo do vírus e evita que a infecção do mesmo tipo de vírus se repita. Mas, se estas pessoas são infectadas com um segundo tipo de dengue, o vírus é reforçado em função daquela primeira resposta imunitária. O resultado pode ser dengue hemorrágica grave, que pode ser mortal.
Consequentemente, uma vacina que ofereça a imunidade para apenas um tipo de dengue faria com que os outros tipos se tornassem mais virulentos e perigosos. O primeiro grande ensaio clínico de uma vacina contra a dengue, realizado na Tailândia em 2011, continha um coquetel de todos os quatro tipos do vírus. Contudo, por razões que permanecem um mistério, a vacina era apenas parcialmente protetora. Não houve nenhuma evidência de que ela tenha protegido as pessoas durante um surto de dengue 2 ocorrido naquele mesmo ano.
Para estudar a dengue, Silva e seus colegas coletaram amostras de pacientes infectados do Sri Lanka e dos Estados Unidos – estes últimos contraíram a doença no exterior, já que o clima norte-americano não favorece a proliferação do mosquito Aedes aegypti. Tais amostras permitiram que a equipe de Silva descobrisse que os anticorpos humanos não são os mesmos que os de camundongos, que serviram de base para o desenvolvimento de vacinas anteriormente.
Silva observou que os anticorpos dos ratos se trancavam em uma região de uma proteína que forma um revestimento externo no vírus. Os anticorpos humanos raramente reconhecem esta região. Ao invés disso, ligam-se a uma área diferente, na qual duas partes da proteína exterior se conectam. Silva chama essa região de dobradiça epítopo. Um epítopo é qualquer parte de uma substância estranha a que um anticorpo humano se conecta.
Para provar a importância da dobradiça, Silva recorreu a Baric, especialista em novas formas pioneiras de manipular genes em vírus, utilizando principalmente os norovírus e coronavírus como modelos. Usando os conhecimentos de Silva e a estrutura do vírus da dengue, Baric foi capaz de identificar o domínio estruturalmente complexo e não linear da dobradiça de 25 aminoácidos e removê-la de partículas da dengue 3. Seu grupo, em seguida, desenvolveu estratégias para recuperar o vírus da dengue de clones de DNA e substituir a dobradiça da dengue 3, com uma cadeia de 25 aminoácidos replicados de dengue 4. Essencialmente, Baric transformou a dengue 3 em 4.
O vírus geneticamente mutado sobreviveu e cresceu em culturas celulares e em primatas. Então, os pesquisadores o expuseram aos anticorpos que tipicamente se ligam à dengue 3. Entretanto, eles não tiveram nenhum efeito sobre a dengue geneticamente modificada. Depois, os cientistas demostraram em linhas de células que o vírus poderia ser neutralizado por anticorpos dirigidos contra a dengue 4. Em colaboração com pesquisadores da Universidade de Porto Rico, Silva e a equipe de Baric conseguiram mostrar que o novo vírus infectou primatas, que desenvolveram anticorpos contra a dengue 4.
“Esses resultados equivalem a uma mudança de paradigma”, afirmou Baric.
Agora, Silva e Baric estão conduzindo experimentos semelhantes com dengue 1 e 3. Se eles puderem isolar os principais epítopos para cada tipo de dengue, o resultado poderia ser a base para uma vacina contra os quatro tipos da doença.
A dupla está usando seus resultados para estudar por que os anticorpos se ligam a um epítopo específico, mas não a outros locais. Tal informação poderia dar ainda mais insights sobre como desenvolver vacinas eficazes. Além disso, esta pesquisa poderia ser aplicada a outros campos que precisam de vacinas. “A ideia geral é que um lugar de interação de proteínas complexas agora pode ser movido de um vírus para outro”, resume Silva. Por exemplo, um epítopo de um vírus como o da hepatite C pode ser deslocado para o vírus vivo utilizado na vacina do sarampo. Este novo vírus quimérico simultaneamente ofereceria às pessoas proteção contra hepatite C e sarampo.
“Pode ser que nós nem precisemos de um vírus”, opinou Silva, acrescentando que talvez os pesquisadores só precisem criar o epítopo a que sabem que os anticorpos podem se conectar, que serviria como a vacina. [Science Daily, UOL Saúde, Tribuna Hoje]
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