terça-feira, 29 de abril de 2014

Justiça, validade e eficácia das Normas Jurídicas

Carlos Henrique Bezerra Leite
Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho
Professor de Direito do Trabalho da UFES, UVV/ES e EMATRA/ES
Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP
Membro Titular da Academia Nacional de Direito do Trabalho
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Um dos temas de maior complexidade e importância, não só para juristas e operadores do direito, mas também para filósofos, lógicos e sociólogos, é o que diz respeito aos estudos relacionados à justiça, à validade e à eficácia das normas jurídicas.
Saber se uma norma jurídica é justa ou injusta, válida ou inválida, eficaz ou ineficaz redunda, respectivamente, nos problemas da justiça, da validade e da eficácia da norma jurídica.
Sobreleva destacar, de início, a existência de acirrada cizânia entre juristas e filósofos, no concernente àqueles problemas, a começar pelas diversas denominações e conceitos das expressões "justiça", "validade" e "eficácia".
De outra parte, divergem os defensores do juspositivismo, do jusnaturalismo e do realismo jurídico sobre a aplicação da teoria da justiça nos domínios do direito positivo e da Ciência do Direito.
Procuraremos, nas linhas que seguem, examinar os ensinamentos de Norberto Bobbio(2), comparando-os com os de outros autores, destacando, principalmente, o pensamento de:
a) Gustav Radbruch, Eberhard Schimidt e Hans Welzel(3), os quais, na mesma obra, tratam, respectivamente: (i) do problema da justiça, (ii) dos exageros que o jusnaturalismo provoca na doutrina e na jurisprudência, colocando em perigo a segurança jurídica e (iii) das experiências passadas, sobretudo do regime nazista, que podem proporcionar um nova visão do Direito, no sentido de evitar repetição dos mesmos fatos e assegurar tanto o valor da justiça quanto o da segurança jurídica;
b) Miguel Reale(4), que trata da "Teoria da Justiça" nos seus multifários aspectos e dos conceitos relativos à tridimensionalidade do direito;
c) Karl Larenz, que cuida, em duas obras, da discussão metodológica, da passagem da "jurisprudência de interesses" à "jurisprudência de valores", dos critérios de valoração supralegais, da busca da solução justa do caso concreto, da tópica e procedimento argumentativo e da discussão filosófica relativa à justiça(5), bem como dos fundamentos do chamado "Direito justo"(6).
d) José Eduardo Faria(7), que enfrenta os problemas da legitimidade, legalidade e efetividade à luz da teoria geral da norma jurídica sob o enfoque das reduções normativistas e realistas.
Buscaremos, ao final, formular algumas conclusões sobre as diversas considerações e propostas lançadas pela doutrina alienígena em confronto com a doutrina pátria.
2. DENOMINAÇÕES
Não há a desejável uniformidade doutrinária no tocante ao emprego das expressões justiça, validade, validez, vigência e eficácia.
Há autores, como Miguel Reale(8), que utilizam os termos (i) validade formal ou técnico-jurídica no sentido de vigência; (ii) validade social no sentido de eficácia ou efetividade e (iii) validade ética no sentido de fundamento da norma jurídica.
Outros, como Paulo de Barros Carvalho, preferem as expressões vigência, eficácia técnica, eficácia jurídica e eficácia social:
"Tudo vai depender, reafirme-se, do corte promovido para isolamento do objeto, importando apenas conferir coerência das conclusões, em face das premissas estabelecidas"(9).
Segundo o referido publicista, é imprópria a utilização da palavra "validade" como predicado, isto é, como qualidade adjetivante de regra jurídica, pois, de acordo com o esquema cognoscitivo que adota (kelsenianismo), o simples fato de "pertencer ao sistema é a condição mesma de sua existência enquanto norma"(10).
Tercio Sampaio Ferraz Junior(11) sublinha que a questão da validade das normas (e do ordenamento) é uma questão zetética, portanto uma questão aberta. Uma definição zetética exige distinção entre validade e existência, entre validade de normas jurídicas e de outras normas, como as morais. Do ângulo dogmático, a questão é fechada, tecnológica, isto é, uma questão de identificá-la dentro de um dado ordenamento jurídico.
Luiz Antonio Rizzatto Nunes admite que a validade
"tanto pode referir-se ao aspecto técnico-jurídico ou formal quanto ao aspecto da legitimidade. No primeiro caso, fala-se de norma jurídica ser válida quando criada segundo os critérios já estabelecidos no sistema jurídico: respeito à hierarquia, que tem como ponto hierárquico superior a Constituição Federal; aprovação e promulgação pela autoridade competente; respeito a prazos e quorum; conteúdo de acordo com as designações de competências para legislar. No outro, fala-se do fundamento axiológico, cuja incidência ética seria a condição que daria legitimidade à norma jurídica, tornando-a válida"(12).
Leib Soibelman adverte que
"a maioria dos autores de livros de filosofia do direito utiliza as palavras validade, validez ou vigência como sinônimas. O que varia é o sentido da validade"(13).
Alf Ross(14) distingue três acepções do vocábulo validade:
a) para significar que um ato jurídico tem ou não os seus efeitos desejados (ato válido ou ato nulo);
b) para indicar a existência de uma norma ou sistema de normas (existência fática, existência de fato, existência real de um conjunto de fatos sociais);
c) para indicar a força obrigatória do direito, entendida como qualidade moral.
Tudo está a indicar que para Ross validez é o mesmo que eficácia, na medida em que não atribui ao conceito de validez nenhum caráter normativo, ou seja, que dela não decorre nenhum dever moral de obediência. Validez, seria, então, a forma abreviada com a qual nos referimos ao complexo de fatos sociais que provam a existência da norma.
Hans Kelsen(15) distingue validade de eficácia: a primeira diz respeito à existência de uma norma que obriga a todos a comportarem-se de acordo com ela (dever ser do direito); a segunda concerne à a condição mas não ao fundamento da validez (ser do direito).
Luís Legaz y Lacambra(16) também aponta três sentidos de validade:
a) o que é exigível e obrigatório sob o ponto de vista ético (validez filosófica);
b) como fenômeno social, comportando-se os homens de acordo com os seus preceitos (validez fática ou sociológica do direito, eqüivalendo a eficácia);
c) o que obriga a todos independentemente do seu conteúdo ético, pelo simples fato de ter sido estabelecido como direito, de acordo com as formalidades do sistema legal a que pertence (vigência do direito, legalidade do direito).
No que concerne às relações entre validade e eficácia, há igualmente três posições:
  1. Idealista
Defendida pelos adeptos do Direito Natural. Para os jusanturalistas, portanto, não há nenhuma relação entre ambas, uma vez que a validade do direito é independente da sua eficácia
b) Realista
Para os realistas, validade e eficácia se equivalem, porque dizer que uma norma vale é o mesmo que dizer que ela é acatada e aplicada.
c) Normativista
Trata-se de doutrina capitaneada por Kelsen, para quem a validez é a forma específica de existência do direito como dever ser, haja ou não eficácia (ser) da norma. É dizer, para o autor da "teoria pura" basta que um ordenamento jurídico seja aceito na sua totalidade para neutralizar o fato de uma ou outra norma não ser aceita sempre, e o ordenamento só perde a validade quando deixa de ser eficaz em termos gerais. O que fundamenta a validade de uma norma isolada é uma norma jurídica fundamental que funciona como pressuposto hipotético, como razão lógica que obriga a todos a comportarem-se de acordo com o ordenamento jurídico ou constituição criada em termos gerais, e com as normas decorrentes dessa constituição em sentido jurídico-positivo, que é o direito positivo que pressupõe esta norma fundamental, e esta não se funda em outra norma porque ela é a norma primária, decorrendo de fatos sócio-políticos e considerações de valor).
É verdade que muitos acusam Kelsen de reintroduzir o direito natural (que ele condena), através da admissão em seu sistema, dessa norma fundamental hipotética.
Ross observa, por outro lado, que toda a doutrina do direito natural sempre teve uma grande preocupação com o problema da validade do direito, porque queria ter um critério para distinguir um ordenamento legítimo de um outro baseado simplesmente na força.
3. O PROBLEMA DA JUSTIÇA
O vocábulo "justiça", que deriva de justitia, de justus, quer exprimir o que se faz conforme o Direito ou segundo as regras prescritas em lei(17).
Para Norberto Bobbio(18) o problema da justiça diz respeito à correspondência (ou não) entre a norma e os valores supremos ou finais que inspiram determinado ordenamento jurídico.
Assim, estudar o problema da justiça de uma norma jurídica requer o exame da sua aptidão para o ideal do bem comum.
Adverte, contudo, o mestre peninsular:
"No tocamos por ahora el problema de si existe un ideal del bien común, idéntico en todo tiempo y lugar. Nos basta hacer constar que todo ordenamiento jurídico persigue algunos fines, y aceptar que estos fines representan los valores para cuya realización el legislador, más o menos conscientemente, más o menos adecuadamente, dirige su propia actividad. Cuando se considera que hay valores supremos, objetivamente evidentes, preguntarse si una norma es justa o injusta equivale a preguntarse si es apta o no para realizar esos valores. Pero también en el caso de quien no crea en valores absolutos, el problema de la justicia o injusticia de una norma tiene un sentido: equivale a preguntarse si esa norma es apta o no para realizar los valores históricos que inspiran ese ordenamiento jurídico, concreta e históricamente determinado"(19).
Vê-se, nesse passo, que Bobbio estuda o problema da justiça a partir da análise entre o mundo ideal e o mundo real, entre o dever ser (norma justa) e o não dever ser (norma injusta).
Trata-se, segundo o mestre itálico, de um problema atinente a um juízo de valor ou, mais precisamente, um problema deontológico do direito.
Para estudarmos tal problema é preciso fazer incursões pela "Teoria da Justiça", razão pela qual antes de falarmos sobre norma jurídica justa, é condição necessária saber, antes, o que é justiça.
Só para dar uma idéia da complexidade que gravita em torno do problema, invocamos as palavras de Leib Soibelman, para quem a palavra justiça
"em sentido amplo e vulgar, significa jurisdição, organização judiciária, poder judiciário, serviços judiciários, direito, juízo, razão jurídica, respeito ao direito, alçada, tribunais, magistrados, autoridades judiciais, ministério público, pessoal forense, ofícios de justiça, escrivanias forenses, auxiliares da justiça, lei. O homem comum não faz nenhuma distinção entre direito, justiça e lei. Antigamente sinônimo de execução capital. Ulpiano definiu-a como sendo a vontade firme e permanente de dar a cada um o seu direito (justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere). É uma das noções mais difíceis de definir. É idéia e sentimento, não se sabendo até hoje se é mais uma coisa do que outra. É o ideal que persegue todo o direito, e o fato de ter havido e haver direitos injustos, não destrói esse ideal. Há autores que acham que o direito nada tem a ver com a justiça. Outros dizem que é impossível saber se uma ordem jurídica é justa usando conceitos éticos. Terceiros consideram que a justiça nem é um conceito, mas apenas um pseudo conceito. Todos concordam que é um tema desesperador, inclusive por motivo das variações históricas da idéia da justiça. Para os gregos, para só citar um exemplo indestrutível, a escravidão era uma instituição justa. Justiça é virtude, liberdade, igualdade, racionalidade, boa vontade, boa fé, humildade ante a finitude da vida humana, moderação, etc. É tudo isso e mais do que isso. Hegel tem uma frase que dá a idéia exata da complexidade da justiça: o drama não é a luta entre a justiça e a injustiça, é a luta entre dois direitos igualmente justos. A justiça não é um dom gratuito da natureza humana, ela precisa ser conquistada sempre porque ela é uma eterna procura"(20).
Sublinha Roscoe Pound que em diversas teorias que têm sido formuladas
"considera-se justiça virtude individual ou idéia moral, ou regime de controle social ou fim e objetivo do controle social e, portanto, da lei, ou relação ideal entre os homens, que se procura promover e manter, na sociedade civilizada, e em direção à qual orientamos o controle social, e a lei como forma de maior especialização desse controle. As definições de justiça dependem das diversas maneiras de encará-la"(21).
Assim, os filósofos gregos consideravam a justiça como virtude individual, sendo certo que essa idéia conservou-se nas Institutas de Justiniano: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere(22). Platão afirmava que a justiça é a virtude suprema que harmoniza todas as outras. Aristóteles distinguia justiça universal, considerada mediante leis e exigências da vida na sociedade em geral (virtude completa), da justiça particular, que era caracterizada pela consideração da igualdade (idéia de proporção conforme o mérito). O Estagirita acreditava que o homem isolado do Estado tornava-se "o animal mais maligno e perigoso entre todos"(23), pois estaria jungido apenas a realizar o próprio destino moral do Estado. Sustentava, ainda, que a justiça comutativa (dar a cada um o que é seu) incumbia ao juiz e a justiça distributiva (dar a cada um de acordo com os seus méritos) cabia ao legislador. Modificou-se, assim, a concepção primitiva da lei como instrumento de manutenção da paz para a idéia da lei como meio de preservação do status quo social.
Miguel Reale, para quem a justiça pode ser estudada segundo o predomínio de uma visão subjetiva ou objetiva(24), lembra que:
"O grande mérito de Aristóteles consistiu em procurar uma base estável para a organização da polis, ou seja, da comunidade política, partindo da idéia da natureza (Physis) e, mais particularmente, da natureza humana, concebida a um só tempo nos seus incindíveis aspectos ontológico axiológico (...) Estamos, pois, perante uma Metafísica teleológica, na qual a correlação entre ‘natureza’ e ‘fim’ é a chave compreensiva do devir e do destino humano (...) pode Aristóteles, com admirável rigor lógico, concluir que ‘a justiça é um fenômeno político (estatal), sendo o Direito o ordenamento da comunidade estatal. Esse Direito é também o critério do justo"(25).
Depois de Aristóteles, Reale salienta a posição teológica de Santo Tomás de Aquino, que
"subordina a sua teoria de justiça ao conceito objetivo de lei, ou mais precisamente, de lex aeterna, a qual ordena o cosmos de conformidade com a razão do Legislador supremo, assim como, numa comunidade, a lex humanarepresenta a ordem dada por quem racionalmente a dirige de conformidade com o bem comum"(26).
Reale observa com extraordinária acuidade que a partir da teria tomista surge
"admirável correlação entre a concepção trina da lei e uma concepção trina da justiça, que não é apenas comutativa e distributiva como em Aristóteles, mas também legal, expressando a relação das partes para com o todo, de conformidade com a concepção fundamental de justiça como alteridade (alteritas), isto é, como relação necessária entre os homens, harmonizando-os uns com os outros"(27).
É com Tomás de Aquino, portanto, que a teoria da justiça encontra a perfeição, pelo menos em termos de Direito Natural, retratada pela correlação essencial do binômino bom-justo: o homem deve agir de acordo com o que lhe parece justo(virtude da justiça como elemento fundamental da Ética) como expressão do bem comum (objeto da Política).
Com o advento do Humanismo e do Renascimento verifica-se a tentativa, sem muito sucesso, de redução do problema da justiça aos domínios das convenções humanas (contratualismo). Prefere-se, desse modo, o enfoque subjetivo e voluntarista à antiga correlação racional subjetivo-objetiva entre o justo e o bem(28).
Na época moderna, a tentativa de redução do problema da justiça pode ser analisado, segundo Miguel Reale(29), sob as seguintes perspectivas:
a) a questão assume sentido predominantemente antropológico (condição existencial do homem);
b) a justiça passa a ser focalizada como tema autônomo, de caráter político ou jurídico, perdendo, assim, a sua substância filosófica (chega-se ao ponto de estudá-la em termos estritamente científico-positivos com recursos das doutrinas da época contemporânea);
c) a concepção autônoma da norma jurídica como criação autônoma da razão, que faz brotar um sistema de Direito regulando aprioristicamente a realidade jurídica. Nasce, daí, a compreensão da justiça como conformidade formal à lei racional, equivalente como tal à realização do bem;
d) com o homem sendo o centro da indagação, prevalece a idéia subjetiva da convenção como um ato de vontade que modela a sociedade e o Estado de acordo com as variáveis exigências de justiça (concepção individualista segundo a visão antropológica pessimista de Hobbes ou otimista de Rousseau);
e) como corolário, a idéia da justiça deixa de ser um ditame objetivo da razão (segundo a natureza das coisas) para se transformar num ditame da vontade dos indivíduos que decidem sobre as matérias ou fatos que devam ser consideradosnaturais.
Cumpre ressaltar que Kant, embora iluminista, por reconhecer a liberdade como direito inato do homem dotado de valor próprio e irredutível à sociedade e ao Estado, distingue-se dos contratualistas. Isso porque a idéia que nutre a respeito do contrato passa a ter caráter hipotético e conjetural, o que o leva a uma visão global e ética do homem. Na doutrina kantiana, pois,
"a justiça, antes de ser uma conformidade à lei positiva, implica a conformidade desta aos imperativos éticos, os únicos que podem obrigar os indivíduos sem prejuízo de sua liberdade, isto é, respeitando-os como fins e não como meios"(30).
A concepção kantiana do Direito e da Justiça reside na distinção entre conceito e idéia: o primeiro traduz daquilo que se pode conhecer mediante processos metódicos aferíveis no plano existencial (conceito de Direito relacionado à ordem jurídica positiva); a segunda é expressão daquilo que se pode tão-somente pensar no plano transcendental (idéia de Justiça como função que preside a correlação das liberdades segundo uma lei universal).
Para Hegel, discípulo de Kant, a idéia passa a absorver o conceito, isto é, a justiça deixa de ser um dever ser segundo a razão prática, para se identificar com a realidade jurídica vivida pelo povo ("espírito do povo"). Hegel identifica positividadecom historicidade, "ser" com "dever ser", Direito Natural com Direito Positivo. Com isso, Hegel volta a destacar o problema da ética material no centro da Filosofia do Direito(31).
4. O PROBLEMA DA VALIDADE
Examinar o problema da validade da norma jurídica exige o exame da sua existência enquanto norma jurídica, independentemente do juízo de valor (se ela é justa ou injusta).
Requer-se, para tanto, uma investigação de caráter empírico-racional, ou seja, é necessário saber preliminarmente se a norma existe e se é juridicamente uma norma.
Segundo Norberto Bobbio, três são os requisitos para realizar a investigação empírico-racional:
a) legitimidade da autoridade que promulgou a norma, o que leva ao exame sistemático do ordenamento jurídico e, também, da norma fundamental;
b) inexistência de sua revogação expressa por outra norma de idêntica ou superior hierarquia;
c) inexistência de sua incompatibilidade com outras normas do sistema (revogação tácita).
Miguel Reale sublinha que a validade da norma jurídica requer:
a) a competência do órgão que a elabora;
b) que esse órgão tenha competência ratione materiae para editá-la;
c) observância do procedimento legislativo (due process of law).
O problema da validade é, portanto, um problema ontológico do direito.
5. O PROBLEMA DA EFICÁCIA
Em sentido genérico, igual a validade ou vigência. Assim é que fala-se de eficácia da lei no tempo ou no espaço de um ato administrativo, de um negócio jurídico.
Além desse sentido há um outro, especial à sociologia do direito, que é o de efeito real, prático, da norma jurídica na sociedade.
Fala-se, ainda, de eficácia como aptidão de um ato para produzir todos os seus efeitos legais, ou todos os efeitos desejados pelas partes. Este é o sentido mais comum da palavra no direito, mas saber em que eficácia se distingue de validade, constitui um dos grandes problemas da filosofia do direito.
Este problema, segundo Bobbio, tem por objeto revelar se a norma é ou não cumprida pelos seus destinatários e, caso não seja cumprida, quais os meios utilizados para que ela o seja.
Essa investigação assume caráter histórico-social e pode ser identificada como um problema fenomenológico do direito.
6. OS TRÊS CRITÉRIOS SÃO INDEPENDENTES?
Segundo Bobbio, os três problemas referidos são independentes entre si, o que o leva a formular seis proposições diferentes:
a) Norma justa e inválida
As normas de direito natural são justas (direito à vida, à liberdade), mas podem não ser válidas, uma vez que a validade de uma norma exige o seu acolhimento pelo direito positivo.
b) Norma válida e injusta
Nos sistemas jurídicos primitivos a escravidão era regulada normativamente, mas ninguém, em sã consciência, pode dizer que tais normas eram justas.
c) Norma válida e ineficaz
Há normas que estão positivadas expressamente, mas não são cumpridas. No Brasil, por exemplo, há normas constitucionais que são deliberadamente descumpridas, como é o caso do valor do salário mínimo.
d) Norma eficaz e inválida
Existem normas de boa educação que são cumpridas espontaneamente, mas não chegam a pertencer a um sistema jurídico, como, por exemplo, uma placa num jardim particular dizendo "não pise na grama". E o costume? Bem, o costume só é incluído num sistema de direito positivo quando é reconhecido pelos órgãos competentes, mas aí passa a ser norma válida.
e) Norma justa e ineficaz
Geralmente, uma norma para ser eficaz deve ser também justa, como, por exemplo, a norma que estabelece a licença-gestante de 120 dias à empregada é justa (do ponto de vista sociológico, humanitário etc.), mas, na prática, acaba sendo de pouca ou nenhuma eficácia, na medida em que os empregadores preferem contratar homens, o que gera a diminuição de ofertas de emprego (ou da remuneração) à mulher no mercado de trabalho.
f) Norma eficaz e injusta
O fato de uma norma ser respeitada (ou não) não significa, por si só, que ela seja justa ou injusta. O exemplo do regime da escravidão bem demonstra que no passado a norma que consagrava tal regime era eficaz, independentemente de sua validade, mas ninguém ousa dizer que aquele regime era justo.
Vê-se, portanto, que é possível investigar a justiça independentemente da validade e da eficácia.
7. POSSÍVEIS CONFUSÕES E IMPORTÂNCIA DA DISTINÇÃO ENTRE JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA
Os três critérios examinados até agora deságuam num campo de investigação para a filosofia do direito, a saber:
a) Justiça
Os fins sociais da norma, dos ordenamentos e do direito (direito como ideal de justiça) – teoria da justiça;
b) Validade
Direito como regra obrigatória e coativa de conduta (direito como instrumento para a realização da justiça) – teoria geral do direito;
c) Eficácia
Aplicação das normas jurídicas (vida do direito em seus aspectos sociológico e histórico) – sociologia jurídica.
Segundo ALFRED VON VERDRON, há três modos de considerar o direito, isto é, a partir do exame:
a) do seu valor ideal – justiça;
b) do seu valor formal – validade;
c) do seu cumprimento prático – eficácia.
Bobbio adverte, porém, que as três distinções não devem ser concebidas isoladamente, como se fossem compartimentos estanques. Noutro falar, para compreender a experiência jurídica em seus diversos aspectos é preciso levar em conta:
a) o ideal de justiça a atingir;
b) as instituições normativas a realizar;
c) as ações e reações dos homens frente a esses ideais e a essas instituições.
Esses três elementos compreendem, no dizer do notável mestre peninsular, um único problema central: a melhor organização da vida do homem em sociedade.
Ressalte-se, todavia, que a distinção e a independência das três valorações são absolutamente importantes para se evitar o reducionismo.
8. TEORIAS REDUCIONISTAS
Há três teorias reducionistas:
  1. a que reduz a validade à justiça (jusnaturalismo);
  2. a que reduz a justiça à validade (positivismo jurídico strictu senso);
c) a reduz a validade à eficácia (realismo da jurisprudência estadunidense).
8.1. Redução do Jusnaturalismo
Para que a lei seja concebida como tal é preciso que seja justa: non est lex sed corruptio legis.
Seu principal defensor é GUSTAV RADBRUCH, para quem a lei injusta carece de juridicidade.
Já vimos, porém, que uma norma pode ser válida sem ser justa.
8.2. Redução do Positivismo Jurídico
Para os defensores dessa corrente a justiça fica relegada à validade.
A norma só é justa se – e somente se – for válida.
Temos, assim:
a) a justiça como consagração da validade;
b) a validade como consagração da justiça.
É importante ressaltar que Kelsen, a quem é atribuída a gênese do positivismo jurídico (no sentido estrito), entendia que o problema da justiça pertenceria aos domínios da ética, e não do direito (validade)(32).
8.3. Redução do Realismo Jurídico
Não se inspira nem no ideal de justiça nem nos ordenamentos positivos, e sim na realidade social em que o direito se forma e se transforma, bem como no comportamento dos homens que, com sua atuação, fazem ou desenvolvem as regras de conduta que os governam.
Há supremacia da eficácia sobre a justiça e a validade.
O realismo investe contra:
a) o jusnaturalismo, que tem uma concepção ideal do direito;
b) o positivismo, que tem uma concepção formal do direito.
9. CONCLUSÕES
Além da conclusões tópicas lançadas ao longo deste modesto ensaio, é possível dizer que a proposta de Bobbio alinha-se a uma posição equilíbrio entre a justiça, a validade e a eficácia das normas jurídicas, uma vez que ele parte da premissa de que o direito é uma experiência normativa, mas admite que essa experiência há de estar fundada tanto nas aspirações ideais de bem comum almejadas pela sociedade (justiça) como nas experiências sociológicas vividas por essa mesma sociedade em derredor da chamada "força" das normas jurídicas (eficácia).
Cremos, assim, que o problema da justiça, validade e eficácia da norma jurídica deve ser enfrentado não do modo proposto pelas teorias reducionistas, mas, sim, de maneira dinâmica e interdisciplinar, isto é, à luz do Direito, da Sociologia, da Filosofia, da Ética, da Lógica etc.
Quanto a esse aspecto, merece destaque a teoria tridimensional de Miguel Reale, para quem é preciso
"reconhecer-se a essencialidade dos princípios éticos, o que explica o freqüente apelo que se volta a fazer a idéias como a de eqüidade, probidade, boa-fé etc, a fim de captar-se a vida social na totalidade de suas significações para o homem situado ‘em razão de suas circunstâncias’.
"Nesse contexto" – prossegue o mestre patrício – "parece-me lícito afirmar que o tridimensionalismo jurídico tem o mérito de evitar a redução da Ciência do Direito a uma vaga Axiologia Jurídica, pelo reconhecimento de que não são menos relevantes os aspectos inerentes ao plano dos fatos ou à ordenação das normas, o que implica, penso eu, uma compreensão dialética e complementar dos três fatores operantes na unidade dinâmica da experiência jurídica.
Adotada essa posição, o problema da ‘concreção jurídica’ adquire mais seguros pressupostos metodológicos, permitindo-nos apreciar, de maneira complementar, a interdisciplinaridade das diversas pesquisas relativas à realidade jurídica, sob os prismas distintos da Filosofia do Direito, da Sociologia Jurídica, da Ciência do Direito, da Etonologia Jurídica etc. A compreensão unitária e orgânica dessas perspectivas implica o reconhecimento de que, não obstante a alta relevância dos estudos lógico-lingüísticos, tudo somado, o que há de essencial no Direito é o problema de seu conteúdo existencial".
Para finalizar, invocamos as palavras dirigidas aos aplicadores do direito por Mozart Victor Russomano, no sentido de
"que cada juiz tenha a capacidade de modelar suas convicções e de redigir suas sentenças inspirado pela idéia de que a Justiça, para ser justa, tem de ser generosa e de que o Direito, para ser reto, precisa ter em vista um democrático nivelamento social, ascendente e progressivo, sem o qual não pode haver felicidade para os homens, nem paz para os povos"(33).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Teoria generale del derecho; trad. José Guerrero R. 3. ed. Santa Fe de Bogotá : Editorial Temis, 1999.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário : fundamentos jurídicos da incidência, São Paulo, Saraiva, 1998.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direito e processo do trabalho na teoria geral do direito. São Paulo : LTr, 2000.
RADBRUCH, Gustav, SCHIMDT, Eberhard, WELZEL, Hans. Derecho injusto y derecho nulo. Madrid : Aguilar, 1971.
REALE, Miguel. Filosofia do direito, 13. ed. São Paulo : Saraiva, 1990.
______. Nova fase do direito moderno. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 1998.
RUSSOMANO, Mozart Victor. Imperatividade e Flexibilização das Normas Tutelares do Trabalhador, in CLT em Debate. São Paulo : LTr, 1994.
SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia Jurídica Eletrônica. São Paulo : Saraiva, 1997.
____________________________________________
1. 'Extraído da obra Leite, Carlos Henrique Bezerra. Direito e Processo do Trabalho na Teoria Geral do Direito. São Paulo: LTr, 2000.
2. Teoria General del Derecho, p. 20-33.
3. Derecho Injusto y Derecho Nulo. Madrid, p. 73-128.
4. Nova Fase do Direito Moderno, p. 3-42.
5. Metodologia da Ciência do Direito, p. 163-241.
6. Derecho Justo: Fundamentos de Etica Juridica, p. 21-46.
7. Poder e Legitimidade, p. 87-115.
8. Lições Preliminares de Direito, p. 105.
9. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário : fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 53.
10. Ibid., mesma página.
11.FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 196.
12.Manual de Introdução ao Estudo do Direito, pág. 175.
13. Enciclopédia Jurídica Eletrônica, verbete "validade e eficácia do direito".
14.EL CONCEPTO de Validez y Otros Ensayos. Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1969, apud Leib Soibelman, op. cit., mesmo verbete.
15.CONTRIBUCIONES a la Teoría Pura del Derecho. Centro Editor de América Latina. Buenos Aires, 1969, apud Leib Soibelman, op. cit., mesmo verbete.
16.FILOSOFIA del Derecho. Bosch ed., Barcelona, 1972, apud Leib Soibelman, op. cit., mesmo verbete.
17. SILVA, De Plácido e.Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. III. p. 40.
18. Teoria General del Derecho, p. 20.
19. Ibid, mesma página.
20. Enciclopédia Jurídica Eletrônica, verbete "justiça".
21. Justiça Conforme a Lei, p. 2.
22. Numa tradução livre: justiça é o propósito constante e contínuo de dar a cada um o que é seu.
23. POUND, Roscoe op. cit., p. 4-5.
24. FILOSOFIA do Direito, 13. ed. São Paulo : Saraiva, 1990, p. 276.
25. Nova Fase do Direito Moderno, p. 9.
26. Op. cit., p. 11-12.
27. Ibid., p. 12.
28. REALE, Miguel, op. cit., p. 13.
29. Ibid., p. 13-14.
30. REALE, Miguel, op. cit., p. 17-18.
31. Cf. WELZEL, Hans  Diritto Naturale e Giustizia Materiale, p. 262, apud Miguel Reale, Nova Fase do Direito Moderno, p. 19.
32.Há autores, como Miguel Reale, que sustentam que o "terceiro Kelsen", em sua obra póstuma, já admitia a utilização de valores pelo direito, ao contrário do que continha na sua "teoria pura".
33.RUSSOMANO, Mozart Victor. Imperatividade e Flexibilização das Normas Tutelares do Trabalhadorin CLT em Debate. São Paulo, LTr, 1994, p. 191.

Nenhum comentário:

Postar um comentário